Memórias ficcionadas
Nicho de diversidades
«Amar a nossa
terra não é gostar do nosso quintal.»
(Fernando
Pessoa)
Foram onze anos a
estudar e a conviver num mundo masculino e a reclamar por tal ser
assim. Na primária e no liceu, Arcílio frequentou duas escolas… só
de rapazes e com poucas professoras. Eram tempos em que a
co-educação só se sentia no interior do país porque, aí, as razões
económicas impuseram-se à ideologia (oficial) da separação de
sexos.
Também essa seria uma
das novidades na entrada na Universidade. Pela primeira vez, no seu
percurso escolar, Arcílio tinha aulas mistas! As raparigas/mulheres
da sua turma/curso (e havia-as de diferentes idades) eram assíduas,
atentas, tiravam apontamentos, transmitiam-lhe as directivas dos
professores, e nos exames eram preciosos ancoradouros de um saber
que nele, por vezes, estava ausente. A falta de motivação em
algumas matérias (Ronga, Sânscrito, Inglês), a
leitura apressada das sebentas (as de Missionologia e
Economia Agrária do Ultramar Português deixou-as a meio),
e a ausência em muitas aulas (Direito Aduaneiro,
Estatística,…) tornavam-no vulnerável naquelas horas de
aflição. Como não havia, à época, trabalhos de grupo em sala de
aula, o convívio com as colegas fazia-se mais na cantina, na
sala verde e, principalmente, nos recantos aprazíveis do
jardim daquele encantador Palácio Burnay. Uma delas, a Teresa C.,
até tinha um Fiat 800, no qual cirandavam, em dias de
gazeta, sempre em sobrelotação.
- Podíamos ir ao
Restelo - sugeria a condutora emancipada - descobri lá uma lojinha
que grava, nas caixas de fósforos, o nome do namorado, em fundo
vermelho.
- Eh pá, com este
sol, vamos antes ao Tamariz - contrapôs Arcílio, farto da monótona
mansidão do seu Tejo e ávido do marulhar da praia. No entanto, o
seu desejo, não confessado, era rebolar-se na areia com aquela
flausina arisca e rebelde que ele andava a
catrapiscar.
Carro, na altura, era
um luxo de poucos. Bustorff, Vinhas e Mello, que frequentavam o
curso de Serviço Social, iam para a escola em carrões pretos, com
chauffeur fardado que o parava, ostensivamente, em frente
ao Instituto e saía presto para abrir a porta detrás à "menina".
Esse estatuto social não obstou a que RitaV. e MatildeM.
integrassem os corpos directivos da AA; ali não havia sectarismos
de classe. Outro ricaço, o P.Basto, que tinha tanto de ingénuo e
bom rapaz como de surdo, vivia pertíssimo do Instituto (ia a pé,
evidentemente) num casarão de dois andares, com inúmeros quartos
encerrados porque só ele e a avó por lá deambulavam. A sua surdez
fechava-o no mundo do estudo e na vontade férrea de ter boas notas.
Havia também os "meninos da Linha", sempre muito compostinhos de
fato-e-gravata (entre eles o S.Lara, que iria a sub-secretário de
Estado da Cultura, mas cuja passagem pelo Governo ficou manchada
pelo veto a um dos livros do Nobel da literatura); esses apanhavam
o comboio da Estoril-Sol (ainda autónoma da CP), saíam em
Alcântara-Mar ou Belém, e tomavam um táxi.
Mas a maior diversidade
tinha a ver com as origens geográficas de cada um. De
Trás-os-Montes (F.Seixo e muitos mais; sendo o Prof. Arianus
natural do concelho de Macedo de Cavaleiros, uma das razões poderia
estar aí), das Beiras (J.Morenus, Eduarda e a trupe de Castelo
Branco - Jonas Guevara, JotaC., Arrecadado Moreia), dos Algarves
(F.Ramires), dos Arquipélagos (Amadeus, da Madeira, Becas e
Ver[d/m]elho, dos Açores), de África (C.Faustus, Firmino e Maurice,
de Angola, DaniloS., de Moçambique), da Ásia (J.Clementis, da
Índia, Chen, de Macau), para além, naturalmente, dos alfacinhas
(JocaL. e Lanterset) e dos suburbanos da "cintura industrial"
(ÁlvaroM. e Arcílio). Havia gente de todo o lado, daqui, daquém e
dalém mar…
Aquela turma de
Administração Ultramarina era, de facto, multicultural em sentido
holístico, como diríamos hoje: a diversidade regional, geracional,
étnica, social e de género eram bem marcantes. A língua e a
nacionalidade unia o corpo discente. O Instituto, ao invés do país,
era um nicho de diversidades, numa altura em que Portugal,
«multirracial e pluricontinental» (na propaganda), era ainda visto,
na Europa, como paradigma do princípio napoleónico «um país, uma
nação, uma língua».
Hoje, diz-se que a
sociedade portuguesa é multicultural, mas no Ensino Superior
caminhamos em sentido inverso; não estamos longe do princípio "a
cada grupo social a sua escola": no politécnico os carenciados, na
universidade os que têm posses, na U. Católica os mais ricos. Nas
privadas entra-se se houver pecúlio familiar para tal (e
quando não se teve média para uma pública). A pulverização
das escolas superiores pelo território nacional, servindo
"clientelas" locais, tornou-as bem mais homogéneas que no tempo em
que o ensino superior era "elitista". Sim, o Superior
massificou-se… mas as escolas ficaram bem mais
provincianas.