Entrevista

Pedro Henriques, ex-árbitro
«Os penaltis deviam ser todos repetidos»

pedro-henriques.jpgTenente Coronel de Infantaria na reserva, Pedro Henriques foi árbitro da primeira liga de futebol  até 2010. Depois de ter sido comentador na TVI, TVI 24 e jornal «O Jogo», transferiu-se  no passado verão para a Sport TV, onde  comenta os lances de arbitragem.

Que caraterísticas deve ter um jovem que sonha ser árbitro?

Para ser árbitro é preciso gostar de organizar, de liderar, de gerir.  E também gostar de pessoas e ter a apetência para falar com os outros, perceber que há personalidades e feitios distintos, ainda para mais no contexto desportivo, que é muito peculiar. Para além disso, é preciso ter independência, integridade de espírito e de caráter, e depender de si próprio. No fundo, possuir honestidade intelectual, em todos os aspetos. E não esquecer a humildade. Dou-lhe um exemplo: quem não a tiver, põe-se logo em bicos de pés, porque, mesmo num jogo dos distritais, passa a por e dispor de 22 jogadores dentro de campo, dos suplentes, dos treinadores e do público que assiste ao jogo. Sente-se «dono e senhor» de um conjunto de pessoas que dependem das suas decisões. Não deve ser esta a postura.

Como é que um jovem que sente vocação para árbitro se deve candidatar?

Hoje em dia é muito fácil. Basta pesquisar na internet a associação de futebol do distrito onde a pessoa reside e rapidamente encontrará os cursos e as formas de recrutamento que existem.

Compensa monetariamente ser árbitro?

Os valores que se praticam na arbitragem ao nível do futebol profissional permitem que qualquer árbitro seja isento e rigoroso em todos os aspetos e que construa uma carreira que financeiramente é bastante apetecível. Um árbitro de futebol que esteja inserido na profissionalização - e o futuro será esse - já aufere 2500 euros de base. Para além disso, há os extras, por exemplo, cada jogo na Liga principal representa mais de mil euros. Num mês, um árbitro desta categoria aufere 5/6 mil euros mensalmente. A juntar a isto, se mantiver uma atividade profissional que permita compatibilizar com a arbitragem então a vida de um árbitro é perfeitamente tranquila e com algum desafogo.

Um árbitro a este nível está imune à corrupção?

Completamente. Eu diria que o próprio crime não compensa. E, no futuro, depois de abandonar a arbitragem, há muitas portas que se abrem, nomeadamente, no meu caso, que já fiz comentários na TVI e no jornal «O Jogo» e agora estou na SportTV. Quem souber gerir isto, não tem necessidade de entrar noutras loucuras.

Diz que os árbitros estão vacinados contra as ameaças, mas a pressão, inclusive sobre familiares, é cada vez maior. Mesmo que se negue, não há um condicionamento subliminar?

Não condiciona do ponto de visto do trabalho em campo. Os árbitros cresceram na adversidade permanente e perante ameaças que veem de todo o lado. No primeiro jogo que apitei, na Damaia, comecei logo a ser insultado de todas as formas e feitios. A partir daí, percebi que tinha de me habituar a este contexto. A única solução é o árbitro seguir o seu caminho. Os que não aguentam - e são poucos - acabam por desistir e nem sequer alcançam a primeira categoria. Mas, para ser sincero, o que tememos, na maior parte das vezes, não é propriamente o que se pode passar connosco, mas em relação aos nossos familiares, sejam filhos, pais, esposas, etc. Claro que há precauções a ser tomadas, com proteção policial aos árbitros e aos seus familiares, mas somente em situações extremas.

A vida social do árbitro é alterada?

Eu acho que alguns árbitros falham na gestão da sua exposição. Eu antes e depois dos jogos de maior tensão, sempre procurei minimizar os riscos de estar exposto, evitando ir às compras, ir ao restaurante, ir buscar a minha filha à escola, ir abastecer o carro, etc. Lembro-me, por exemplo, do caso do Pedro Proença que foi agredido no Colombo, em Lisboa. Bem sei que podia ter sido em qualquer lugar, mas eu quero recordar que na véspera ele tinha arbitrado a final de uma Supertaça. Gosto imenso dele, mas pessoalmente nunca teria ido para o centro comercial no dia seguinte ao do jogo, que por acaso até foi entre dois clubes que não eram de Lisboa, mas expôs-se, a meu ver, desnecessariamente.

O policiamento obrigatório dentro de campo atenuaria a ameaça perante os árbitros?

Basta existir um elemento policial para haver um efeito dissuasor importante. Veja-se o caso que aconteceu em Rio Tinto com o jogador do Canelas que agrediu o árbitro. Os polícias destacados para o jogo entraram prontamente em campo e sanaram a situação. Sem agentes, teria sido muito complicado, inclusive o clima de confusão podia alastrar para as bancadas e as consequências seriam imprevisíveis. Mas esta questão reside nas mentalidades e na cultura desportiva.

O poder político tem-se demitido das questões mais sensíveis relacionadas com o futebol?

O poder político podia intervir na questão das penalizações. Estou a falar nas sanções desportivas e criminais justas e rápidas. As multas pecuniárias e as suspensões são demasiado reduzidas. A realidade é diferente noutros países. José Mourinho levou mais de 60 mil euros de multa em Inglaterra. Eu quero recordar que este jogador do Canelas que agrediu o árbitro só pode levar um castigo até quatro anos de suspensão. Não há irradiação. Devido ao mediatismo do futebol, se a penalização não for categórica e não for tão badalada quanto foi o crime, não servirá de exemplo no futuro. E isto é válido para o jogador, o treinador ou o adepto.

Diz que a arbitragem lida mal com a comunicação social. Preconiza uma postura de maior abertura?

Sim, defendo esclarecimentos mais regulares da arbitragem. Não é possível fechar o setor sobre si mesmo. Vedar os briefings sobre os casos da jornada da Liga à comunicação social televisiva foi incompreensível. A arbitragem evita entrevistas e normalmente só fala quando há desgraças, o que faz com que fique associada a situações problemáticas e de carga negativa. A arbitragem é muito mais do que a discussão do penalti e do fora de jogo, por isso, entendo que precisa de mostrar esse lado de humanização para o exterior. É o lado da comunicação que falha ao nível dos dirigentes da arbitragem.

No livro «Árbitro de bancada» passa em revista as 17 leis do jogo. O adepto comum conhece na ponta da língua as leis que regem o desporto rei?

Conhece muito mal e não são apenas os adeptos de bancada, mas os próprios intervenientes do jogo. Têm uma noção do essencial, do fora de jogo e do penalti, mas as situações mais excecionais são, muitas vezes, desconhecidas.

Tenho ministrado várias formações em clubes, de camadas jovens e seniores, e quando se desbrava um pouco mais as leis e se foca o essencial, o desconhecimento existe sobre as leis do jogo. Mas isto tem a ver com a cultura instalada. Os clubes e os próprios pais estão muito preocupados com a parte técnica e tática do treino e esquecem-se, muitas vezes, dos outros aspetos, como o fair play, os bons costumes, a nutrição, a recuperação, a psicologia, etc. E as leis do jogo também ficam à margem. 

O penalti por mão na bola ou bola na mão e o assinalar dos fora de jogo são o cerne das mais insanáveis polémicas no futebol. Esta subjetividade é benéfica ou prejudicial para o jogo?

É de tal forma apaixonante e fascinante que é o tema da minha tese de doutoramento que estou a desenvolver. A minha dissertação visa olhar para as leis do jogo, fazer uma comparação com as alterações introduzidas noutros desportos e debruçar-me sobre as situações em que os árbitros ajuízam sobre intenções, quando deviam estar a ajuizar factos. É a tal avaliação da intencionalidade nos lances da bola que vai à mão no penalti, o atraso ao guarda-redes, etc. Por prevalecer o critério do árbitro, aumenta a subjetividade. Finalmente, na minha tese, debruço-me sobre as leis que não são cumpridas.

Quer dar-me um exemplo?

Não há nenhum lançamento de linha lateral que seja executado no local onde a bola sai. Os penaltis deviam ser todos repetidos, por violação da área ou porque o guarda-redes se mexe. Eu analisei 300 lances de marcação de grande penalidade e em todos registou-se a violação da área. Estas são apenas algumas das leis que o árbitro não consegue fazer cumprir.

E na sua investigação faz propostas?

Sim, por exemplo, na questão dos descontos. Acabava o tempo de compensação depois do minuto 90 e o tempo de jogo era unicamente cronometrado com a bola dentro de campo, ou seja, o tempo útil. O lançamento de linha lateral podia ser ao pé e estavam resolvidos os casos de incumprimento da lei. E há outro aspeto que mostra como o futebol não tem acompanhado a realidade. Nos últimos 100 anos os europeus cresceram cerca de 16 ou 17 centímetros, em média. Mas também há um século que as balizas continuam com 7,32 metros por 2,44 metros e as barreiras continuam a ser colocadas a 9,15 metros. Se reparar, atualmente, os jogadores preferem marcar os livres o mais atrás possível, porque, caso contrário, a bola fica na barreira. A única lei que protege quem ataca é a do fora de jogo, todas as outras protegem quem defende. E depois os senhores que mandam no futebol querem mais golos! É uma contradição.

Tem uma vida académica e de investigação muito intensa, especialmente no domínio do desporto. Somos os eternos adeptos de bancada e ainda muito pouco praticantes?

Os portugueses toda a vida foram mais adeptos do que praticantes. E acho que é muito importante ter participado nalguma fase da vida por dentro do fenómeno desportivo, nem que seja num período de formação ou escolaridade. Mas as próprias entidades muitas vezes não dão o exemplo de apoiar os que apostam no desporto e resistem em dispensar os atletas para preparem e participarem em provas desportivas. Já para não falar nos empregos convencionais, em que é uma problemática convencer o patrão a facilitar a dispensa do colaborador. Ou seja, a estrutura laboral e escolar não facilita quem eventualmente queira ter uma atividade desportiva em paralelo. O recente estudo sobre os níveis de obesidade da população portuguesa devia fazer muita gente refletir. É a tal cultura desportiva que não temos. As pessoas hoje justificam que não têm tempo para a saúde - o mesmo é dizer, para o exercício físico -, mas um dia terão de ter tempo para lidar com a doença.

As nossas elites dirigentes, desportivas e políticas, deviam fazer do desporto uma causa nacional, muito para além do futebol?

O nosso dirigismo, seja ele político ou desportivo, é muito mau. De todos os intervenientes do fenómeno desportivo são os que menos evoluíram. Os árbitros evoluíram, a medicina desportiva evoluiu, os jogadores evoluíram. Os dirigentes mantêm-se fiéis à cultura da vitória, de dizer mal de tudo e todos, de despedir o treinador, etc. Assim é difícil progredir e transmitir bons exemplos.

Nuno Dias
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