Entrevista

Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente
O tempo anda todo trocado!

Filipe_Duarte_Santos_IMG_5831.jpgSó uma transição para as energias renováveis poderá travar o agravamento dos efeitos das alterações climáticas a nível global. A convicção é de Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável e uma voz autorizada nesta matéria.

Como o povo costuma dizer, «o tempo anda todo trocado». Como explica, do ponto de vista científico, a crescente degradação das condições climáticas?

As alterações climáticas são provocadas por uma modificação na composição da atmosfera. A atmosfera é essencialmente formada por oxigénio molecular, que é cerca de 21 por cento, e por azoto molecular, que representa cerca de 72 por cento. O restante é composto por componentes minoritários, sendo um deles o dióxido de carbono, o outro o metano e outros gases, nomeadamente o vapor de água. Acontece que estes gases provocam o efeito de estufa. Tem havido desde meados do século XVIII, ou seja, durante a revolução industrial, emissões de dióxido de carbono para a atmosfera, essencialmente provocadas pela combustão dos combustíveis fósseis - ou seja, o carvão, o petróleo e o gás natural. Para além disso, a desflorestação e as alterações no uso dos solos são outras questões que importa sublinhar.

Como travar essa alteração climática?

É necessário deixar de emitir grandes quantidades de dióxido de carbono, metano, óxido nitroso e outros gases com efeitos de estufa, associados a certas atividades humanas, como seja o setor da energia, em particular os combustíveis fósseis, o petróleo e o gás natural. Portanto, se não fizermos um esforço para reduzir a emissão desses gases com efeito de estufa a tendência é o agravar de eventos climáticos extremos. Pode ser através de ondas de calor e secas - fenómenos extremos que estão a acontecer, neste final de verão, em certos locais do território português e espanhol, por exemplo. No caso da precipitação a tendência é que esta se faça em períodos de tempo curtos e de forma muito intensa. Para além destes aspetos, há a subida do nível médio global do mar, que já subiu cerca de 20 centímetros desde o período pré-industrial até à atualidade - e é muito provável que suba cerca de um metro até ao final deste século.

A erosão da linha de costa é um fenómeno que a cada verão se nota de forma mais evidente. A que se deve?

A costa ocidental portuguesa tem um défice sedimentar. No passado, os rios transportavam as areias até à costa. Com a construção de barragens em Portugal e Espanha os sedimentos passaram a ficar retidos, logo não alcançam o nosso litoral. Para além disso, temos uma costa muito energética, batida pelos ventos do quadrante oeste/norte, em particular nos períodos de nortada. Esse vento constante gera ondas com a mesma direção que ao baterem na costa baixa e arenosa faz o transporte das areias de norte para sul, retirando areia das praias. É este fenómeno que explica a erosão costeira muito acentuada.

Ainda é possível travar as alterações climáticas ou o processo é irreversível?

É possível reverter esta situação se fizermos uma transição energética para as energias renováveis, deixarmos de utilizar os combustíveis fósseis do mundo, como atualmente fazemos. No fundo, o Planeta precisa de efetuar uma descarbonização da economia. Se não a fizermos, as alterações climáticas vão intensificar-se.

Como acabou de dizer, a ação do homem no sistema climático continua a ser muito profunda. Como sensibilizar para a mudança de comportamentos?
Por exemplo, os meios de comunicação social têm um papel muito importante nesse processo. Alguns cientistas também ocupam parte do seu tempo fazendo a divulgação dos resultados dos seus estudos, etc. No fundo, este começa a ser um tema cada vez mais na ordem do dia e na mente das pessoas pelas consequências gravosas. No nosso caso, temos as secas e os violentos fogos florestais de 2017 que estão bem presentes na memória de todos os portugueses. Nesse sentido, muitos governos estão a envidar esforços para efetuar a absolutamente necessária transição energética, mas este processo depende da mobilização social, porque o seu sucesso está dependente das pessoas, não pode ser feito apenas pelos políticos. E estou em crer que quanto maior consciência houver desta problemática, mais as pessoas estarão disponíveis para aderir a esta transição energética.

Os alertas da comunidade científica têm tido eco ou são entendidos por alguns setores como obstáculos ao desenvolvimento económico?

A indústria dos combustíveis fósseis - em particular a do petróleo, mas também a do carvão e do gás natural - é a mais poderosa do mundo. Por isso, há países que consideram que fazer a transição energética para as energias renováveis é algo que prejudica a economia desses países. Muitos desses países têm grandes reservas de petróleo e dependem muito dessa energia, resistindo, por isso, à transição energética. Não é pois de estranhar que muitos alertas da comunidade científica sejam incómodos.

Dois dos países mais populosos do mundo, a China e a Índia, estão a investir fortemente em energias renováveis. O facto de os Estados Unidos terem rasgado o acordo de Paris representou um forte revés para o objetivo de um mundo mais sustentável?

Os três países que referiu são grandes emissores de gases com efeito de estufa. Neste momento, o principal emissor mundial é a China, seguida pelos Estados Unidos e pela Índia. Acontece que a China está a procurar fazer um esforço sério no âmbito da transição energética, pese embora as dificuldades que existem para a concretização deste processo, porque os chineses não estão interessados em prejudicar o seu desenvolvimento económico. Contudo, a China dispõe já da maior indústria de energias renováveis do mundo, sobretudo a energia solar. A China é o país do mundo que mais painéis solares fotovoltaicos produz e também painéis solares térmicos, aerogeradores, etc. O volume de negócios é impressionante. Mas é preciso que se diga que a China está ainda muito longe de reduzir as suas emissões. O caso da Índia é diferente por ser menos desenvolvida do que a China. O PIB per capita é muito inferior à China. Apesar de estarem conscientes do problema, as autoridades indianas defendem que têm de aumentar o consumo per capita para atingir níveis mais elevados de desenvolvimento social e económico. Para além disso, a Índia tem muitas minas de carvão, o que não é uma boa notícia para ninguém.

foto-N_FDS.jpgFinalmente, falta falar dos Estados Unidos liderados por Donald Trump…

É um caso em que houve uma transição muito grande em termos de política de ambiente da administração Obama para a administração Trump. Este presidente está a anular todas as medidas que o governo anterior tinha tomado no sentido de fazer a transição energética e de proteger o ambiente. Este problema da descarbonização da economia não se vai resolver num futuro próximo e os impactos mais gravosos vão ser sentidos nas próximas gerações, que irão deparar-se com um mundo distinto do atual, caso não se consiga inverter este processo de degradação.

E como é que Portugal está a comportar-se neste domínio?

Portugal desenvolveu as energias renováveis e em particular, fruto de um esforço muito grande, a energia eólica. Temos uma potência instalada em matéria de energias renováveis muito significativa. Não avançámos como devia ser na energia solar térmica, ou seja, o tipo de energia que é utilizado para aquecer água nas casas das pessoas que têm uma moradia. Na energia solar fotovoltaica também estamos a dar passos importantes, o que é natural por termos condições invejáveis para o aproveitamento da energia solar no que respeita à geração de eletricidade.

Mas defende que continuamos a falhar na eficiência energética. Quer concretizar?
A eficiência energética tem a ver com o consumo de energia que fazemos das funcionalidades e dos equipamentos que temos nas nossas casas. Esta questão tem a ver com a climatização das casas, no verão ou no inverno, de forma a consumir menos energia, e também com a própria escolha dos aparelhos aquando da sua compra. Neste aspeto particular ainda nos encontramos bastante atrasados.

O uso do carro particular continua a ser excessivo?

Devemos ter uma mobilidade mais inteligente, ou seja, consumindo menos energia.

Um estudo recente aponta que Portugal pode, em 2050, ter um clima semelhante ao de Casablanca, em Marrocos. Qual é a sua opinião?

Essas comparações são sempre muito complexas e difíceis. Para definir um clima são necessários 30 anos de observações em estações meteorológicas. O que existe é uma tendência para que o clima verificado no norte de África, entre 1960 e 1990, esteja a transferir-se para Portugal - quente e mais seco - enquanto no norte do continente africano as temperaturas tendem também a aumentar. Mas penso que a tendência é que seguiremos confrontados com eventos de seca mais frequentes, com impactos evidentes nos recursos hídricos e na própria agricultura.

Os partidos verdes ou ecologistas tiveram uma forte subida nas últimas eleições europeias. Quer isto dizer que as pessoas estão a valorizar mais as questões ambientais e climáticas?

Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu os partidos verdes ou ecologistas (em Portugal, no caso, o PAN) registaram uma votação superior a sufrágios anteriores e isso deveu-se, fundamentalmente, ao voto dos eleitores mais jovens. Penso que daqui se pode inferir que as camadas mais jovens da população europeia têm mais consciência ambiental e sentem uma preocupação maior relativamente a escalões etários mais avançados face às consequências que isto pode trazer para o futuro.

A adolescente sueca, Greta Thunberg é o rosto do movimento «greve à escola pelo clima». Como avalia o impacto desta iniciativa?

É uma iniciativa muito meritória de uma jovem de apenas 16 anos. Mas o que eu considero aberrante é que sejam os jovens a (de alguma forma) prejudicar-se e a sacrificar-se em termos escolares com esta iniciativa para chamarem a atenção dos adultos e dos responsáveis políticos pela condução dos países. Em setembro, teremos uma greve nos mesmos moldes a nível global e pelo que li esta forma de protesto vai envolver um grande número de pessoas adultas. No fundo, é mais outro alerta para o impacto das alterações climáticas e da necessidade urgente para que se faça algo antes que seja tarde demais.

Na sua opinião, como é que os políticos vão compatibilizar o crescimento económico com a preservação ambiental?

Um governo sai, forçosamente, penalizado no próximo ato eleitoral caso não consiga um crescimento económico a curto prazo. Não é de admirar que os esforços estejam dirigidos para o crescimento económico e, para que isso aconteça, é preciso consumir mais energia. Nesse contexto, o sistema económico e financeiro convida as pessoas a consumirem mais e mais, com anúncios, na rádio, na televisão e na internet. A transição energética representa uma mudança de hábitos e vai mexer com os lucros de muitas empresas poderosas, por isso, é compreensível que exista uma resistência muito grande à sua implementação.

Os programas curriculares de ensino deviam ter um reforço das matérias ambientais?

Não tenho dados suficientes para responder a essa pergunta, mas entendo que a geração mais nova, que entra na escola, está mais sensibilizada para as questões ambientais. Acredito mesmo que o grande obstáculo reside nas pessoas adultas e que se encontram na fase ativa da sua vida e que acalentam grandes expetativas em termos de prosperidade económica.

Os incêndios na Amazónia estão a acelerar a desflorestação naquela região. Qual é o seu real impacto dos incêndios para o chamado "pulmão" do Planeta?

Não conhecemos a contabilidade exata daquilo que ardeu, mas creio que mais tarde ou mais cedo, também com a ajuda dos satélites, teremos uma noção aproximada.

O conceito de "pulmão" do mundo é muito falado e é preciso esclarecer. Na fotossíntese, as plantas emitem oxigénio, mas a atmosfera tem uma quantidade de oxigénio muito considerável - 21 por cento da sua composição. Isto para dizer o seguinte: se a Amazónia fosse completamente arrasada e no seu lugar tivéssemos só pastagens para vacas e plantação de soja, continuávamos a ter muito oxigénio para respirar. O problema é que deixávamos de ter a capacidade de retirar dióxido de carbono da atmosfera. O outro problema prende-se com a perda de biodiversidade. Há uma quantidade de espécies, animais e vegetais, que vivem na Amazónia e que se extinguiriam para todo o sempre.

Bolsonaro invocou a «soberania territorial» para responder aos apelos de Macron para a defesa conjunta da Amazónia. A defesa ambiental  compadece-se com as questões da soberania?

Essa é uma pergunta muito interessante e que não é de resposta fácil. Contudo, penso que a observação de Bolsonaro não faz muito sentido. Penso que a ajuda financeira de países mais desenvolvidos para a projetos de salvaguarda e conservação da Amazónia em nada ameaçaria a soberania do Brasil sobre aquela vasta parcela de território no continente sul-americano.

 

Cara da notícia

É uma das vozes mais autorizadas do país quando se fala em mudanças globais e alterações climáticas. O seu nome é Filipe Duarte Santos (nascido em Lisboa, a 15 de março de 1942), investigador, físico e professor universitário jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, atual presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS). Lecionou ainda, como professor convidado, em várias prestigiadas universidades nos Estados Unidos e na Europa. Recentemente, foi distinguido com o prémio «Carreira pela sustentabilidade», nos Green Projet Awards. Foi vice-presidente do Instituto de Meteorologia de Portugal entre 1987 e 1988, tendo posteriormente coordenado a redação do primeiro e único Livro Branco sobre o Estado do Ambiente em Portugal, publicado em 1991. É desde 1999 membro efetivo da Academia das Ciências de Lisboa. Licenciou-se em Geofísica pela Universidade de Lisboa e doutorou-se em Física Nuclear pela Universidade de Londres.

Nuno Dias da Silva
Jornalista
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