Entrevista

Pedro Strecht, médico pedopsiquiatra
Regresso à escola é arriscado mas imprescindível

Strecht1.jpgO regresso à escola é «arriscado», mas «fundamental e imprescindível». O pedopsiquiatra Pedro Strecht recomenda «sensibilidade e bom senso» a todos os agentes educativos, mas teme que a Covid-19 deixe marcas de uma «cultura de medo e evitamento relacional.»

No livro que editou recentemente, «Covid-19: uma lição de esperança no futuro», lança uma mensagem de esperança para este desafio permanente, sem fim à vista, de conviver com a pandemia. O seu alerta é uma espécie de contraponto a uma mensagem catastrofista que tem ecoado, desde março, na comunicação social e que é ampliada ou reduzida em função do balanço diário do número de casos apresentado pela DGS?
Sim. Penso desde o inicio que é importante evitar uma informação catastrofista, que é algo que, de uma maneira geral, alimenta cada vez mais uma certa comunicação social: a necessidade de criar impacto, abrir noticiários, num movimento que, seguramente, cria inevitavelmente uma resposta de pânico enquanto sinónimo de desorganização individual e social e que também, ao fim de algum tempo, leva a um dessensibilização progressiva que faz com se comente algo como "hoje só (sublinhe-se o só) x pessoas" (em vez das x mais uma centena que anteriormente sucedia).

Relata no livro emails trocados com pais e alguns diálogos mantidos com os seus pacientes. Medo e desorientação foram e são as duas principais reações de quem o procura?
Medo, desorientação, muito variável conforme as idades das crianças e dos adolescentes e ainda dependendo de estruturas emocionais anteriores. Mas, em muitos casos, pânico e incapacidade de lidar com algo que inevitavelmente não se conhecia e, aparentemente, não se conseguia controlar. Isto numa sociedade em que as pessoas erradamente criaram o conceito de omnipotência e omnisciência: sabemos tudo e tudo podemos fazer. Algo que é, evidentemente, falso.

«O novo normal» e o «vai ficar tudo bem», foram expressões que se tornaram célebres. No seu caso, prefere os três VVV (Vamos vencer o vírus). Qual é a estratégica psicossocial que defende para o período que resta até o vírus estar erradicado?
Penso que agora poderemos passar do «Vamos Vencer o Vírus», que me parece que até a DGS adotou no seu slogan, para um «Vamos Viver (melhor) com o Vírus para o ir Vencendo»…É uma construção mais realista e adequada ao que parece ser o futuro próximo

O confinamento privou os mais novos do contacto com os colegas da escola, com os colegas do desporto e até com os avós. Quão penalizador é o distanciamento entre pares e quais os efeitos a médio/longo prazo?
É péssimo. A partir de 13 de março de 2020 houve cerca de 1,5 milhões de crianças e adolescentes que foram confinados em casa e, subitamente, perderam o seu suporte de organização diária de vida: escolas, amigos, atividades extra, contactos livres com a família alargada. São factos que têm deixado marcas diversas e que, no futuro, vão fazer com que este período seja um marco incontornável das suas vidas.
É legítimo dizer-se que a uma crise sanitária, económica e social, vai ser adicionada uma crise psicológica? O excessivo foco na Covid-19 vai fazer desviar o foco de outras enfermidades e perturbações?
Já fez. Tivemos um esperado acréscimo de mortalidade nos meses iniciais que obviamente se deveram ao facto de outras patologias e respetivas consultas, seguimentos, intervenções médicas foram completamente suspensas. E na área da saúde mental já é público que, entre outras questões, aumentou a venda de psicofármacos como os ansiolíticos e os antidepressivos. Para se proteger a saúde física respeitante ao controlo da Covid, esqueceu-se também o bem-estar psíquico e social, que fazem parte da definição de saúde da própria OMS.

O psicólogo e pedagogo espanhol Javier Urra defende que os pais devem educar os filhos para a mudança, ou seja, para o novo paradigma emergente da pandemia. Concorda? De que forma?
Sim. Não há mesmo outro remédio. A pandemia produziu e vai continuar a produzir mudanças inevitáveis, como sempre acontece ciclicamente nas sociedades. Só espero que a evolução não seja para uma cultura do medo e do evitamento relacional.

A componente digital, com o teletrabalho, as plataformas Skype, Zoom e outras, foi reforçada nos últimos meses. No caso das crianças e jovens, que por norma absorvem tudo o que é tecnologia, essa proliferação pode acentuar a perda no foco no outro?
Pelo menos mudam o paradigma de relação e comunicação com o outro. Contudo, há que o afirmar, as redes sociais foram a completa tábua de salvação para muitos jovens durante estes meses de confinamento. O que seria deles sem elas?

Strecht2.jpgConcorda com os que argumentam que o ensino à distância, promovido desde março, contribuiu para agravar as desigualdades sociais? Qual é o risco de os estudantes com mais dificuldades sociais e até de aprendizagem sejam deixados para trás?
Claro que sim. Dou o exemplo de minha casa com três filhos e uma mãe em teletrabalho. Houve momentos em que poderia ter sido necessário o uso simultâneo de quatro computadores ou "iphones". É uma realidade impossível para tanta gente. Quanto às aprendizagens em si, não me preocupo tanto pois acho que de uma forma ou outra isso pode ser mitigado; assusta-me mais a perda de contacto e vivência psicossocial que esta situação determinou.

O regresso às aulas, previsto para meados do mês, é o grande desafio para autoridades educativas, de saúde e também para os encarregados de educação, muitos deles estão reticentes em mandar o seu filho para a escola. Não estaremos longe se dissermos que as escolas serão um laboratório vivo no teste do regresso às aulas. Perante o clima de inquietação, que conselho dá aos pais e a alunos? É a melhor estratégia continuar a manter o filho dentro de uma bolha, numa realidade assética?
A melhor estratégia é ajudar pais e filhos, tal como os professores e escolas em geral a lidar com "sensibilidade e bom senso", crentes que este regresso pode ter tanto de arriscado como de fundamental e imprescindível.

Porventura o mais delicado aspeto do regime de disciplina sanitária será o uso obrigatório de máscaras, muito provavelmente a partir dos 6 anos. Como li numa reportagem num jornal, esta prática, se não for bem explicada, pode ser entendida pelas crianças como uma espécie de castigo?
Não creio que seja a questão do castigo… Acho que, simplesmente, a infância e a adolescência em si são, do ponto de vista psíquico, o contrário da palavra confinamento; são crescimento, procura, descoberta, jogo, brincadeira, contacto físico e psicológico e é isso tudo que, em boa dose, espero que não se dilua ou perca no essencial.

Esta pandemia atinge-nos no nosso âmago existencial, nomeadamente às crianças e jovens, muitos deles em fase de modelação de personalidade. As eventuais sequelas que possam deixar devem procurar ser debeladas ao nível de intervenções terapêuticas, em detrimento de antidepressivos e ansiolíticos?
Bem, tudo deve ser feito antes da resposta fácil (embora quase sempre segura nos resultados) de dar medicamentos. Há muitos ajustes pessoais, familiares, sociais que são sempre possíveis e necessários para estas situações de crise. E uma boa "dica" será lembrar a velha máxima de Donald Winnicott, pedopsiquiatra britânico, de que «toda a crise contem em si mesmo um imenso potencial evolutivo».


No livro que agora lançou usa, em diversas ocasiões, a expressão «sociedade viral», muito assente na dinâmica das redes sociais e na forma como elas condicionam o fator relacional. Existe uma ditadura dos "likes" e da imagem que torna esta uma sociedade artificial e de aparências?
Completamente. E também uma ditadura da infalibilidade que agora foi posta em causa pela forma como surgiu o Covid e com se expandiu. A grande lição desta pandemia, para mim, é mesmo essa: a vida não se constitui apenas de aspetos positivos ou de vitórias; por vezes ela confronta-nos com dificuldades e perdas.

Strecht3.jpgNo seu livro «Hiperatividade e o défice de atenção» defende que ambas manifestações não são sinónimo de indisciplina, são antes perturbações que afetam crianças e adolescentes e devem ser tratadas. Prefere enveredar-se pelo caminho fácil de rotular, quando o que está em causa é um problema das famílias e da escola?
Exato. O facilitismo de rotular protege as pessoas, as escolas, as sociedades de pensarem um pouco mais sobre o seu próprio funcionamento e assim não ser necessário porem-se em causa e, eventualmente, mudar para melhor.

A crise pandémica juntou as famílias por mais tempo debaixo do mesmo teto. Em maio, tivemos o caso da morte da menina Valentina, em Atoguia da Baleia, alegadamente vítima de abusos por parte do seu pai e madrasta. Este foi o mais mediático, mas teve a particularidade de haver um histórico prévio, que não terá sido sinalizado pelas entidades competentes. O tão propalado superior interesse da criança continua mesmo a ser defendido ou é pura retórica?
O tão propagado superior interesse da criança é um horizonte vago e distante que diariamente vejo ser gerido por impulso, nunca através de uma estratégia global, não demagógica ou populista. Temos uma população muito envelhecida, mais dados estatísticos sobre o bem-estar infanto-juvenil. Não vejo porque se espera tanto por algo que já se deveria ter começado ontem.

Cerca de cem personalidades, entre as quais Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho, subscreveram um abaixo-assinado pelo direito dos pais à objeção de consciência em relação à disciplina de Educação para a Cidadania. Na sua opinião, esta disciplina deve ser opcional ou obrigatória? Não estamos perante um conflito de argumentos ideológicos no sistema de ensino?
O sistema de ensino público é o que é e, nesse aspeto. será sempre ideológico. Resulta também da escolha livre dos cidadãos quando decidem, em eleições, quem os governará, mesmo não concordando com diversos conteúdos (por exemplo, como médico pedopsiquiatra discordo de assuntos programáticos, em qualidade, temas e em quantidade, desde o 1.º ciclo) teremos sempre que respeitar o que está determinado, cabendo aos pais e famílias manter as suas opções e crenças, reforçando-as em sintonia ou em contraponto com as expressas na escola: a diversidade enriquece sempre, sobretudo quando não é medida pelo medo.

 

CARA DA NOTÍCIA

O foco nas crianças e nos adolescentes

Nascido em 1966, Pedro Strecht é médico de psiquiatria da infância e da adolescência. Trabalhou no departamento de pedopsiquiatria do Hospital de D. Estefânia em Lisboa, foi professor do ensino secundário oficial e particular e supervisor da Comissão Regional de Lisboa do Projeto de Apoio à Família e à Criança. Fez breves estágios na Tavistock Clinic, Brent Adolescent Centre, em Londres, e na Mulberry Bush School, uma comunidade terapêutica que acolhe e trata crianças vítimas de privações emocionais múltiplas. Para além da atividade privada, é médico do Centro de Estudos Dr. João Santos "Casa da Praia" e da Cooperativa "A Torre". Trabalhou e colaborou de perto com Teresa Ferreira e Daniel Sampaio, entre outros. Tem uma ampla obra publicada e dos seus vários livros destacam-se "Crescer Vazio", "Preciso de Ti - Perturbações Psicossociais em Crianças e Adolescentes", "Recados do Tempo do Menino Jesus - Histórias de Natal para Crianças", "Interiores - Uma Ajuda aos Pais sobre a Vida Emocional dos Filhos" e "Quero-te Muito - Crónicas para pais sobre filhos". O mais recente chama-se «Covid-19: uma lição de esperança no futuro», da editora Manufactura. É ainda colaborador habitual na revista "Pais e Filhos".

Nuno Dias da Silva
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