Ex-Secretário de Estado
Pedro Lourtie: Cortes ameaçam instituições de Ensino Superior
Pedro Lourtie assegura que o
maior problema do ensino superior é a falta de dinheiro e a prazo
podem estar seriamente comprometidos os padrões de qualidade. O
ex-governante aborda, em entrevista ao Ensino Magazine, o tema das
fusões e reestruturações, o financiamento, a rede de ensino
superior e os défices de interpretação dos seus alunos em
consequência do que chama a «cultura do computador e das
SMS»
É das pessoas que melhor conhece os contornos
que deram origem ao Processo de Bolonha, tendo representado
Portugal no exterior no âmbito do seu processo de aplicação. De que
forma analisa a implementação deste modelo?
Quando a Declaração de
Bolonha foi redigida, tendo eu participado nesse momento histórico,
não havia uma ideia totalmente concreta sobre o que seria a
evolução desse processo, nomeadamente em relação aos objectivos de
aprendizagem. Mas, grosso modo, o que foi previsto está a ser
implementado nos diferentes países a nível europeu, tendo ido mais
além em determinados aspectos, como por exemplo a definição de um
quadro de qualificações. Havia a ideia, um pouco romântica, que os
cursos iriam evoluir de uma forma harmónica. É sabido que os
interesses e as culturas de cada país fazem com que isso não seja
possível. Em 2001 o que estava em cima da mesa é que as
instituições colaborariam na definição dos cursos a nível europeu
por área de conhecimento. O relatório que desenvolvi apontava para
que fazia mais sentido que os cursos de Medicina, Engenharia,
Letras, Economia e outros, fossem mais parecidos nos diferentes
países. O objectivo era a mobilidade. Com esta orientação estaria a
conferir-se mais poder às instituições e menos poder aos governos.
Os ministros rejeitaram esta ideia. Optaram por definir a nível
nacional um sistema de graus, com um quadro genérico de
qualificações para o espaço europeu do ensino superior.
Os egoísmos europeus
prevaleceram?
Ao nível dos tratados
o sector da educação é apenas objecto de cooperação entre estados
da União Europeia. Só que os ministros não quiserem abrir mão do
seu poder, rejeitando transferi-lo, mesmo que parcialmente, para as
instituições.
Comparar Bolonha a uma espécie de «euro do ensino» é
uma associação continua a fazer sentido?
Ao definir um quadro de
qualificações nos vários países significa que são semelhantes e têm
o mesmo valor. Nesse sentido, este processo pode ser perfeitamente
comparado à união monetária.
Todas as instituições nacionais já converteram os
cursos em créditos (tal como Bolonha exigia) mas este processo é
mais do que isso, pois o ensino passa a ser centrado no aluno. Esse
foi um desiderato alcançado?
Não totalmente, apenas de uma
forma genérica. Há um caminho que está a ser feito nesse sentido.
Em função da definição dos objectivos de aprendizagem é preciso
aferir se o aluno cumpriu a metas. Bolonha trouxe métodos
pedagógicos e uma organização do ensino que é muito mais favorável
à focalização no aluno, do que o tradicional ensino de cátedra, em
que o professor debita e o aluno assimila. Regista-se um progresso,
mas é preciso sublinhar que o ensino superior é um sistema
constituído por homens e mulheres, com experiências e culturas
próprias, e que não muda de um dia para o outro. Vai
mudando…
Os professores das instituições já interiorizaram o
facto de terem que mudar a forma de ensinar?
Estão interiorizando. Quero
lembrar que no tempo em que fui aluno de faculdade, em final dos
anos 60, quem frequentava este grau de ensino era uma elite. O que
se verifica hoje, olhando para as estatísticas, é que os alunos na
casa dos 20 anos representam 37 por cento do grupo etário
dominante. No meu tempo esta percentagem era de 4 por cento. Isto
significa que hoje chega ao ensino superior uma faixa muito mais
alargada. Perante isto, a escola precisa de organizar-se de forma
diferente de modo a proporcionar o desenvolvimento de competências
que estão nos objectivos de aprendizagem de Bolonha. É o caso das
competências de comunicação. Ser capaz de defender e transmitir uma
ideia, quer aos seus pares, quer a especialistas. Creio que a
mudança qualitativa vai acompanhar a mudança quantitativa dos que
vão chegando ao ensino superior.
Concorda com os que dizem que esta geração de alunos,
apesar de possuir acesso a um manancial de informação, demonstra
uma fraca preparação para responder às
solicitações?
Não se pode generalizar. Se
comparar os jovens do meu tempo e estes, digo sem reservas que esta
geração está, globalmente, muito melhor preparada. Contudo, admito
que existem défices significativos, nomeadamente ao nível da
interpretação de textos.
A que atribui essa lacuna?
Principalmente a aquilo que eu chamo a
«cultura do computador» e das SMS. O contexto que nos rodeia, no
que diz respeito à cultura da publicidade e do marketing, veicula
imagens e mensagens curtas, aquilo a que os políticos chamam «sound
bytes», que não precisam de uma interpretação sofisticada. Para
além disso, hoje existe informação em excesso que não é
seleccionada de forma coerente e acaba por levar à
dispersão.
O ministro Nuno Crato identificou a Matemática e o
Português como fracassos crónicos dos alunos. São duas pechas a
colmatar?
É preciso melhorar a
capacidade de atenção e de interpretação de textos mais complexos.
Quando elaboro enunciados, alguns são longos e exaustivos e a
sensação com que fico é que os meus alunos não conseguem acompanhar
toda a explanação do teste e perdem-se pelo caminho. A certa
altura, "desligam". Este é um dos principais dramas com que se
confrontam os jovens que chegam ao ensino superior.
A massificação do acesso ao ensino superior, fruto da
explosão dos estabelecimentos de ensino privado, foi danosa em
termos qualitativos?
Houve um período inicial em
que o ensino superior público não foi capaz de dar resposta. Depois
do 25 de Abril, inaugurou-se uma fase em que se pensou «tudo é
possível para toda a gente» e o sistema ficou algo desregulado. Só
mais tarde, aumentaram as preocupações de qualidade, com a
introdução de um sistema que zelasse pela sua garantia, a avaliação
de instituições e assegurar as condições mínimas do corpo docente.
Tornou-se famoso o caso dos «turbo-professores» que davam aulas em
diversas faculdades, em simultâneo. Descobriu-se que um docente
estava em oito universidades diferentes. Isto já para não falar de
ilegalidades que se registaram em certos estabelecimentos, como
aconteceu com a Universidade Independente, depois de se terem
«zangado as comadres».
Nos últimos anos tem ganho consistência a ideia de
que concluir um curso é apenas uma licença para aprender e não um
emprego. Considera que hoje em dia é quase um pecado ter
habilitações a mais?
Nunca se tem habilitações a
mais. É preciso recuar até meados dos anos 80, momento em que o
número de diplomados cresceu muito rapidamente, tendo aumentado
numa década até 5 vezes. No nosso país verificou-se uma mudança
quantitativa num período muito curto de tempo, ao contrário do que
sucedeu noutros países, com o fenómeno mais espaçado
temporalmente.
Defende que se reduza as vagas de acesso em
determinados cursos?
Não sou favorável. Defendo
que se deva fornecer aos candidatos a informação sobre a situação
das saídas profissionais. Quando fui director-geral do ensino
superior, arrancámos com um processo denominado «Sistema de
Observação dos Percursos de Inserção dos Diplomados no Ensino
Superior», em que se fez um primeiro levantamento com o Ministério
do Trabalho, questionando os diplomados sobre o seu percurso
profissional depois de terem terminado o curso. Se compararmos
aquilo que são os níveis de desemprego e remuneratórios das pessoas
que têm um curso de ensino superior e dos que não têm, conclui-se
que Portugal é dos países onde ser diplomado dá mais rendimento. A
diferença salarial entre os que têm e os que não têm ainda é maior.
Acredito que uma formação superior, se for de qualidade, facilitará
as pessoas a obter emprego, com vantagens competitivas em relação
aos que não a têm.
As entidades empregadoras tendem a desvalorizar o
diploma e a enfatizar outras características do indivíduo,
nomeadamente no âmbito das competências práticas e das relações
humanas. Esse é o rumo certo?
É uma tendência que se
acentua. O diploma é indispensável para começar. Posteriormente, os
empregadores vão querer saber se o candidato se adapta a trabalhar
em grupo, se tem características de liderança, se é capaz de
comunicar e defender ideias, capacidade de iniciativa, etc. São
estas novas qualificações da formação que se ministra nas
faculdades que, hoje em dia, se revelam determinantes na forma como
se compete no mercado de trabalho. Veja o caso do empreendedorismo,
de que tanto se fala. Não é frequentando uma cadeira de
empreendedorismo que faz das pessoas mais dinâmicas, mas
pretende-se dar-lhes competências de assumir riscos e ter
iniciativa. Os professores têm o papel fundamental de valorizar e
elogiar uma solução ou uma ideia de um aluno, mesmo que esta seja
diferente do convencional. É isso que acontece quando se faz
investigação.
Existe uma mão cheia de universidades portugueses
muito bem cotadas no estrangeiro, mas os nossos melhores alunos
continuam a demandar outras paragens após alcançar o diploma. Vê
esse êxodo para o exterior com dramatismo ou como uma
oportunidade?
É uma oportunidade. O nosso
objectivo é formar as pessoas o melhor possível, dotando-as de
capacidade para fazer coisas. O que se passa é que o ensino
superior andou mais depressa do que a nossa economia. Se estamos a
formar mais gente do que o nosso tecido empresarial consegue
absorver, então prefiro que os meus alunos, especialmente os
melhores, vão para a Airbus, a Agência Espacial Europeia, uma
fábrica de componentes electrotécnicos de ponta, etc. Provavelmente
alguns vão fixar-se lá fora, mas fica sempre a ligação ao país de
origem. E é uma ponte que se mantém entre Portugal e o resto do
mundo. Mais dos que os limites geográficos do país, o país são os
portugueses, onde quer que eles estejam e onde sejam bem
sucedidos.
Devia ser um desígnio nacional colocar uma
universidade nacional no ranking das 100 melhores do
mundo?
Não sou grande entusiasta dos
rankings, creio que eles revelam a dimensão das instituições
consideradas. Uma vez escrevi um artigo no "Diário Económico" que
resultou de uma pergunta que o meu neto me fez: «Avô, o que é que é
maior: o elefante ou a girafa?». Depende do critério. O elefante é
mais pesado, mas a girafa é mais alta. Com os rankings das
universidades passa-se exactamente o mesmo. Há aquele exemplo
clássico da Universidade de Berlim que nos anos 20 teve um prémio
Nobel, mas depois dos conflitos mundiais se dividiu em duas
instituições. A grande disputa era quem ficava com o vencedor do
Nobel para subir mais umas posições na tabela. A moral da história
é que os rankings não alteram, no essencial, a qualidade das
instituições.
O Primeiro-Ministro garantiu recentemente que os
sacrifícios também vão chegar à educação, sendo extensíveis ao
ensino superior. Está preocupado?
É possível sobreviver durante
algum tempo com situações financeiras desfavoráveis. O ensino
superior público teve nos últimos anos uma redução significativa em
termos orçamentais. Se se concorrer a mais projectos internacionais
utilizando receitas próprias é possível resistir mais algum tempo,
a minha dúvida é que com os apertos registados as instituições não
tenham capacidade para investir. A prazo estamos a comprometer a
qualidade do ensino superior. Percebo que durante a crise vai ser
preciso apertar o cinto. Visto que muitas universidades já usam
receitas próprias para pagar salários, a minha dúvida é se não se
estará a ir longe demais e a ameaçar as instituições de ensino
superior.
Os alertas do Conselho de Reitores têm sido
repetidos. Sem dinheiro, não restará outra alternativa que não seja
despedir professores e fechar laboratórios?
Tenho constatado ao longo dos
anos uma grande apetência dos sucessivos ministérios das Finanças
pelos saldos das instituições de ensino superior. Quero lembrar que
as instituições não sobrevivem sem saldos. Chegam ao princípio do
ano e não conseguem fazer nada. Isto é fatal para o desenvolvimento
de projectos de investigação em que há que pagar peças, comprar
reagentes, pagar a pessoas, etc. É preciso ter sensibilidade para
não «rapar» por completo os saldos das instituições. Outra situação
é o reforço das regras burocráticas existentes para gastar
dinheiro, o que torna os actos de gestão cada vez mais complexos.
Este sistema de regras instituídas funciona com base na
desconfiança, sentimento que já vem do tempo de Salazar com o
chamado «visto prévio».
O presidente do Instituto Superior Técnico já disse
publicamente ter dúvidas que o governo reestruture o ensino
superior. Partilha esta visão?
No que diz respeito à lei de
financiamento do ensino superior esta precisa de ser pensada e
trabalhada para um período pós-crise. Devíamos discutir, sobretudo,
quem deve financiar o ensino superior e como. Temos duas certezas:
o financiamento tem que diminuir e as propinas não podem aumentar
porque estão limitadas constitucionalmente. O que se faz? Reduz-se
o número de alunos? Há muito que reflectir sobre como encontramos
um sistema de financiamento que seja sustentável a longo
prazo.
É em alturas conturbadas, ou a «quente» como se
costuma dizer popularmente, que se deve debater este
tema?
Esta é uma oportunidade para
pensar no assunto. É uma forma de dar às instituições uma
perspectiva que de futuro as coisas não vão continuar a ser ad-hoc
como aconteceu durante os períodos de crise.
É partidário da fusão da
Universidade Técnica, onde está incluído o IST e a Universidade de
Lisboa?
Operações dessa natureza
custam naturalmente algum dinheiro, mas creio que devem ser
pensadas com calma e de forma progressiva. É público que decorrem
contactos entre a Universidade Técnica e a Universidade de Lisboa
para uma fusão. Não é um processo fácil, mas há um ponto que
importa destacar: são ambas entidades com pouca sobreposição de
cursos e formação, o que facilita a complementaridade. Existe, logo
à partida, outra peculiaridade: o Instituto Superior Técnico é
demasiado grande para a Universidade Técnica de Lisboa. Em termos
de alunos, o IST tem cerca de metade da Universidade que integra,
enquanto o número de doutorados é mais de metade. Ou seja, se as
duas universidades se fundissem o Técnico passaria a representar
vinte e poucos por cento da nova instituição, deixando de ser a
ameaça que muitos consideram. Creio que é um processo que deve ser
amadurecido até para atenuar as diferenças culturais entre as
escolas da Técnica e da Universidade de Lisboa.
Quais são as suas expectativas para a tutela
conjunta, educação e ensino superior, no ministério da 5 de
Outubro?
Não muda tanto quanto se
possa pensar. Devido a razões orçamentais este governo decidiu ter
menos ministros, concentrando num núcleo duro mais restrito os
titulares das pastas, enquanto os secretários de Estado se ocupam
do despacho corrente. Provavelmente, até à data, não se tem ouvido
falar muito dos secretários de Estado e do próprio ensino superior
porque o ministro Nuno Crato está muito associado às
universidades.
Ter formação matemática é uma
vantagem?
Ele é professor de
matemática, mas a formação de base é economia. Nos seus princípios
orientadores não propôs, como seria natural, nenhuma revolução no
ensino superior. É natural que esteja mais concentrado no básico e
secundário onde residem os problemas mais graves. A principal
questão com que se confronta este sector é mesmo a falta de
dinheiro. Quanto ao Regime Jurídico das Instituições do Ensino
Superior o que é importante é consolidar e avaliar o resultado da
experiência. Melhorou com esta reforma? Avaliar as consequências é
fundamental.
A instabilidade política em Portugal tem sido a
imagem de marca das últimas décadas. Sempre que se muda um
ministro, altera-se o rumo da educação. É esse um dos problemas do
ensino em Portugal?
É natural que cada ministro
tenha as suas ideias, mas o principal problema é a enorme
rotatividade de ministros que se tem verificado. Urge acabar com o
mau hábito de querer mudar tudo de repente, antes de aferir o que
está bem e está mal. Essa é uma das pechas portuguesas. E esse é um
dos principais problemas do nosso sistema de ensino. Veja que
Mariano Gago esteve 6 anos no Ministério do Ensino Superior o que
lhe permitiu fazer reformas concretas e implementá-las no
terreno.
Muito do desenvolvimento do interior do país está
associado ao ensino superior, sobretudo aos politécnicos. Na
reorganização da oferta formativa em Portugal, como é que esta rede
poderá contribuir para que as assimetrias entre o litoral e o
interior sejam mitigadas?
Na rede do ensino superior há
dois objectivos que temos de compatibilizar, o que nem sempre é
fácil: o papel do ensino superior a nível regional e ter massas
críticas que permitam tornar o sistema eficaz. Lidei com um caso
mais extremo do que Portugal, tendo integrado a equipa da OCDE que
fez um exame temático na Noruega. No nosso caso específico creio
que devemos pensar nas academias. Tomemos, por exemplo, o que se
passa na Beira Interior. Seria desejável compatibilizar os cursos
entre as várias instituições, nomeadamente tornando os primeiros
anos comuns nos vários cursos, com uma parte especializada a ser
feita apenas numa instituição.
Defende a repartição de tarefas?
Promover a partilha seria
preferível a fechar instituições ou encerrar de todo unidades
orgânicas de instituições. Trabalhar em conjunto a oferta educativa
seria o ideal para formar também equipas de investigação envolvendo
as várias instituições da região. Deve ir-se em busca de soluções
imaginativas para manter as instituições enquanto pólos de
desenvolvimento e, em simultâneo, tornar mais eficaz do ponto de
vista financeiro a oferta do ensino superior. O mote é trabalhar em
conjunto, mas reconheço que nem sempre é fácil.
Nuno Dias da Silva
Nuno Dias da Silva / João Vasco