Entrevista

Felisbela Lopes, professora da Universidade do Minho
«Temos de fazer uma revolução na formação dos professores e dos educadores»

Felisbela4.jpgA investigadora defende uma transformação profunda no ensino superior, nomeadamente a renovação da classe docente e a alteração dos planos curriculares. Felisbela Lopes, uma das autoras do livro sobre o Presidente da República, é da opinião que Marcelo tem que «reformatar o seu modelo presidencial» para não banalizar o cargo.

«Marcelo - Presidente todos os dias» é título do livro que escreveu com Leonete Botelho. Qual é a mais valia deste entrosamento entre a visão académica e jornalística da ação do inquilino de Belém?
Este é o meu décimo livro, sendo que é o primeiro feito numa co-autoria que juntou uma académica e uma jornalista. É uma parceria algo inédita em Portugal, na medida em que junta dois campos que não costumam fazer trabalhos em conjunto. Tendo em conta que o nosso objetivo era analisar os três primeiros anos de Marcelo Rebelo de Sousa na Presidência da República, o olhar de uma académica aporta uma análise mais distanciada que é enriquecida por um olhar muito pormenorizado de uma jornalista que no terreno acompanha em permanência o Presidente e conhece em profundidade  o modo como o PR vai concretizando a sua agenda. Compilámos os trabalhos jornalísticos publicados em diversos órgãos de comunicação social, o que constituiu um acervo documental interessante - O nosso trabalho assentou na análise de trabalhos jornalísticos publicados neste período e em entrevistas que fizemos a políticos, analistas, jornalistas...

Colhe a teoria de que Marcelo tem globalmente boa imprensa, nomeadamente se compararmos com o Presidente anterior, Cavaco Silva?
Sim, é verdade. Pela análise que eu faço com a professora Paula Espírito Santo - efetuando uma análise de conteúdo dos artigos jornalísticos e com base nessa abordagem posso afirmar que Marcelo Rebelo de Sousa tem, de facto, uma predominância de ângulos noticiosos positivos. Da observação feita pela Leonete Botelho e por mim, através das entrevistas realizadas a alguns jornalistas que acompanham regularmente o Presidente, constatei que estes profissionais têm um olhar mais positivo em relação ao trabalho do Chefe de Estado, quando comparado com o Presidente anterior.

O ritmo frenético e a sucessão de eventos, oficiais e oficiosos, tornam cada vez mais difícil os profissionais da comunicação social estarem em todo o sítio onde está o Presidente. Como é feita a divulgação desses acontecimentos?
Nós escrevemos isso no livro. O Presidente da República tem três agendas: a agenda oficial pública - publicitada no sítio da Presidência; uma agenda oficial não pública - que normalmente é comunicada aos jornalistas e, finalmente, tem uma agenda privada, que nem sempre é do conhecimento dos órgãos de comunicação. Marcelo Rebelo de Sousa mistura-as e pode perfeitamente, ao longo do dia, ter as três agendas quase em sobreposição. Tudo isto faz com que o trabalho do jornalista seja bastante dificultado. Um jornalista revelou-me que com Cavaco Silva era suficiente destacar uma equipa de reportagem, mas com Marcelo, quando o PR participa em eventos de natureza mais protocolar, por vezes é necessário mobilizar duas equipas, uma para cobrir o evento protocolar e outra a rua.

Isso envolve uma grande logística…
Sendo que normalmente para a rua vai a equipa com mais experiência, porque é nos imprevistos que o PR mais se revela. Isto é um modelo novo de Presidência. Marcelo Rebelo de Sousa tem uma agenda intensa e com um grau de imprevisibilidade muito grande.

No passado tivemos Eanes, Soares, Sampaio e Cavaco. De alguma forma Soares foi o precursor de Marcelo?
Não, apesar de ser tentador comparar Marcelo com Soares. Admito que Soares possa ter sido o Chefe de Estado mais próximo do atual modelo, mas estamos a falar de presidências muito distintivas. Por exemplo, no que diz respeito ao vetor da proximidade - que é estruturante neste mandato presidencial - nunca vimos Mário Soares no chão, estender comida a um sem-abrigo. Até Marcelo ter chegado a Belém, nunca tínhamos tido um Presidente que come umas sandes, que atropela agendas, que é de direita e fala à esquerda, etc. Inclusive na frente diplomática ele quebrou regras: viajou primeiro até ao Vaticano o que foi um sinal de ligação à religião católica e de rutura com os seus antecessores, que escolheram Espanha como primeiro destino.

Falou da proximidade como um aspeto estruturante desta Presidência. Que outros pilares destacaria?
No nosso livro temos três partes que consideramos estruturantes da Presidência: Marcelo e o povo, Marcelo com um papel interventivo na política interna e um presidente presente na vertente diplomática. Nestes três vetores, é preciso afirmar, não são reconhecíveis grandes semelhanças entre Marcelo e Soares.

Marcelo não corre o risco de dessacralizar a figura institucional do Presidente?
Marcelo Rebelo de Sousa tem, rapidamente, de reformatar o seu modelo presidencial para não banalizar o exercício do mais alto magistrado da nação. Este é o principal desafio que se lhe coloca. Se este modelo foi excelente para o arranque de mandato (vínhamos de um período de austeridade, de um país mergulhado num pessimismo evidente), ter um PR que puxasse os portugueses para cima e que se preocupasse com os consensos e com as pontes, ao mesmo tempo que multiplicava afetos, foi importante. O problema é que o Presidente não pode ser durante todo o mandato um Presidente de afetos. O país está reconciliado com ele próprio e agora precisamos de outro modelo, porque já não são precisos os abraços. É tempo de Marcelo descobrir uma outra forma de evoluir na continuidade para não banalizar o cargo.

A expressão «populista soft» cunhada por Jaime Gama aplica-se com propriedade ao atual PR?
A Leonete Botelho e eu não consideramos, de todo, que Marcelo seja um Presidente populista. Aliás, a sua forma de ser popular ocupa o terreno que eventualmente pudesse ser ocupado pelos populistas.

O fenómeno Marcelo ganharia força sem os anos consecutivos que esteve todos os domingos na TV, quando muitos já lhe chamavam a «homilia dominical»?
Marcelo Rebelo de Sousa é um fenómeno mediático. Conhece por dentro todos os "media" tradicionais. Ele começou nos jornais, por isso, conhece por dentro o funcionamento dos jornais e o percurso dos próprios jornalistas. Depois foi comentador da TSF, o que lhe permitiu conhecer bem a rádio, por dentro. A experiência na rádio foi um treino para a televisão, um meio que lhe era desconhecido. Marcelo vai para a TVI por alguma afinidade familiar com Paes do Amaral, mais tarde sai da TVI por causa de um conflito interno e ingressa na RTP, para regressar mais tarde à TVI. E ele regressa à TVI quando o canal de Queluz de Baixo já era líder de audiências, o que foi decisivo para o aumento da sua popularidade. Ele estava todos os domingos no horário nobre. Uma espécie de «missa» dominical televisiva, como referenciou na sua pergunta. Por isso, não foi de estranhar, que quando começou a campanha eleitoral Marcelo tenho prescindindo do apoio do seu partido, de comícios, etc. Ele tinha o povo com ele. Era um homem popular, um homem da televisão, um homem das massas. Um homem das massas que vem da elite, o que não deixa de ser curioso.


Escrevia o «Expresso», há umas semanas, que são 95 os políticos que têm espaço de opinião/comentário nas televisões, rádio e jornais. Quem quiser ter ambições políticas tem de ter lugar cativo na comunicação social?
Ajuda bastante. Pode não ser decisivo para uma escolha como candidato, mas importa ter alguma visibilidade, nomeadamente no meio televisivo. Mas não é fator imprescindível. Vou dar um exemplo de uma pessoa apontada como um dos putativos líderes do PSD e que não manteve ou mantém qualquer espaço televisivo: Carlos Moedas. Mas uma coisa é certa: ele não ganhará substância se não passar pelos «plateaux» televisivos.

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Primeiro foi o telefonema do Presidente, depois o arroz de atum de Assunção Cristas e, finalmente, a Cataplana de Costa. É fundamental estar presente no programa de Cristina Ferreira ou no «5 para a meia noite» para conquistar votos numa extensa faixa do eleitorado?
Não têm obrigatoriamente de estar, mas é inegável que quem estiver presente vai capitalizar popularidade. Gostava de lembrar que essas aparições em órgãos mais populares não são propriamente uma novidade. Os políticos sempre foram a programas de entretenimento. Estou-me a lembrar dos programas de Herman José, em tempo de monopólio da RTP. Inclusive em revistas com vocação social, como a «Nova Gente», por lá passaram reportagens com políticos. Isso não é propriamente novo e aos políticos não está vedada a presença nesses programas, que são «talk shows» e que procuram promover o entretenimento dos telespetadores. Já me parece duvidoso ver estes políticos a participar nestes programas em pleno horário laboral, dando a ideia que terão uma agenda livre. No caso do primeiro--ministro ele teve o cuidado de dizer a Cristina Ferreira que só aceitaria lá ir num dia em que não trabalhasse. E realmente só lá foi na manhã do dia de Carnaval.

Como investigadora na área da televisão, como analisa a quebra de audiências dos generalistas, o recurso crescente a reality shows e a concorrência plataformas streaming. Os canais generalistas tendem a definhar?
Vejo a atual oferta televisiva dos canais generalistas com preocupação. Com a atual guerra de audiências, particularmente nos canais privados, a qualidade da programação televisiva - que já não era muito alta - tende a baixar. As apostas nas chamadas "novela  da vida real" deviam merecer um debate e uma reflexão alargados porque colocam em causa a dignidade das pessoas. A TVI tem um programa chamado «Começar do Zero» que vem na esteira desta tendência preocupante que se iniciou em setembro do ano 2000 quando o mesmo canal estreou o «Big Brother». Dezoito anos volvidos penso que estamos em patamares altamente perigosos. Quando colocamos em horário nobre pessoas nuas e se retira tudo às pessoas e as obrigam a viver sem nada, inclusive sem roupa, acho que estamos a dar um salto para o abismo no que diz respeito à dignidade das pessoas. E as televisões têm uma responsabilidade social a que deviam atender em permanência.

É isso que explica a quebra de audiências?
Com uma qualidade diminuída, não é de estranhar que as pessoas procurem alternativas. Eu como telespetadora não estou interessada em ver o tipo de oferta televisiva que atrás mencionei. É, por isso, natural que um tipo de público comece a refugiar-se no cabo, em busca de uma programação alternativa. Ou então, comece cada vez mais a apostar numa escolha por conteúdos, beneficiando do facto de a própria tecnologia possibilitar que o telespetador faça a sua própria grelha de programação.

O canal CMTV veio baralhar as audiências e o consumo de informação?
Os canais que têm audiências condicionam sempre os canais que ficam para trás. Mas não me parece que a CMTV funcione em termos de referência para os canais de informação do cabo, mas aqui e ali tem existido alguma tentação de mimetismo, particularmente no filão do futebol, justiça e crime.

Os telejornais do "prime time" continuam a pecar por ser demasiado extensos?
A duração dos telejornais em Portugal é muito longa. E não é por acaso. Isto explica-se porque as grelhas noturnas dos canais privados deixaram de ter programação informativa não diária e então as redações inserem dentro dos noticiários todos os géneros jornalísticos: as notícias, as grandes reportagens, as entrevista e as rubricas. Está tudo lá. A própria RTP ainda mantém esses programas autonomamente, mas acaba por ser condicionada pela oferta da SIC e da TVI. E os canais já perceberam que introduzir diversas rubricas no alinhamento dos telejornais acaba por dar audiências interessantes. Por isso, não acredito num caminho de recuo. Mas acho que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) devia estar mais atenta a casos em que as redações pisam as linhas vermelhas. E aqui e ali isso acontece. Isto sem prejuízo de termos em todas as estações jornalistas que produzem "peças" com muito mérito e valor e que deviam merecer uma visualização atenta.

Para combater a era das "fake news" defende a promoção de uma literacia para os "media". Esta deve começar na escola?
Os "media" não devem ser responsabilizados, em exclusivo, pela promoção da literacia mediática. É uma opinião muito pessoal, mas eu defendo que os órgãos de comunicação social não têm obrigação de educar as pessoas, mas apenas de informar - e com qualidade, rigor e neutralidade. No caso concreto, a primeira responsabilidade deve ser atribuída à escola. A escola deve iniciar as crianças, desde uma idade precoce, numa literacia mediática. É aí que devem repousar todas as responsabilidades. Os jornalistas informam, os professores formam.


Defende que se explique em detalhe e pormenor aos mais pequenos as mensagens veiculadas?
Temos de fazer uma revolução na formação dos professores e dos educadores. Eu sou licenciada em ensino de português e, por isso, estou à vontade para afirmar que em 2019 os docentes não têm preparação para ensinar estas temáticas, simplesmente porque não aprendem isto nas universidades. Os consumos mediáticos são muito complexos, mas dão a aparência de tudo ser muito transparente e óbvio. Quando falamos de "media", pode ser tudo menos óbvio e é preciso desconstruir os produtos e os discursos mediáticos. E esse trabalho não pode ser feito nos ecrãs de televisão, nos estúdios de rádio ou nas páginas dos jornais. Precisa de ser feito de forma pedagógica. Infelizmente, a escola continua a assobiar para o lado.

A 16 de março escreveu no «Jornal de Notícias» um artigo sobre o «país dos doutores». Quanto vale neste país ter um curso superior?
Vale bastante. Até porque dota as pessoas de ferramentas relevantes para se adaptarem às exigências e necessidades do mercado. Para além disso, os estudos demonstram que uma pessoa com formação superior combate melhor o desemprego do que uma pessoa sem formação. Mas obviamente que não podemos olhar para as formações como sendo algo fechado, mas sim como um processo contínuo. A época do emprego para a vida toda acabou há muitos anos.

A aposta nos "soft skills" nas faculdades já é uma realidade?
As universidades têm uma formação muito clássica. Mesmo o Processo de Bolonha, que em teoria centra tudo na aprendizagem e no aluno, está longe de concretizar essas premissas. Os professores para focarem a aprendizagem no aluno têm de ter uma grande disponibilidade para acompanhar esses alunos e é sabido o quão difícil é esse objetivo com 70 ou 80 alunos na sala de aula. Neste contexto é, por isso, natural que o processo se foque mais no ensino do que na aprendizagem.

A universidade permanece distanciada das necessidades do mercado e da sociedade?
Nalgumas áreas mais do que noutras, mas a resposta é afirmativa. Há casos de professores que desenvolvem investigações dentro das empresas, mas na maior parte dos casos a investigação encontra-se muito distanciada daquilo que é o mundo atual.

Já partilhou publicamente o seu desejo que se opere uma reforma profunda no ensino superior. Em que moldes e em que áreas?
Para começar, no campo dos professores o modo diferente de avaliar estes profissionais e de gerir as suas carreiras. Não podem ser os professores catedráticos a avaliarem e a gerirem a carreira de um professor auxiliar do seu departamento. É uma prática que comporta muitas perversidades. De todo o tipo. Para além disso, acho que a carreira de um professor que privilegie a investigação tem como consequência que ele desvalorize a vertente do ensino. Entendo também que os planos curriculares deviam ser mais reformatados, tendo em contas as necessidades do mercado.

Na sua opinião, há muito para mudar…
Mas há mais. Para fazer uma reforma de Bolonha com o objetivo de tudo ser centrado na aprendizagem, nunca poderá ser bem sucedida se não existir um verdadeiro investimento nos recursos humanos, neste caso, na expansão do número de professores. Por exemplo, eu trabalho há 25 anos num departamento da Universidade do Minho e ainda sou uma das mais novas, o que diz bem da fraca renovação da classe docente.

CARA DA NOTÍCIA

Rádios, jornais e universidade

Felisbela Lopes nasceu a 3 de agosto de 1971, em Braga. É Professora associada com agregação na Universidade do Minho, onde se encontra desde 1994. Primeiro licenciou-se em português-Francês e mais tarde doutorou-se em Informação Televisiva. Foi ainda pró-reitora da Universidade do Minho. Fez uma incursão pelo jornalismo, primeiro na Rádio Universitária e depois na redação do «Público», onde esteve cinco anos e participou na fundação do projeto de Vicente Jorge Silva. Tem na RTP um espaço de comentário há dez anos, no «Bom dia» de sábado, onde faz a revista de imprensa. Também tem um outro espaço de comentário à atualidade internacional no «Jornal 2», à noite, também na televisão pública. Para além de uma coluna de opinião semanal no «Jornal de Notícias». É autora de diversos livros sobre o meio televisivo. «Marcelo - Presidente todos os dias», uma edição da Porto Editora, é a sua última obra, escrita em parceria com a jornalista Leonete Botelho.

Nuno Dias da Silva
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