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BOCAS do galinheiro
Peter Handke, escrita, cinema e nobel

bocas1.jpgA Academia Sueca não atribuiu o Prémio Nobel da Literatura em 2018, na sequência da revelação de que o marido de um dos membros da academia, fora acusado de ter assediado sexualmente e de ter divulgado antecipadamente alguns nomes de escritores que viriam a receber o Nobel. Assim, este ano, em vez de um, houve dois galardoados. A polaca Olga Tokarczuk, que arrecadou o galardão do ano passado e o alemão Peter Handke o de 2019. Se a consagração da polaca é pacífica, como disse a Academia, "revela um notável dom da imaginação com um alto grau de sofisticação artística", já quanto a Handke e apesar de sublinhar que "a arte peculiar de Handke é a extraordinária atenção às paisagens e à presença material do mundo, que fez do cinema e da pintura duas de suas maiores fontes de inspiração", ao anúncio da Academia seguiu-se forte contestação, nomeadamente de lideres da Bósnia, Kosovo e Albânia que condenam a atribuição do prémio por o escritor ter apoiado a Sérvia durante conflitos da ex--Jugoslávia, bem como o facto de ter discursado no funeral do ex-ditador jugoslavo Slobodan Milosevic, em 2006, aos quais se juntou a voz dos também escritores Joyce Carol Oates, Salman Rushdie e Slavoj Zizek.
Nascido em 1942, em Griffen, no estado austríaco de Caríntia, abandonou os estudos na faculdade de direito para se lançar na escrita e desde cedo as suas obras causaram polémica, não só pelo seu cunho provocador (em "Insulto ao Público", uma peça teatral, os actores mimoseavam a plateia com um chorrilho de epítetos nada agradáveis), mas pelo seu posicionamento político que terá atingido o topo no caso da guerra dos Balcãs. Mas, para além da sua obra publicada, é no cinema que tem inegavelmente um lugar de destaque, principalmente na sua parceria com Wim Wenders.
A ligação do cineasta com o escritor começa em 1972 com a adaptação da novela homónima de Handke em "A Angústia do Guarda Redes no Momento do Penalty", premiado nesse ano no Festival de Veneza, a que se seguem, em 1975, "Movimento em Falso", sobre as deambulações de um escritor pela então Alemanha Ocidental, com argumento de Peter Handke, baseado numa novela de Johann Wolfgang Goethe, em 1987.
Porém, aquele que será o ponto alto da colaboração dos dois no cinema é "As Asas do Desejo", de 1987. Dois anjos deambulam por Berlin e observam os mortais, captando os seus pensamentos, ao mesmo tempo que descobrem por todo o lado uma certa tristeza, indiferença e uma profunda incomunicabilidade, ou seja, os personagens de Wenders/Handke são silenciosos, sem identidade, sem pátria, em constante movimento. Aqui, numa cidade. Só que essa cidade não é uma cidade qualquer. É Berlin antes da queda do muro. Uma cidade, como disse Wenders "a verdadeira no man's land, onde o Este e o Oeste se tocam. De um lado sente-se a enorme influência de uma doutrina, diria que estamos já um pouco em Moscovo; do outro temos por vezes a impressão de que estamos no 51º Estado americano". Uma cidade que foi devastada por uma guerra e que, para acentuar a tal incomunicabilidade, dotaram-na de uma barreira física: o muro. Ora em "As Asas do Desejo" os anjos veem os humanos mas também não lhes podem tocar, se bem que algumas vezes consigam interferir positivamente no seu destino, cumprindo aqui o seu papel preferido: o de anjos da guarda! Só que, como todos os guardiões, nem sempre são bem sucedidos: a vontade do homem às vezes é superior. Ora, não tinha o muro guardas de um lado e de outro? O que, porém, não evitou a sua queda. A vontade, o desejo, conseguem vencer barreiras. Ora, é essa vontade, esse desejo, essa esperança que "As Asas do Desejo" nos traz. Ao fim e ao cabo é a errância entre os muros, os físicos e os espirituais. Ambos terão que ser derrubados. È preciso é desejá-lo. Daí que Damiel seja aqui e ali assaltado pela ideia de se tornar humano, o desejo de sentir, de tocar, de ver as cores, mas, sobretudo, amar aquela trapezista por quem se apaixonou. É assim que, para além de ser um filme magnífico, "As Asas do Desejo" é um monumento erguido ao sonho e à esperança. Mesmo com um preço muito caro a pagar, a mortalidade, os anjos querem ser humanos. Afinal vale a pena viver a vida e correr esse rico. Peter Falk fizera a sua opção há 30 anos e não está arrependido. Lá está!
Escrito por Wim Wenders e Peter Handke, "As Asas do Desejo" é interpretado por Bruno Ganz que reencontra Wenders dez anos depois de "O Amigo Americano", ao lado de Solveig Dommartin, companheira do cineasta, aqui na sua estreia no cinema, Peter Falk, ele mesmo, Otto Sander, o anjo Cassiel e o veterano actor e encenador Curt Bois, no papel de Homer, filme que marca o regresso de Wim Wenders a Berlin, onde não rodava havia vários anos.
Mais recentemente Wenders dirigiu "Os Belos Dias de Aranjuez" (2016), adaptação de uma peça do Nobel de 2019. Como pano de fundo um belo dia de Verão. Um jardim. Um terraço. Uma mulher e um homem debaixo das árvores, com uma suave brisa de Verão. Ao longe, na vasta planície, a silhueta de Paris. Uma longa conversa entre um homem e uma mulher, que é ao mesmo tempo uma deambulação pelos temas favoritos de ambos, o amor, a liberdade e a beleza.
Peter Handke também se atreveu na realização com "A Mulher Canhota", de 1978, em que adapta uma novela sua e se socorre de Bruno Ganz para o principal papel, ao lado de Edith Clever e em 1992 coloca na tela quatro pessoas - o velho, a mulher, o soldado e o jogador - a viajarem para um deserto desolado além dos limites de uma cidade sem nome, filme nomeado para o Leão de Ouro no festival de Veneza, de novo com Ganz, aqui acompanhado de Jeanne Moreau.
Wim Wenders, sobre a atribuição do Nobel a Peter Handke,  "Quem mais, senão ele?"

Até à próxima e bons filmes!

Luís Dinis da Rosa
 
 
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