Inês Pedrosa, Escritora
«O ensino atual cria papagaios de repetição e cidadãos passivos»
Inês Pedrosa arrasa o sistema de ensino defendendo a
sua reestruturação a fundo a par com os programas de educação. A
escritora e jornalista fala do «desaparecimento da política», do
«tenebroso vício das "cunhas"» e afirma que seria um sinal de
mudança importante ter uma mulher no Palácio de Belém, tal como
ficciona no seu último romance, «Desamparo».
O seu mais
recente romance, «Desamparo», é uma metáfora de um país com
cicatrizes e sequelas dos anos da troika?
O desamparo descrito neste romance
não se cinge aos anos da troika, nem a Portugal. Há nele histórias
de emigrantes portugueses e imigrantes do Brasil em Portugal. Diria
que se trata de uma parábola sobre o desenraizamento, a solidão, o
abandono e a traição, sentimentos dominantes numa
época em o mundo se nos tornou ilusoriamente próximo e ao mesmo
tempo atingiu um grau gigantesco de imprevisibilidade. Uma época em
que as escolhas parecem, simultaneamente, infinitas e muito
reduzidas. Uma época de deslocados e exilados, em que questões como
a identidade, a segurança e a pertença estão em total reformulação.
Os protagonistas deste livro são pessoas de várias idades,
experiências e origens, que perderam tudo ou quase tudo e
tentam perceber quem são e de que modo podem ainda viver. As
situações-limite convocam o pior e o melhor das pessoas, mas são
sobretudo momentos de esclarecimento.
Li uma
frase sua em que diz: «Não é de serem felizes que as pessoas têm
medo: é de escolher - da responsabilidade da escolha, do
compromisso que ela acarreta». Vivemos numa sociedade apavorada
pelo risco e com medo de ter medo?
O pânico de arriscar e o medo do
próprio medo são hoje muito visíveis, em particular em países
antigos, acomodados e pouco experientes em processos democráticos,
como é claramente o caso de Portugal. Mas essa frase refere-se a
uma outra coisa, parcialmente decorrente desse hábito de
passividade, que é o medo de assumir e defender as escolhas feitas,
uma espécie de adolescência arreigada que muitas vezes nos impede,
não só de apreciar o que somos, temos ou fazemos, mas até de sermos
capazes de escolher. Quando o fascínio pela novidade,
característico desta era de endeusamento da juventude, se associa
ao culto da desresponsabilização, muito próprio de países com
fortes tradições burocráticas e ditatoriais, como é Portugal, surge
uma paralisia existencial composta de indecisões e abandonos
sucessivos.
Diz que
"liberdade" é a palavra que melhor a define. Numa sociedade cada
vez mais controlada e vigiada, onde imperam as redes sociais, não
pensa que a democracia, as liberdades e as garantias estão cada vez
mais frágeis?
A fragilização das liberdades e
garantias das pessoas, e portanto da democracia, advém tanto da
excessiva e obscura vigilância - nunca sabemos quem nos espia, e ai
de nós se tivermos um inimigo numa repartição judicial ou fiscal -
, como da total falta de controlo das redes sociais. A difamação
tornou-se quotidiana e as queixas de perseguições obsessivas e
atentatórias do bom nome de alguém nas redes sociais, na grande
maioria das vezes, não encontram provimento. A verdade é que as
redes sociais têm servido mais como instrumentos de intimidação,
alienação e contra-informação do que como mecanismos de ampliação
da democracia. Penso que é urgente criar um enquadramento
legislativo, a nível internacional, que resolva este problema.
Os
políticos são normalmente apontados como os "maus da fita" pelo
estado a que chegámos. Considera que os políticos são maus porque
os portugueses não exigem melhor?
Os políticos são também cidadãos, têm as qualidades
e defeitos daqueles que os elegem. Penso que os eleitores se
informam pouco sobre os políticos que elegem, e por isso se sentem
tantas vezes tão enganados. Mas o problema de fundo é o do
desaparecimento da política, esmagada pela ação incontrolável dos
mercados e pelas finanças, que por sua vez vieram substituir a
economia, que era uma ciência política. A política perdeu quase
todo o poder que tinha - a gravíssima crise europeia demonstra-o
claramente. A crise é, antes de mais, de ideias e de lideranças
políticas.
Que culpas
no cartório aponta às nossas elites políticas, académicas e
intelectuais?
Teremos, de facto, elites? Tenho
muitas dúvidas. As elites portuguesas formaram-se através dos
títulos nobiliárquicos, do dinheiro, das famílias e dos
favores, não através da cultura e da educação. As figuras de
referência intelectual foram e continuam a ser franco-atiradores,
pregadores no deserto, muitas vezes exilados, por não terem
encontrado condições de desenvolvimento no país. Precisaríamos,
para começar, de reestruturar a fundo o sistema de ensino, e os
programas de Educação, de modo a estimularmos o sentido crítico dos
jovens. Desvaloriza-se o ensino das Humanidades e das Artes
(a quase inexistência de educação musical é vergonhosa),
sobrevalorizam-se as ciências ditas exactas, não se criam espaços
de debate na escola, retiram-se dos programas os clássicos
incómodos, com o argumento desonesto e preguiçoso de que não atraem
os mais novos, e carrega-se nos chavões linguísticos (a terrível
TLEBS) e na capacidade de memorização. O ensino atual cria
papagaios de repetição e cidadãos passivos, não cabeças activas e
curiosas. Assim, nunca mais mudamos.
Os
desígnios mobilizadores costumam unir os portugueses. O que é que
considera que podia congregar os nossos compatriotas num desiderato
comum?
Sou otimista, por natureza e por
estratégia de sobrevivência, mas confesso que, à parte o futebol,
não vejo nos portugueses essa capacidade de mobilização. Somos
demasiado individualistas, cada um por si, cada qual que se
desenrasque como puder - com as famílias e o tenebroso vício das
"cunhas" como único traço de união. Habituámo-nos a ver o Estado
como um pai providencial, mesmo que cruel, e não somos dados a
associações. A desconfiança atávica que a generalidade dos
portugueses tem em relação aos partidos - que são associações de
cidadãos em torno de ideias, não esqueçamos - ou aos sindicatos é
eloquente. As ditaduras deformam os cidadãos, e nós vivemos séculos
e séculos de ditadura: achamos, ainda hoje, que nada podemos.
Agora, a classe média empobreceu de tal forma que começou
finalmente a mostrar alguns sinais de rebelião. Mas ainda muito
ténues, e pontuais.
Presidiu à
Casa Fernando Pessoa, um dos maiores vultos da língua e da cultura
lusa. Sei que teve poucos apoios para fazer o seu trabalho e muitos
dos recursos foram mobilizados por sua iniciativa. Não se aposta na
cultura porque não dá votos ou, como agora se diz, porque não é uma
área sexy?
Para mim, a cultura é a área mais
sexy de todas, porque é aquela que transforma as pessoas e as torna
capazes de pensar, criar, mudar o mundo. Alguns votos sempre dará,
porque em épocas eleitorais os políticos tentam usar figuras da
cultura nas suas campanhas. Ao longo dos seis anos em que trabalhei
na Casa Fernando Pessoa, fui percebendo que a cultura é entendida
pelos diversos poderes políticos e económicos como mera decoração e
só interessa enquanto propaganda, ilusão de pensamento e
instrumento ao serviço de lóbis determinados. Acresce que não
temos, em Portugal, uma tradição do mecenato. Bati a muitíssimas
portas para procurar apoios para ações de cultura e educação, e
poucas se abriram. Mas essas poucas entidades foram preciosas, e
permitiram três coisas que julgo fundamentais: levar a poesia e as
artes às escolas mais desprovidas de meios, estreitar o
conhecimento mútuo entre as culturas portuguesa e brasileira,
preservar o tesouro nacional que é a Biblioteca Particular de
Fernando Pessoa e oferecê-lo aos estudiosos de todo o mundo,
através da internet.
A cultura
virou uma indústria de entretenimento, completamente subvertida dos
valores essenciais. Na cultura, no ensino e também na comunicação
social o entretenimento esmaga a análise ponderada dos problemas de
raiz. É esta atração pela superficialidade e a espuma dos dias que
narcotiza a sociedade?
Exactamente. A generalidade dos
responsáveis televisivos repete que dá ao povo o que o povo quer, e
eu pergunto: quem disse que as pessoas só querem o chamado
entretenimento básico? Já lhes perguntaram? Já experimentaram
dar-lhes outras coisas? Tenho andado pelo país e encontro
bibliotecas e cafés cheios para tertúlias literárias. Na Casa
Fernando Pessoa verifiquei que havia muito público para recitais de
poesia, música clássica, conferências e debates em torno de temas
literários e maratonas de leitura. E vi crianças, mesmo as de três
a cinco anos, porque começámos a trabalhar também com os mais
pequeninos, vibrarem com os poemas e os amigos imaginários de
Pessoa.
Os próximos
oito meses serão frenéticos. Avizinham-se as legislativas e só
depois as presidenciais. Como está a ver o debate e a "bolsa de
apostas" sobre as eleições presidenciais? Admite que na sociedade
em que habitamos a visibilidade mediática ofusca a qualidade
ética e os méritos intelectuais?
A
visibilidade mediática pode decorrer do mérito e das qualidades
pessoais - acontece no desporto, por exemplo - mas não há uma
relação automática entre as duas coisas, até porque há muitas
atividades e saberes que não são mediáticos, ou assumidos como tal.
Na política, os interesses e as estratégias sobrepõem-se demasiadas
vezes ao trabalho efetivo e à qualidade das pessoas.
Entristece-me, para começar, que na tal "bolsa de apostas" não se
incluam mulheres. Não partilho o discurso da "diferença cultural do
feminino", porque me parece estúpido atribuir a um género o encargo
dos valores: as mulheres devem ter lugar na política porque devem
ter os mesmos direitos, oportunidades e consideração que os homens,
e não por serem mais boazinhas ou honestas do que eles. Há uma
série de mulheres, nos vários partidos políticos, que têm provas
dadas e percursos que as tornariam excelentes candidatas à
Presidência, mas não se fala delas. Infelizmente, aliás, quando
falo disto, verifico que são as próprias mulheres a descartarem
esta hipótese, encontrando nas possíveis candidatas inúmeros
defeitos que parecem não encontrar nos candidatos homens.
Simbolicamente, uma mulher Presidente seria um sinal de mudança
importante. Por isso, no fim do meu livro, «Desamparo», encontramos
uma mulher na Presidência da República, em Portugal.
Disse numa
entrevista recente no semanário «Sol», onde é cronista, que a sua
filha tem 17 anos e pretende estudar Cinema. Como vê a questão da
exiguidade das saídas profissionais, do flagelo do desemprego jovem
e da hipótese da emigração? A geração da sua filha é o que se pode
chamar uma geração traída e de sonhos adiados?
A geração da minha filha tem sido
chicoteada pelos discursos oficiais nos últimos anos. É uma geração
que cresce a ouvir dizer que jamais terá emprego, que não poderá
contar com os mínimos de segurança social ou de saúde, que deve
desistir dos seus sonhos. Conheço miúdos aos quais os pais obrigam
a aprender mandarim, achando que assim poderão ter emprego. Conheço
outros aos quais os pais proíbem a escolha de áreas de estudo
artístico. O que se tem feito a esta geração devia ser
integrado na lista dos maus-tratos psicológicos, e punido como tal.
A culpa principal é deste Governo, que tem reiterado este discurso
até ao nível do desespero, mas os pais e educadores também são
coniventes. Repito à minha filha que o mundo vive um tempo de
mudança extraordinária, a todos os níveis, e que ninguém pode
garantir o que acontecerá daqui a dez anos, de modo que o que ela
deve fazer é, acima de tudo, lutar pelos seus sonhos. Ela vive com
esperança e alegria, elementos tão essenciais como as vitaminas e
as proteínas, mas infelizmente não consigo fazer com que goste de
Portugal: os contínuos discursos sobre a crise, os sacrifícios e a
pobreza portuguesa levam-na a desejar sair daqui para fora o mais
depressa possível. E, como ela, milhares de outros jovens.
Escreveu
numa das suas recentes crónicas que «O trabalho continuado, o
investimento no país, o mérito e o currículo de obra feita não
contam em Portugal». O que conta então?
As cunhas, os compadrios, a
organizaçãozinha dos pequenos, médios e grandes interesses. Há
exceções, mas ainda poucas. Portugal trabalha mais horas do que a
generalidade dos países europeus, e está no fim da lista da
produtividade. Isto resulta da má gestão, da incompetência na
organização do trabalho e dos objetivos.
Esteve no
início do jornal «Independente», com Paulo Portas e Miguel Esteves
Cardoso. No Portugal de hoje um projeto dessa natureza fazia
sentido?
Tive a felicidade de ser convidada
para integrar a equipa inicial do «Independente», mas não fui uma
das fundadoras: esse mérito cabe integralmente ao Miguel Esteves
Cardoso e ao Paulo Portas, que foram os autores do conceito -
inovador, arrojado, criativo e inteligente - do jornal. No Portugal
de hoje, estas qualidades continuam a fazer muita falta, e o
jornalismo está numa queda tão acentuada que faz falta um projeto
destes, sim. Mas não vejo quem queira investir nele…
Nuno Dias da Silva
Alfredo Cunha, Luís Carvalho