Duarte Gomes, ex-árbitro
«A nossa cultura desportiva está virada para o resultadismo»
Duarte Gomes iniciou a carreira aos 18
anos e aos 24 tornou-se um dos árbitros mais jovens de sempre a
ascender à primeira categoria. Árbitro de categoria internacional,
após 25 anos de carreira abandonou os relvados, em 2016. É
comentador no «Expresso» e na SIC e SIC-Notícias, onde
apresenta o programa «Ó Sr. Árbitro». Tem ainda uma
coluna de opinião no jornal «A Bola».
O seu programa «Ó
Sr. Árbitro», emitido na SIC e SIC-Notícias, está a ser um sucesso
de audiências, e pretende mostrar o outro lado do futebol, dos
escalões inferiores. O objetivo passa por aproximar a arbitragem do
adepto comum?
O programa
tem, basicamente, como pano de fundo, a arbitragem distrital. Como
é que no meio de tanta violência, polémica e suspeição é possível
cativar os jovens para vir para a arbitragem? Miúdos que têm de
abdicar do seu fim de semana, para obter remunerações que mal dão
para as despesas e que acabam por ser agredidos e insultados,
muitas vezes. E é deles que eu procuro falar e retratar em todos os
programas do «Ó Sr. Árbitro». Para além disso, procuro falar de
algumas regras do jogo, de forma didática, de forma a esclarecer
muitos apaixonados pelo futebol. Isto sem esquecer a menção a
diversos protagonistas, ilustres anónimos para o grande público,
como veteranos que ainda andam pelos relvados ou uma árbitra a
apitar um jogo de seniores masculinos, etc. Acho que o sucesso do
programa significa que as pessoas ainda acreditam no futebol em
estado puro.
A arbitragem
acompanhou a evolução do fenómeno futebolístico?
A
arbitragem historicamente sempre se fechou muito. Atacados por
todos os lados, sentimos que era no nosso casulo que estávamos mais
confortáveis. Acontece que, em pleno século XXI, as dinâmicas
informativas são hoje vertiginosas, e em que fruto da rapidez do
online, tudo é imediato e aberto, está na hora da arbitragem dar o
salto e se expor. Não pode haver nada a esconder. Eu procuro dar o
meu contributo, aproximando o adepto ao árbitro, que é um ser
humano e que erra. Parece um cliché, mas este ser humano quando
erra, sofre com isso e fica muito incomodado. A sensação que existe
na opinião pública, que os árbitros quando erram ficam impunes, não
é verdadeira. Os árbitros são penalizados na sua avaliação e esse
desempenho pode provocar a sua despromoção no final da temporada,
precipitando o fim da carreira. É bom que as pessoas saibam que não
há um fundo de pensões que nos proteja quando se termina a
carreira, seja por despromoção, limite de idade ou lesão.
O árbitro é o
eterno bode expiatório do sistema?
Admito que
apelidem um árbitro de incompetente, mas não o podem é chamar de
desonesto. A primeira observação é uma crítica técnica à sua
competência, e é aceitável, agora atacar o árbitro por falta de
idoneidade, eu não posso tolerar. Esta geração de árbitros, que eu
conheço, tem muita qualidade e é muito bem formada. Muitos deles
têm a sua subsistência garantida, para além da arbitragem e fazem o
seu melhor. E estão escrutinados, especialmente pela TV (um jogo é
filmado por mais de 10 câmaras), de forma injusta. Acontece que o
telespetador em casa tem muito mais meios de decisão do que o
decisor em campo.
Tem feito do
reforço do policiamento uma bandeira da sua intervenção e tem sido
crítico da demissão do Estado. A situação exige medidas
rápidas?
Os últimos
meses foram calamitosos em termos de aumento das agressões aos
árbitros, triplicando face ao ano anterior. Confesso que abracei
esta causa muito a peito e cheguei mesmo a visitar dois jovens
árbitros que foram internados para receberem cuidados médicos. Mais
do que a agressão física é as marcas psicológicas que estas
agressões deixam. O futebol está virado do avesso e um dia, quando
dermos por nós, aconteceu uma morte em campo. E nesse dia o
país vai parar e vão querer apurar-se responsabilidades.
Infelizmente, somos mais reativos e devíamos ser mais
preventivos.
A inexistência de
policiamento num campo é meio caminho andado para acontecerem
agressões?
Está
comprovadíssimo que o maior número de casos de agressões a árbitros
acontece em jogos em que não há policiamento, especialmente nas
camadas inferiores. A figura da autoridade é dissuasora.
Qual é o balanço
do número de árbitros vítimas de agressão na temporada
2016/2017?
No momento
em que falamos o número cifra-se em 48 árbitros agredidos. O que
perfaz mais de dois casos por fim de semana desde o início da
época. É inadmissível num país que é campeão europeu de futebol.
Mas as raízes podem ser encontradas estruturalmente: ou seja, a
falta de cultura desportiva, a falta de prevenção, a formação dos
dirigentes, o excesso de competitividade que os próprios pais
fomentam nos seus filhos e que exigem que eles ganhem a todo o
custo e sejam os novos Cristianos Ronaldos. Naquelas idades tão
jovens o que deve ser incutido é o prazer de jogar, dar tudo pela
equipa e o respeito pelos valores. Porque o futebol pode e deve ser
uma grande escola de valores e formação de homens. Infelizmente, a
nossa cultura desportiva está muito virada para o resultadismo.
E este problema de
fundo resolve-se ao fim de várias décadas, com mais
formação?
Naturalmente, o foco reside na aprendizagem. Implica ações nas
escolas de jogadores e nas escolas básicas, um grande envolvimento
da Federação, da Liga e do próprio Estado para aculturar esta nova
geração a respeitar valores, como saber ganhar e saber perder,
mesmo que existam erros. Para já mobilizar mais agentes para os
campos de futebol é apenas um penso rápido ou um analgésico, mas
que não resolve o problema de fundo. Eu lembro-me sempre do que os
ingleses fizeram quando perceberam que tinham um problema sério com
o hooliganismo. Sentaram-se todos à mesa, deixaram de olhar para o
seu umbigo - prática que é muito habitual em Portugal - e atacaram
o problema, estancaram-no, numa fase inicial, com a punição. Multas
severas, jogos à porta fechada, adeptos perigosos na esquadra à
hora dos jogos e reforço das câmaras de vigilância para identificar
os hooligans, foram algumas das medidas de choque tomadas. Pelo
menos internamente o problema foi erradicado, isto apesar de os
ingleses se continuarem a portar mal fora de portas. Basta ver os
jogos da Premier League para constatar que não há vedações e os
bancos de suplentes estão colados às bancadas. Este é um bom
exemplo que devia ser copiado.
A fogueira está
muito incendiada, mas a gasolina que é atirada todas as noites nos
programas de debate nos canais por cabo só acicata mais os ânimos.
Há pensos rápidos para isto?
A
comunicação social é culpadíssima porque tem interesse comercial na
promoção de produtos inflamatórios. E porque é que estes programas
se mantêm? Porque têm audiências, apesar de serem muito criticados.
Estes programas são o espelho da nossa cultura desportiva. Não é
por colaborar com a SIC-Notícias, mas entendo que é o canal que
consegue manter um equilíbrio na análise e comentário do dia a dia
futebolístico. A televisão fomenta a guerrilha verbal, mas as redes
sociais também têm um poder enorme. E os próprios departamentos de
comunicação dos clubes são um dos focos de maior investimento dos
principais emblemas que estão cientes da sua importância. As
pessoas ficam contaminadas e deixe-me dizer que as culpas são
transversais, não há inocentes.
Assumiu
publicamente ser adepto do Benfica. A sociedade portuguesa está
preparada para esta declaração de interesses dos
árbitros?
Sou
simpatizante do Benfica desde miúdo e não é por ter ido para
árbitro que reneguei as minhas crenças clubísticas, religiosas ou
políticas. As pessoas não podem pedir aos árbitros que tenham a
hipocrisia de esconder uma realidade enquanto pessoas. Jorge Jesus,
conhecido sportinguista, não ganhou títulos pelo Benfica,
demonstrando o seu profissionalismo? Lá está, o grande problema dos
portugueses continua a ser cultural. Por isso, respondendo à sua
pergunta: a sociedade não está preparada para os árbitros assumirem
as suas preferências clubísticas. E os árbitros têm medo de o
assumirem, porque temem represálias.
Como se prepara um
árbitro para um clássico ou um dérbi de alta tensão?
Desde que
se recebe a mensagem da nomeação, à terça ou à quarta-feira, até
que se entra em campo, no sábado ou no domingo, há um sem número de
tarefas a cumprir. Primeiro, falar com a equipa de arbitragem,
perceber qual é o jogo, a importância para a tabela classificativa,
conhecer os jogadores, os treinadores, saber qual dos atletas
protesta mais, quem é o líder da equipa, etc. É preciso perceber
também o esquema tático em que habitualmente as equipas jogam. E há
outros detalhes, como o estado do tempo, o estado do relvado, a
acústica do estádio, o número de espetadores previstos, ver se a
viagem ate ao estádio é longa e é preciso ir de véspera, combinar a
indumentária para a equipa de arbitragem ir o mais uniforme
possível, porque é um sinónimo de força e profissionalismo para nós
e para o exterior. E, claro, definir os horários de chegada ao
estádio com a máxima pontualidade. Isto sem esquecer o equipamento
que se leva para dentro de campo, ou seja, os calções e a t-shirt
engomados e as botas impecavelmente engraxadas.
E minutos
antes do jogo, há os que fazem o chamado «aquecimento mental», por
exemplo os árbitros assistentes, podem, num vulgar ipad ou tablet,
treinar situações de fora de jogo para entrarem em campo já
completamente despertos. Não estarei a exagerar, se disser que a
preparação de uma equipa de arbitragem é tão exigente quanto a de
uma equipa de futebol antes de um jogo.
Apesar de nem
todos os juízes serem profissionais…
O regime
da maior parte dos árbitros é semi-profissional, mas a preparação
para os jogos é profissional a 100 por cento. Não tenho dúvidas em
afirmar que em termos de preparação física e técnica a arbitragem
nacional está no expoente máximo, ao nível das melhores do
mundo.
O que é um bom
árbitro para si?
Para mim o
bom árbitro é o que se prepara, técnica e fisicamente, mas que
antecipa as faltas e prima pela pedagogia e pela prevenção dentro
de campo no diálogo com os atletas. O contrário disto é o árbitro
reativo.
O vídeo árbitro
vai ajudar?
Estou
otimista. Mas desenganem-se as pessoas que estão convencidas que o
vídeo-árbitro vai eliminar toda a polémica. Não vai. Dou um
exemplo: se o vídeo árbitro reparar que há um segundo amarelo dado
injustamente, não pode fazer nada. Para já, segundo o protocolo,
está definido apenas para cartões vermelhos diretos, lances de
penalti, foras de jogo com golo e a troca de identidades.
Vai continuar
ligado à arbitragem?
Acredite que vivo muito do presente
e honestamente não sei o que me reserva o futuro. Sei que a minha
linha de orientação, vá para onde for, vai ser sempre esta:
transparência, pedagogia e dar o corpo às balas. Porque quem não
deve não teme.
Nuno Dias da Silva
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