Opinião

Memórias Ficcionadas
Rebeldia Estudantil

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«Canta, poeta, canta!

Violenta o silêncio conformado.

Cega com outra luz a luz do dia.

Desassossega o mundo sossegado.

Ensina a cada alma a sua rebeldia.»

(Miguel Torga, "Voz Activa" in Diário XIII, 1983: 461)

 

«não se ensina a rebeldia (…) mas é preciso ensinar a disciplina.»

(entrevista de António Barreto à revista Cx, nº 3, 2011, p. 58)

 

Naquele seu primeiro ano de universidade, as aulas no ISCSPU iniciaram-se na segunda semana de Novembro (só com cadeiras anuais); em fins de Maio começaram os exames que, como habitualmente, se prolongaram, por dois meses, numa «sucessão, sucessiva, sem cessar» de provas escritas e orais. Que diferença do calendário bolonhês das 15 semanas/semestre, com arranque lectivo já em Setembro (ainda com cheiro a verão e praia), um fugaz período de exames, por onde só passam alguns, e de onde as orais foram banidas!

Entre as disciplinas com o complemento "do Ultramar Português", a Etnografia, uma das nucleares, acabou por os lançar para o campo da crítica pedagógica e, consequentemente, para a rebeldia estudantil que, naqueles tempos, desembocava, inevitavelmente, no antro do associativismo. E tudo porque o Prof. JPNetus, recém-doutorado com "bola preta" (o que não o impediu de singrar na Academia e no Partido), provocou um "tsunami" na época normal de exames: chumbos em barda e notas humilhantes para, os poucos, sobreviventes. Arcílio, apesar de ter deixado o "cadeirão" para 2ª época pois tinha-se baldado à maioria das aulas, ficou tão indignado quanto os colegas. Por solidariedade, juntou-se ao movimento de contestação que rapidamente emergiu, no troca palavra dos corredores. Sentiram que a "ligeireza" das aulas não tivera correspondência na exigência excessiva do exame. Nessas aulas de Etnografia, JPNetus falava de tudo um pouco, acabando sempre por se repetir, quando batia na tecla "da curiosa constatação social do número de lamborghinis na região do Porto"; no seu discurso, ao sabor da corrente e do improviso, não se vislumbrava leitmotiv temático, sequência articulada de conteúdos, clarificação de conceitos, ou definição de objectivos, em suma, qualquer estruturação didáctica das matérias. Mas não tinha a graça e a sabedoria de um Vitorino N., de Letras. Foi de tudo isso que resolveram dar conta num documento de desagravo. Até os colegas mais velhos, funcionários da administração colonial, como o assíduo-e-pontual Firmino, se juntaram às "reuniões conspirativas", na sala verde do 1º andar, num exercício de auto-reflexão que  conseguiu reconstituir, com "detalhe etnográfico", o quotidiano lectivo daquelas lições mal preparadas e mal d[espeja]das. Deram por concluído o documento - longo, minucioso, fundamentado - antes de irem para férias, adjectivadas, e bem, de grandes.

- Está entregue! - disse, entre aliviado e orgulhoso, Jonas Guevara que havia liderado o processo, com mestria, sem extremismos de linguagem, conseguindo, desse modo, agregar as "vítimas" daquele razia académica, em torno de um texto consensual que, todavia, não abdicava da acutilância e do rigor.

No mês de Outubro, a um sábado de manhã, poucos arriscaram ir ao exame de 2ª época. Arcílio foi, como programado. O exame constava apenas de uma pergunta de desenvolvimento: «a economia das populações menos ocidentalizadas no contacto de culturas». Dias volvidos, quando afixaram a pauta, ficou estupefacto. O professor acabara de aplicar a velha máxima dos docentes "acossados": põe-se fim à "rebelião" dos estudantes com uma pauta sem reprovações, muita "água benta" e inflação de notas. Arcílio saiu com 15!

Ao verem as classificações, os que acharam que não valia a pena correr o risco de nova dose, torceram a orelha. Arrependeram-se da falta de persistência e do não acreditar nos efeitos práticos daquela "justa luta", como lhe chamavam os dirigentes da associação de estudantes. Nunca pensaram que o Prof. cedesse tão facilmente!

E foi em torno deste "incidente crítico" que Arcílio, Jonas Guevara, Jota C, Morenus e Ver(d/m)elho do Pico deram os seus primeiros passos na tomada de "consciência pedagógica". Numa época em que os estudantes não eram incentivados no trabalho de grupo, onde o "colectivo" era depreciado, e a contestação (ao que quer que fosse) logo entendida como acto de subversão, aquela fora uma experiência onde adquiriram, na linguagem do eduquês, as "competências" sociais e cívicas. Consolidaram a sua amizade, ganharam espírito reivindicativo e não mais pararam naquelas lides. Da pedagogia à política, foi um pulo. Com "os da Associação" a acompanharem de perto todo o processo, e a valorizarem o movimento contestatário (importa recordar que se estava num período de refluxo de combates académicos onde a crise de 69 tinha deixado marcas e medos), o "prémio", por aquela atitude de rebeldia, chegou com o convite formulado, pelo sempre optimista e divertido Antonino, da Direcção, para integrarem os corpos sociais da Associação Académica no ano lectivo seguinte. E assim entraram no "clube dos associativos"… até que o fim da licenciatura separou os compagnons de route.

Luis Souta
Este texto não está redigido segundo o novo, discutível e muito contestado Acordo Ortográfico
luis.souta@ese.ips.pt
 
 
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