Pedro Abrunhosa 20 anos depois
As Canções em Contramão
Contramão, o mais recente trabalho discográfico de
Pedro Abrunhosa, chega 20 anos depois do seu primeiro álbum
(Viagens 1994) . Num momento social difícil para Portugal, o músico
diz que «Contramão é a devolução de alguma esperança às
pessoas».
Nos Braços da Minha Mãe, o tema de apresentação do disco, conta com
a participação do fadista Camané e fala do drama dos que são
obrigados a emigrar e de saudade.
O que é que o
público pode ouvir em Contramão?
É um
lugar comum responder assim, vão ouvir canções. As canções são um
acto artístico na fronteira da literatura e da música. O
somatório das duas formas de expressão artística. Mas, a canção é
uma arte totalmente independente das outras, existe por si.
Em Portugal temos uma grande tradição na canção. Desde os
madrigalistas dos séculos XV e XVI até aos nossos dias temos
grandes cantadores de histórias. As canções são histórias do
dia-a-dia que o autor vai observando e pondo em música. Depois,
cumprem a função de congregar as pessoas no mesmo espaço e no
momento que dura a canção.
O
que as pessoas podem ouvir no Contramão são mais canções, mais
histórias, motivos para se juntarem, sobretudo num momento tão
difícil para o país. Mas também motivos para terem esperança, para
chorarem e celebrarem, se for caso disso.
Acabou de referir
que as músicas, no fundo, são histórias. Dois dos temas
acrescentam-lhe dois personagens: Camané e Duquende, um conhecido
cantor de flamengo. Foram personagens perfeitos para as histórias
pretendidas?
Para
os Braços da Minha Mãe canto com o Camané, que para mim é o
expoente máximo do fado no masculino em Portugal. Tem uma voz
única, que comove e me toca particularmente. Convidei-o para
fazer a música Para os Braços da Minha Mãe que conta a história dos
portugueses, novos ou velhos, que têm de emigrar nesta altura. Vão
para fora com grandes dificuldades pois atravessam períodos
complicadíssimos nas suas vidas. 24 portugueses abandonam por
dia, definitivamente, o país. Um português por hora. É uma tragédia
nacional. A canção Para os Braços da Minha Mãe narra a história
desses personagens que partem, têm saudades e no final dizem querer
voltar para os braços da mãe. Mesmo adultos feitos, de barba rija,
os braços da nossa mãe é sempre o sítio mais acolhedor. Este país a
quem damos tanto (não é o país que nos expulsa, é o Estado ou o
estado das coisas) acaba por cumprir uma função altamente negativa.
Os pais dos estudantes que estão agora a emigrar pagaram impostos,
as propinas dos filhos, alimentaram o sistema e quando chega ao fim
é o próprio governo que diz "agora emigrem". Esta música tem esse
valor simbólico e para o Interior do país tem um valor simbólico
ainda maior. O Interior sofreu muito com a primeira vaga de
emigração, nos anos 60, e agora volta a sofrer com esta
vaga.
E a música com o
Duquende?
A
música com o Duquende fala da saudade. Raramente falo da palavra
porque já foi explorada de mais na música lusófona,
portuguesa, brasileira, cabo verdiana. Mas escrevi uma canção
chamada Saudade que defino com uma série de frases chave. Começo
com «saudade é querer a luz de uma janela que não abre». Depois
traduzi a música para espanhol, ajudado por dois professores da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Convidei o grande
Duquende, que é o maior flamequista vivo, para interpretar a música
comigo. O Duquende chegou ao meu estúdio no Porto e fez um trabalho
notável, que está agora à vista de todos. Certamente, foi um dos
momentos mais altos da minha carreira. O resultado final é uma das
canções mais bonitas que escrevi, na qual tenho um grande orgulho.
Curiosamente, é um cigano catalão, flamequista, a dizer em
castelhano, aos portugueses e aos espanhóis, o que é a saudade,
palavra que não existe no castelhano.
O título genérico
deste trabalho é um espelho da atual situação do país. Na sua
opinião vivemos num ciclo em plena contramão?
O país está na mão que nós permitimos que
estivesse. Não nos podemos demitir da democracia e do facto de
termos sido nós a eleger os dirigentes que temos. Isto não tem a
ver com os partidos, tem a ver com as pessoas. Os partidos são
pessoas, ao votar nos partidos estamos a votar nas pessoas. Os
partidos são as grandes bandeiras da democracia, é fundamental que
existam. Mas que tenham à sua frente pessoas nas quais possamos
confiar. O primeiro acto político de um cidadão é pagar impostos,
não é votar. Ao dar dinheiro ao Estado estamos a dizer «administrem
bem o meu dinheiro, pois este dinheiro custou-me a ganhar». Os
políticos são os responsáveis por gerir mal o nosso dinheiro, mas
quem os colocou lá fomos nós cidadãos. Se calhar está na altura de
olharmos para dentro de nós e perceber se estamos a votar bem. E
também de os partidos se perguntarem se estão a colocar as pessoas
certas nos cargos. É uma larga questão a discutir.
Em
Contramão…
Quem
está em contramão somos nós, os 10 milhões de portugueses. No
início do século XXI, retrocedemos em termo de civilização para o
período mais negro do Estado Novo. Recuamos 50 anos, com os cortes
nas pensões, nos salários. Nunca julguei que o país, depois da
revolução do 25 de Abril, atingisse níveis absolutamente
assustadores. Tão pobre, com fome, frio. Há pessoas que não têm
dinheiro para comprar lenha ou gás. Não sei se quem está nos
corredores do Parlamento se apercebe desta realidade. Se calhar
nunca tiveram frio. Temos de construir agora a nossa própria
contramão: ser resilientes, não desistir, não baixar os braços,
lutar.
Aquilo que mais me assusta, quando regresso a Portugal das
minhas viagens pelo mundo, é ver que os dirigentes nacionais não
têm capacidade de dar esperança às pessoas. Não conseguem apontar o
caminho, construir um sentimento positivo e restituir às pessoas a
esperança que elas já tiveram. Se, eventualmente, há algo pior do
que tirar os bens essenciais é tirar a esperança. Contramão é a
devolução de alguma esperança às pessoas. Que se encontrem nestas
músicas e juntos percebamos que há coisas que é possível fazer. A
arte tem a função de melhorar a qualidade de vida das
pessoas, de as juntar onde outras coisas separam. Que a música
tenha essa função de estar em contramão com o espírito negativo com
que os sucessivos governos têm gerido o país.
Contramão é a mais
recente edição discográfica. O seu primeiro trabalho foi editado em
94, Viagens. De todos os trabalhos editados há algum especial, que
o marcou mais ao longo da carreira?
Os discos são todos filhos do
mesmo pai, por isso é muito complicado falar disso. As canções são
todas da minha autoria, as músicas e as letras, também. No primeiro
disco tive a parceria do meu saudoso irmão, entretanto
desaparecido, e da Regina Guimarães, em duas canções. É difícil
regressar atrás e escolher um disco. Um foi feito em Nova Iorque,
outro em Londres, em Memphis e em Minneapolis, nos EUA, e
todos deixaram muitas saudades, até do lugar onde foram feitos. O
Silêncio foi gravado perto de Londres, num castelo onde existe um
estúdio, no meio da floresta. Para mim foi o disco mais poético,
por causa do ambiente. Mas também foi o disco mais duro, mais
agressivo. Os discos, tal como os livros, ficam para trás e o autor
não os volta a ler. Não volto a ouvir os meus discos. Passo dois
anos à volta com eles e depois largo-os. Estou preocupado agora é
com o meu próximo disco. O melhor é sempre o último.