crónica
Homo Scholaris - II (ilustrado com exemplos da literatura)
«Que eu não sei bem pelo que espero.
Se aprender o que não sei,
se esquecer o que aprendi»
('Chuva na areia' in Poesia
Completa, António Gedeão, 1997:30)
O homo
scholaris consubstancia-se num verso e reverso - os «cábulas»
e os «marrões». A relação que estabelecem com o estudo das matérias
escolares e os resultados académicos obtidos são o critério base
desta tipologia. O cumprimento das regras e a integração nos
parâmetros e regulamentos definidos pela instituição escolar
(reforçados pelas orientações familiares no sentido da
conformidade) fazem de uns, alunos disciplinados, respeitadores,
obedientes desse ordenamento global; em suma, alunos 'sem
problemas' que se deixam modelar por processos de inculcação
normativa. E têm sucesso. Como tal, são premiados, elogiados pelos
professores, apontados como exemplos a seguir, colocados no «quadro
de honra»:
«Declinações e raízes quadradas eram para ele como o alimento bom
de cada dia. Devorava naquilo, com espanto e assombro de todos nós,
e os mestres, no fim da cada período, carregavam-no de tão altas
classificações, que era um louvar a Deus. Sempre o primeiro da
aula.» ('O Gamito' in Segundo Livro do Bairro,
Manuel Mendes, 1958:69)
No sentido oposto, temos aqueles para quem a transgressão ao
estabelecido, na aula e no recreio, é a forma de estar num ambiente
percepcionado como constrangedor, limitativo da liberdade
individual e que os obriga a esforços intelectuais, de trabalho e
adaptação comportamental, que não estão interessados em levar a
cabo; as suas prioridades são outras: o jogo, a brincadeira, o
namoro: «converteu-se quase num cábula. Só pensava em jogar o
ténis, andar a cavalo, cansar o corpo numa constante febre
desportiva» (A Folha de Parra, Tomás Ribeiro Colaço,
1931:68)
Daí, as faltas e o culto do 'gazetismo': «Mas que bem sabia
Faltarmos à escola!»('Rapaz do bairro da lata' in Obra
Poética, Manuel da Fonseca, 1984:172)
Eles são os «alunos problema», para a escola e para as famílias.
Mesmo que não tenham insucesso, o ano lectivo é feito a um ritmo
muito intermitente ('esquecem-se' frequentemente dos trabalhos de
casa), com 'picos' de trabalho sazonal (estudam nas vésperas das
provas e dos exames), usam meios 'ilícitos' para atingir os fins,
recorrendo ao 'copianço':
«se conseguisse copiar do Aroso no exercício final estava salvo,
caso contrário era uma desgraça. Podia pagar ao 28, que levava
vinte e cinco tostões por passar cada problema, mas não tinha
absoluta confiança na ciência do 28.»
(O Mundo à Minha Procura I, Ruben A., 1966:147-8)
São estes alunos, os que acabam por ser alvo de repreensões,
castigos e sanções (antes a palmatória, agora os conselhos
disciplinares têm-nos como principais 'clientes'). Nesta categoria
entram os chamados «alunos diferentes», aqueles que acabam por, sem
o querer, questionar as práticas quotidianas e enraizadas de
enquadramento da escola e dos professores. São eles que introduzem
desvios ao funcionamento 'natural' dos estabelecimentos e isso
faz-se a custo, em instituições programadas para a regularidade e
para a normalidade. Para os «alunos diferentes» exigem-se respostas
especiais por parte dos responsáveis pedagógicos. Mas raramente
elas surgem nessa perspectiva. Antes se apela ao sujeito individual
que faça a sua 'acomodação' ao sistema: «Quero que te subordines à
regra escolar para subires»
('O Escritor' in Contos Durienses, João de Araújo
Correia, 1941:135)
A excepcionalidade (a única aceite e incentivada) é aquela que não
coloca obstáculos, mas que, pelo contrário, reforça o modus
operandi institucional - os «bons alunos» são a confirmação da
racionalidade e da virtualidade da organização. São o seu 'produto'
de qualidade. A prova de que o sistema funciona e cumpre as suas
finalidades. São, naturalmente, o orgulho dos professores que não
cessam de os glorificar e de os apresentar como 'modelo'. São eles,
por fim, que reforçam a 'marca de prestígio' da instituição.
O relacionamento entre estes dois grupos é caracterizado por uma
certa frieza, distanciamento e até alguma hostilidade. Os «marrões»
são vistos pelos «cábulas» como estando próximos dos professores e
das autoridades, essa espécie de 'inimigos', a quem não se deve dar
muita confiança. Os «marrões» são os 'certinhos' que tudo cumprem,
que põem o estudo sempre em primeiro lugar e que, por isso, pouco
vivem os prazeres da vida presente. Não ousam 'pisar o
risco'.
Os «cábulas» desdenham os «marrões», ridicularizam-nos:
«os outros vingavam-se chamando-me 'papagaio', 'rata sábia' e
outras coisas piores (…) 'Sabichona!' era o supremo insulto dos
outros, sobretudo dos rapazes» (Ao Fim da Memória -I,
Fernanda de Castro, 1986:70)
e desvalorizam as suas capacidades intelectuais, a que atribuem
utilidade apenas no círculo restrito dos saberes abstractos dos
exercícios e dos testes académicos