Entrevista

Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, escritoras
Ler é uma aventura

AMM e IA.jpgÉ a dupla de escritoras mais famosa de Portugal. Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada escrevem a quatro mãos há 60 livros consecutivos, mas a entrevista que nos concederam foi a duas vozes. Uma aventura a não perder…

Chegados ao número 60 da mítica coleção «Uma aventura», que balanço fazem as duas escritoras em parceria mais famosas do país? Conseguem escolher o ingrediente principal que torna esta coleção um sucesso editorial?
Ana Maria Magalhães (AMM) - Na minha opinião é o ritmo e o facto de sermos professoras e conhecermos bem os destinatários das nossas histórias.
Isabel Alçada (IA) - Eu creio que é o facto de nos dirigirmos diretamente às crianças e colocarmo-nos na pele delas e termos presente o que é que faz uma criança manter o interesse por um livro. E o ritmo é um desses componentes determinantes, evitando divagar e não sair de uma estrutura de ação que possa interessar aos mais novos. É importante que os leitores - especialmente os mais jovens - mergulhem na história e não deixem de a ler até ao fim.

Visualizar mentalmente o enredo é meio caminho andado para agarrar o leitor?
I.A. - Certamente, embora as ilustrações deem uma ajuda. Mas ouvimos, frequentemente, testemunhos de leitores que dão conta que estão a sentir a história e a ver aquilo que está a acontecer. A teoria clássica sobre a função do livro é que este tem um papel informativo, mas posteriormente surgiu uma corrente de investigação que defende que o livro visa, sobretudo, a fruição estética no sentido em que a pessoa sente que faz parte daquele ambiente e alarga o seu leque de experiências e o seu mundo em consequência da leitura. Não é por acaso que os livros de ficção são os que registam um maior sucesso, porque permitem conhecer outros mundos e vivenciá-los de uma forma afetiva.

Conheceram-se em 1976 na Escola Fernando Pessoa, quando se preparavam para começar a dar aulas. Seis anos passados nasce o primeiro livro. Para além das boas ideias, a cumplicidade e a amizade entre as duas potenciou o sucesso dos livros?
AMM - Sem dúvida, mas foi importante que durante esses seis anos tenhamos trabalhado muito tempo juntas, a preparar aulas, visitas de estudos, testes, atas, a inventar histórias para os alunos, etc. Não havia qualquer intenção de sermos escritoras. Mas fomos descobrindo imensas afinidades, até o facto de nessa altura vivermos muito perto e os nossos filhos serem da mesma idade, etc. Um dia a Isabel desafiou-me a escrever um livro. E resultou.

A coleção passar sucessivamente de geração em geração foi algo que vos surpreendeu?
IA - É fantástico. Escrevemos para as crianças em determinado período e a verdade é que os anos passam e surgem os agora pais que revelam que os seus filhos também leem os livros que eles liam em crianças. É comovente.

Há uma altura do ano propícia para escrever estas histórias?
AMM - Os livros são quase sempre escritos integralmente no verão, geralmente porque existe mais disponibilidade para fazer a pesquisa. Mas as ideias podem surgir a qualquer altura, durante o ano.

Qual é o motivo pelo qual a maior parte dos livros, e o mais recente não é exceção, gira em torno de monumentos e património cultural e natural?
IA - Primeiramente, escrevemos sobre temas e locais que gostamos. Mas logo no início começámos a ter pedidos de diretores de museus e de palácios, presidentes de câmaras municipais, etc, para que falassemos de determinados locais ou monumentos. É perfeitamente normal, até porque é sabido que se uma criança lê uma história sobre um determinado local ela vai criar laços afetivos, imagina-o e quer, naturalmente, lá ir.

Um dos vossos métodos de pesquisa é ir aos sítios que são cenários das histórias. Já se vestiram de mineiras nas minas da Panasqueira, já desceram os carros de cestos no Funchal e até já foram ao deserto do Saara. Que outras viagens ficaram na vossa memória?
AMM - Fomos a Timor, a Cabo Verde e à Amazónia que para  mim foi uma viagem espantosa, porque se trata de um sítio sem paralelo. É um lugar mágico, com uma energia única, até parece que estamos no início do mundo quando ele foi criado.
IA - Eu gostaria muito de ir às ilhas Galápagos, também por ser um local onde não há mão humana. Um paraíso a visitar, quem sabe para uma futura aventura.

A próxima aventura, a 61.ª, será ao fundo do mar. Já podem levantar a ponta do véu ?
AMM - Já temos um contacto com uma pessoa que trabalha no Zoomarine, no Algarve, e que nos vai dar informações preciosas sobre as espécies que estão a tratar. Eu mergulhar com botijas será muito difícil, mas a Isabel talvez consiga. Ela gosta muito de nadar.

Conseguem escolher a vossa aventura preferida?
AMM - Por motivos puramente afetivos, eu escolheria «Uma aventura nas férias do Natal», que se passa numa quinta, em Trás-os-Montes, que é dos meus avós e onde passei férias 21 anos. Foi uma forma de regressar à minha infância e homenagear pessoas que tornaram esse período da minha vida num tesouro que ninguém me pode roubar.
IA - Eu gosto muito de «Uma aventura no bosque», também por motivos emocionais. Eu desde pequena que ia para a serra de Sintra com os meus pais e houve um incêndio horrível, que acabou por ser refletido na história. E deixe-me dizer-lhe que também tenho um carinho especial por este que acabou de ser lançado - «Uma aventura no Palácio das Janelas Verdes» - por ser uma espécie de bebé da família. E quando chega um novo membro na família todos ficam expectantes para ver como é o seu crescimento e como é recebido pelo público.

Em que trama se envolvem os nossos heróis em «Uma aventura no Palácio das Janelas Verdes»?
AMM - A Flora convida o grupo a representar para um concurso a peça «O Cavaleiro sem Cabeça», peça ligada a uma terrível maldição. Quando estavam nos ensaios em casa do tio de Flora, o Emanuel, que além de colecionador de arte era também inventor, descobriu um spray que fazia derreter as coisas. Acontece que um grupo de malfeitores, no Palácio das Janelas Verdes, decidiu utilizar o spray do tio Emanuel para ameaçar o diretor do Museu de que ou lhes entregavam uma avultada quantia ou destruiriam as obras de arte lá expostas. Mas, no meio de uma grande confusão, envolvendo atores e malfeitores os nossos heróis vão resolver a situação.

Foi uma coincidência este livro ser publicado no Ano Europeu do Património Cultural?
IA - Sim, mas foi uma coincidência boa e possibilita que os mais novos se envolvam nesta comemoração. Aliás há um concurso dirigido às escolas, ao 3.º ano e secundário, patrocinado pela comissão liderada pelo Dr. Guilherme d'Oliveira Martins e a Fundação Calouste Gulbenkian, em que se convidam as escolas a trabalharem sobre o património.
AMM - É engraçado inventar lugares para as histórias, mas porque não fazer brilhar os magníficos lugares que temos no nosso país? São cenários belíssimos para qualquer aventura, seja num filme, seja num livro.

Os protagonistas das vossas histórias existem na realidade. Podem desvendar um pouco esta história de contornos reais?
IA - Todos os protagonistas retratam pessoas que foram nossos alunos. Inclusivé as gémeas, que na história são a Teresa e a Luísa, costumam ir ter connosco à Feira do Livro, já crescidas e acompanhadas pelas respetivas famílias, quando estamos nas sessões de autógrafos.

A estrutura de «Uma aventura» é semelhante a «Os Cinco» de Enid Blyton. Confirma?
IA - Sim, a matriz é de «Os Cinco» criado pela autora britânica. Foi um estilo desenvolvido por ela e que foi replicado no mundo inteiro.
AMM - É um livro de aventuras, tem um início, um clímax e onde acaba tudo bem. E as personagens são da idade dos leitores. Isto foi o que a Enid Blyton inventou. Da mesma forma que os livros de detetives têm uma inspiração em Poirot.

autoras.jpgTêm feito muitas palestras em escolas de todo o país. Que mensagens procuram transmitir aos alunos?
AMM - Os nossos interlocutores são diversos, desde crianças do pré-escolar até quase ao secundário. Pedimos que façam perguntas, para termos a certeza que vamos ao encontro da curiosidade e dos interesses de quem nos ouve.
IA - É variável. Alguns têm já um trabalho planeado porque leram previamente na aula com o professor, as perguntas mais interessantes já foram selecionadas, etc. Ou seja, depende muito do grupo que está à nossa frente, mas as nossas sessões são sempre muito interativas. Vivemos numa época de comunicação interativa e de tempo rápido, por isso, o modelo é dinâmico. E mesmo que eles não nos ponham questões, nós, pela experiência que temos como professores, fazemos tudo o que está ao nosso alcance para os fazer pensar. Basicamente estas nossas visitas às escolas têm como principal objetivo transmitir e aprofundar o gosto pela leitura.

Foram ambas professoras de Português e História e também escreveram a coleção «Viagens no tempo». É este gosto pela História que está presente em tudo aquilo que escrevem?
AMM - Nós somos professoras de História, mas ambas também gostamos muito de História. E achamos que a melhor maneira de ajudar as crianças a interessarem-se por História é convidá-las a mergulharem na época, o que é mais interessante do que obrigá-las a decorar datas e factos.
IA - O nosso trabalho é transformar aquilo que é o conhecimento histórico numa ficção que possa ser apelativa e possa levar os mais novos a interessarem-se pela época, por conhecer e pensar o que aconteceu no passado, etc. Temos uma preocupação comum nos livros históricos que escrevemos: não introduzir informações a martelo. O que é que isto quer dizer?  A ficção que está a ser construída é que tem de suscitar a informação histórica.

Como diz o slogan da vossa editora, «ler é uma aventura»?

AMM - Sem dúvida, porque se assim não for, é muito provável que o livro fique a meio. É preciso que o leitor se sinta arrebatado pelo outro mundo que vem nos livros.
IA - Até se pode ser arrebatado por uma informação, mas é preciso estar muito interessado. Adoro ler livros científicos e de Física, confesso que me arrebatam, mas para isso é preciso ter um interesse à partida, mas que só acontece para alguns. Torna-se mais fácil que esse arrebatar surja a partir da ficção.

A concorrência dos telemóveis e dos tablets é uma ameaça à leitura?
IA - Eu acho que também pode ser uma oportunidade, caso os livros digitais sejam utilizados para desenvolver e consolidar a aprendizagem da leitura. Pode ser relativamente indiferente se for um e-book, porque do ponto de vista cognitivo é igual ao livro impresso. Mas também pode ser uma ameaça se a pessoa só ler pequenas mensagens, só ver imagens, só escrever pequenos textos em interação com os amigos. E é ameaça porque é muito sedutor e muito fácil. É meio caminho andado para se perder o mínimo interesse que podia restar para ler um livro.
AMM - E não só livros, a maior parte dos jovens deixou de ver televisão, por exemplo. Há uma grande obsessão pelos ecrãs, para onde tudo converge, e eu vejo isso de perto pelos meus netos. A minha filha percebeu que os meus netos consumiam cada vez mais tempo nos tablets e passou a organizar-lhes os horários. A partir de determinada hora acabaram-se os tablets. É um sinal de alerta para pais e professores.
IA - Recordo-me quando começámos a escrever diziam que a televisão ia acabar com a leitura e sempre recusámos essa ideia. Continuamos a achar que a leitura tem e terá sempre o seu lugar, mas é preciso criar com mais veemência um contacto com o livro de forma a promover o gosto pelo leitura e que não queiram prescindir desse gosto. A escola e a família têm de ter um papel mais ativo do que no passado para que os jovens leiam por vontade própria. Não pode é haver uma tentativa de obrigar ou forçar. Se for assim, não resultará.
AMM - Não há nada pior do que leituras obrigatórias, exceto, naturalmente, numa cadeira de Literatura. Leituras obrigatórias é matar o amor à leitura.

A Isabel Alçada foi comissária do Plano Nacional da Leitura. Como é que vamos de políticas de promoção de leitura em Portugal?
IA - Ainda há um longo caminho a percorrer. Precisamos de dar mais condições às escolas, reforçando a ideia de que os professores devem ter um papel determinante naquilo que se lê. Eles conhecem os alunos e sabem o que é mais adequado. Tem havido fluxos e refluxos de pessoas, supostamente bem pensantes, que querem impingir, como foi no caso das metas de aprendizagem, meia dúzia de livros, com todo o país a ler o mesmo. Um perfeito absurdo e que mata o prazer da leitura, para muitos.
Por isso eu defendo que precisamos de dar força ao Plano Nacional de Leitura que existe e que tem uma excelente comissária, a Teresa Calçada, que precisa de recursos para por as ideias em prática. Elas existem, mas são necessárias ações dinamizadoras que promovam a ideia que ler é fantástico, seja nas escolas, como nas bibliotecas, nas câmaras municipais e até nas famílias.

A falta de recursos é argumento?
IA - Só ideias não chegam, é preciso haver recursos financeiros para que os livros cheguem às pessoas e aos projetos que promovem a leitura. Felizmente temos uma rede de bibliotecas escolares boa, mas as novas escolas têm muito poucos livros e as outras ainda não têm livros suficientes para poderem oferecer uma diversidade muito atraente. E mesmo as mais antigas e mais apetrechadas, precisam de atualizar os títulos disponíveis. A leitura é um reino onde existem sempre novidades. Todos os dias. Os livros contemporâneos nas bibliotecas são um fator importantíssimo para promover a leitura.
AMM - Uma biblioteca tem de estar equipada com o que já lá estava e mais as novidades, senão morre.

A Isabel Alçada é consultora do Presidente da República para a educação e uma das dinamizadoras da iniciativa «Escritores no Palácio de Belém». Como é trabalhar com Marcelo Rebelo de Sousa?
IA - É um gosto trabalhar com ele, pela sua capacidade de dar energia e apoiar os outros. Para além de ser uma pessoa culta, inteligente, criativa e afetuosa, as ideias dele são sempre melhores do que as nossas. A iniciativa «Escritores no Palácio de Belém» visou dar uma nota ao país sobre a importância da leitura e mostrar a Portugal que a leitura e a escrita são muito valorizadas, sem esquecer que o trabalho que os professores e as escolas fazem para promover a leitura é valorizado pelo Presidente da República.

Que recordações tem da sua passagem pelo Ministério da Educação?
IA - Boas recordações. Quando uma pessoa está convictamente empenhada em fazer melhorar a educação no seu país é um projeto que vale a pena. Foram anos em que tive o privilégio de liderar uma grande nau em que todos os que trabalhavam na educação contribuíram para uma causa tão especial.

Existem cerca de 130 mil professores no sistema de ensino. Como têm assistido à degradação da imagem e sobretudo da autoridade destes atores?
AMM - Há professores muito bons e há outros mais fracos, como em todas as profissões. As pessoas tendem a atirar para as costas dos professores as culpas quando eles não podem fazer milagres. Muitas vezes os pais apontam o dedo aos professores, quando os problemas começam precisamente em casa, na família e também na sociedade. Por exemplo, não há professor que consiga tornar mais elegante a comunicação de uma criança se no contexto familiar o registo utilizado for grosseiro.
IA - Os pais não devem desautorizar os professores. Podem questionar o seu trabalho, certamente, mas se os desautorizam perante as crianças estão a prestar um péssimo serviço aos seus próprios filhos, criando situações de equívocos. Do ponto de vista da autoridade dos professores e dos diretores das escolas, como ministra da Educação procurei dar mais autoridade. Tenho a firme convicção de que os professores precisam de reforçar a sua autoridade. E o que temos assistido é que os diretores e os coordenadores de escola têm mais autoridade, o mesmo acontecendo com os professores. No caso dos professores isso acontece pelos cargos que ocupam e pela responsabilização que lhes é atribuída. Quando os currículos são muito impositivos  desautorizam os professores porque estes têm que ter autoridade para decidir a melhor forma de trabalhar. E cada pessoa tem o seu estilo de ensinar e o seu estilo de se relacionar com os outros. Reconhecer que isso é um fator de bom ensino, de uma pedagogia adequada, é dar autoridade aos professores. É ponto assente que currículos rígidos não dão autoridade aos professores e currículos mais flexíveis reconhecem mais a autoridade dos professores.

Nuno Dias da Silva
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