David Marçal, cientista e bioquímico
A vacina vai chegar, mas é preciso respeitar o tempo da ciência
A vacina para travar o novo coronavírus
vai chegar, mas é preciso respeitar o tempo da ciência. David
Marçal está convicto que a crise sanitária vai contribuir para um
maior reconhecimento e valorização da ciência e dos
cientistas.
Vamos começar pelo básico: o que é um
vírus?
Um vírus é uma entidade biológica que é constituída,
essencialmente, por material genético, num invólucro de proteína. E
não tem a capacidade de se replicar sozinho. Ou seja, precisa de
infetar as células de um hospedeiro para fazer cópias de si
próprio. Sendo muito pequeno, também é muito eficaz, porque se
conseguir ligar-se às células do hospedeiro, introduz o seu
material genético no interior e faz com que a maquinaria genética
do hospedeiro passe a produzir os componentes do vírus, de maneira
a multiplicá-lo.
Já se sabe, com
segurança, se o Sars-Cov2, é muito mutável?
Até agora, o Sars-Cov2 tem-se mantido relativamente estável e não
temos assistido a uma grande variabilidade genética deste novo
vírus. O potencial de mutação é uma questão de probabilidade.
Quando temos uma grande quantidade de hospedeiros infetados, nos
quais se multiplica o vírus, isso significa que há muitas
possibilidades de se registarem mutações. Portanto, quanto mais
cópias desse vírus existirem, maior é a probabilidade de haver uma
mutação. Mas uma eventual mutação não tem de ser necessariamente
negativa para nós, seres humanos, até pode provocar uma doença mais
suave. De momento, não sabemos.
É da quantidade de carga
viral que depende o facto de sermos ou não
assintomáticos?
Não se sabe em concreto. É outra questão em aberto.
A teoria oficial é que este vírus
surge de um salto de espécie, resultante do contacto de seres
humanos com animais selvagens. Luc Montagnier, antigo Prémio Nobel,
diz que este novo coronavírus pode ter sido fruto de um erro de
laboratório enquanto se procurava uma vacina para o HIV.
Qual é a sua
opinião?
Há de facto uma análise genética do vírus que demonstra que este
não foi feito em laboratório. É praticamente impossível que tenha
sido desenhado através de técnicas de biologia molecular. A mutação
que lhe permite dar o salto de espécie e ligá-lo aos recetores nas
células humanas é diferente daquela que existe no Sars-Cov, que deu
origem à pandemia, em 2002/2003. Quanto às declarações de Luc
Montagnier, que de facto fez um trabalho notável na identificação
do vírus da Sida, deixe-me dizer que este senhor tem ocupado os
últimos anos a proferir vários disparates, designadamente em apoio
da homeopatia, com teorias mirabolantes acerca da biologia e das
leis da natureza, sem qualquer apoio na comunidade científica. São
mesmo consideradas pseudociência. Montagnier, para que não haja
dúvidas, é um apoiante da homeopatia, uma prática pseudocientífica,
sem qualquer acolhimento na comunidade científica. Sinceramente, é
uma figura que não tem grande credibilidade.
As sociedades ocidentais
subestimaram o potencial deste vírus?
Agora, seria fácil dizer que sim. Prognósticos no fim do jogo são
fáceis, como diz uma grande figura da cultura portuguesa. Mas
olhando retrospetivamente, e conhecendo-se melhor as caraterísticas
do vírus, creio que podia ter havido uma ação afirmativa mais cedo,
designadamente na Europa.
Que medidas podiam ter
sido tomadas antecipadamente?
Nomeadamente o encerramento de fronteiras e o apoio mais
coordenado aos primeiros casos surgidos na Europa. Provavelmente,
os líderes políticos mundiais tardaram em tomar medidas extremas,
mas necessárias, nestes casos. Pese embora o apelo veemente das
Nações Unidas. Nunca saberemos em concreto, mas talvez pudessem ter
sido evitadas tragédias como as que aconteceram em Itália e
Espanha. Veja que na China, onde o vírus teve o seu epicentro,
mobilizaram-se os recursos inteiros de um país para fazer frente a
esta ameaça e apoiar uma região.
Coloca-se ao lado dos que
defendem que o vírus ficará a circular entre nós durante algum
tempo e só atenuará o seu impacto quando existir imunidade de
grupo?
Concordo. Isto apesar de se desconhecer ainda a sazonalidade deste
vírus. Os estudos disponíveis apontam para alguma sensibilidade do
vírus ao fator climático, mas que tal não é marcante. Só será
possível travar a propagação do vírus quando já não houver uma
cadeia de transmissão viável, ou seja, quando existir uma imunidade
de grupo considerável. Isso só se alcançará depois de se ter estado
em contacto com o vírus, ou seja, infetado, ou após ter tomado a
vacina.
Como vê o anunciado
regresso a uma aparente normalidade no início de maio? Está
apreensivo?
Teremos de estar atentos e epidemiologicamente vigilantes. As
medidas a tomar poderão ser adaptativas. Admito que possa ter que
haver uma espécie de dança: aliviar as medidas restritivas num
setor ou numa região ou apertar as medidas de condicionamento de
movimentos noutros setores ou noutras regiões, em função das
circunstâncias. Mas penso que iremos aprender muito com outros
países que já estão mais avançados do que nós, neste domínio. E,
muito importante, teremos de fazer testes serológicos à população
para avaliar a sua real imunidade e a real dimensão do nível de
infeção do vírus. Até pode acontecer que ao fazer este teste,
venhamos a saber que uma percentagem substancial da população teve
contacto com o vírus, mas que apenas experimentou sintomas ligeiros
ou esteve mesmo assintomática.
Os eventos de massas,
como um jogo de futebol ou um concerto, estão definitivamente
banidos nos próximos meses largos?
Não sabemos. Mas o mais angustiante é estimar a duração deste
tempo adaptativo que vamos ter. Antecipa-se que poderemos regressar
à vida mais normal com um conjunto de medidas de proteção
individual, designadamente as máscaras comunitárias. Mas as
questões subsistem: por exemplo, será que poderemos abrir os
cinemas ou os teatros obrigando as pessoas a usar máscara e
respeitando determinados lugares de intervalo? São decisões que
competem aos especialistas de saúde pública e, como tal, não nos
devemos precipitar.
Considera que os
próximos tempos serão uma espécie de experimentalismo
social?
Sem dúvida. Nunca ninguém da nossa geração vivenciou algo
semelhante. Passar por uma situação de confinamento social é uma
experiência completamente nova, especialmente nos países
ocidentais. E ainda se desconhecem os impactos sociais e
psicológicos que vão acontecer depois da pandemia. A pergunta que
muitos fazem é que mundo e que sociedade emergirão após isto. Nas
relações laborais, na escola, etc. Também há os otimistas, que
acham que vamos ter uma sociedade melhor.
Obter uma vacina segura e eficaz
demora tempo. Não há nada a fazer para encurtar o tempo da ciência
e salvar vidas?
O tempo da ciência é assim mesmo. É esse tempo que nos garante que
temos confiança nas vacinas para uso humano que são administradas e
na medicina baseada na ciência. O nível de provas tem de ser
extraordinário, de forma a que os benefícios da vacina suplantem,
claramente, os riscos.
Pode descrever o processo
para produção de uma vacina?
Temos agora umas vacinas muito promissoras feitas com material
genético do vírus - as vacinas de DNA. Depois de ter esse
conceito de vacina, avançamos para a estratégia, que é fundamental
em termos de investigação: o nosso sistema imunitário estimula a
produção de anticorpos, de modo a que quando entrar em contacto com
o verdadeiro agente patogénico já o saiba reconhecer rapidamente, a
primeira vez que o encontrar, e possa acionar mecanismos de defesa.
No fundo, estamos a expor o sistema imunitário a uma espécie de um
falso vírus, só para o testar.
A primeira etapa da
vacina pode ser experimentada em laboratório, in vitro, em células,
e ver o que acontece.
E se essa fase for bem sucedida?
Nesse caso, podemos passar para os ensaios com animais, em
ratinhos, por exemplo. Prosseguindo, podemos avançar para os
ensaios clínicos em humanos. E nessa fase - com muitos riscos
- tem de se garantir que ela é segura para ser administrada
em humanos. Posteriormente, os testes são alargados a um maior
número de pessoas, por forma a detetar reações adversas mais
incomuns. Na fase três experimenta-se a eficácia da vacina. Ou
seja, se ela consegue prevenir a doença. Mas é óbvio que nem tudo é
linear, há falhas e há retrocessos. Isto está longe de ser um
processo administrativo. Os testes são demorados e exigentes, o que
explica que quando as vacinas entram no mercado temos confiança
nelas.
A comunidade científica
está mobilizada como nunca...
Essa é uma nota de esperança e otimismo que eu gostaria de
realçar. Há aqui um esforço e uma orientação de recursos
científicos sem precedentes dirigidos a este problema. Há cérebros,
meios e experiência de todo o mundo a trabalhar na vacina.
Muitos países do mundo
estão a trabalhar para a vacina. Admite que exista uma guerra
aberta pela paternidade da vacina?
Com toda a certeza. Quando chegamos à fase de produção da vacina
estamos no mundo das empresas e sabemos como a competição é forte
no mercado. Existe uma hípercolaboração científica que coexiste com
uma forte competição empresarial. Bom seria que esses
cientistas de todo o mundo obtivessem várias vacinas diferentes,
todas com a finalidade única de combater o vírus.
Os mais céticos em
relação às vacinas vão mudar de opinião sobre o seu uso depois
desta crise sanitária?
Espero que sim. Aliás, tenho alguma esperança que alguns já tenham
mudado de opinião. Mas não acredito que os movimentos anti-vacinas
desapareçam, definitivamente. Trata-se de um fenómeno um pouco
tribal e é constituído por pessoas que fazem gala de pertencer a
essas correntes que defendem terapias alternativas. Os movimentos
anti-vacinas sempre falaram de barriga cheia por serem pessoas que
nunca sentiram medo das doenças infeciosas, por causa da segurança
dos antibióticos e das vacinas. A maioria dos pais atuais, que têm
crianças pequenas, nunca conheceu ninguém com sarampo, o que dá uma
falsa sensação de segurança. As vacinas são, de algum modo, vítimas
do seu próprio sucesso.
Também é comunicador de
ciência. É, por isso, a pessoa indicada para responder a esta
pergunta: a comunidade científica tem sabido comunicar com a
opinião pública?
É muito difícil comunicar a incerteza, até porque estamos a falar
de um processo científico em curso. A ciência faz-se assim: um
investigador tem uma ideia e publica-a, outros escrutinam o seu
trabalho, confirmam ou refutam. E só após algum tempo de
amadurecimento do trabalho científico sobre um determinado problema
é que chegamos a conceitos, teorias e ideias consistentes. E o
público desconhece, em grande medida, todos os trâmites deste
processo científico. A generalidade da população ignora por
completo a dialética do processo científico e acredita que a
ciência é uma espécie de caixa negra de onde saem conclusões
instantâneas e algumas mágicas.
O quadro que traça não é
simpático. Mas não acha que estas semanas têm sido uma oportunidade
de ouro para a ciência e os cientistas mostrarem o seu
trabalho?
Sem dúvida. É uma oportunidade para fazer divulgação científica e
explicar às pessoas como é que a ciência funciona. Outra vantagem é
que, no presente momento, as pessoas estão muito interessadas por
estes temas de natureza científica. Querem saber mais sobre os
vírus, sobre as vacinas, sobre a epidemiologia, etc.
A diretora do Instituto
de Medicina Molecular (IMM), Maria Manuel Mota, disse ao
"Expresso", e passo a citar, que «o vírus é relativamente
bonzinho». Esta frase, lida de forma avulsa, não pode ser uma forma
de má comunicação da ciência ou é apenas um título retirado do
contexto?
Penso que a Maria Manuel Mota, de um modo geral, faz um bom
trabalho de comunicação de ciência. Há sempre o risco de qualquer
coisa que se diga à comunicação social - em especial sobre um tema
quente - possa ter um efeito inesperado. Por isso, nem sempre é
possível controlar aquilo que é dito à imprensa. Sinceramente, não
poria demasiado ênfase nessas palavras. Mas, já agora, deixe-me
fazer uma ressalva: o vírus é «bonzinho» ou não, dependendo com que
vírus o comparamos. O grande problema deste vírus é a sua
transmissibilidade durante o período assintomático e ter um pico de
carga viral numa fase relativamente precoce da doença.
Sobre os ombros dos
cientistas recai um fardo de responsabilidade. Estão todos à espera
que a ciência salve o mundo?
A ciência não vai salvar o mundo sozinha, precisa de uma
colaboração enorme de toda a sociedade, mas usando as suas
palavras, a ciência vai ser fundamental para salvar o mundo. A
esperança está na ciência. E desde o início: foi a ciência que
identificou e sequenciou o vírus e encontrou rapidamente um teste
genético para o vírus. Para além da busca incessante para obter uma
ou várias vacinas e testes serológicos para aferir a imunidade da
população. O cientista Carl Sagan referia-se à ciência como uma
vela no escuro («a candle in the dark») e é precisamente através da
ciência que podemos ter uma história diferente se compararmos com
as pandemias que assolaram a humanidade nos últimos séculos. Quero
aqui referir, que cientistas de todo o mundo deixaram tudo o que
tinham em mãos e passaram a dedicar as suas mentes em exclusivo a
este problema. Há instalações científicas inteiras dedicadas
unicamente à Covid-19.
A ciência não dá votos,
apesar de já termos tido um comissário europeu neste domínio. Acha
que esta crise vai contribuir para mudar o
paradigma?
Espero que deste episódio saia um reconhecimento e uma valorização
da ciência.
Os progressos científicos
ainda são pouco incorporados na tomada de decisão
política?
Temos situações muito diversas pelo mundo. Há países, bem
conhecidos, nos quais a ciência tem recuado em termos do peso da
decisão política. O expoente máximo desse retrocesso é a
administração Trump, nos Estados Unidos. Temos na Casa Branca um
presidente que ignora olimpicamente os seus assessores científicos,
por vezes, na mesma conferência de imprensa. Já do ponto de vista
das alterações climáticas houve, nos últimos 20/30 anos, um grande
caminho ao nível do discurso político em prol do aconselhamento
científico da decisão política. E também tenho esperança que esta
pandemia contribua para prevenir futuras epidemias, reforçando-se o
aconselhamento científico dos responsáveis políticos.
Trump e Bolsanaro são
dois inimigos da ciência?
São dois grandes inimigos da ciência. É trágico e desesperante ter
Trump e Bolsonaro a dirigir os Estados Unidos e o Brasil,
respetivamente. Quis o destino que fossem eles os decisores
políticos de dois dos maiores países do mundo, num contexto de
tamanha gravidade, ficando o planeta à mercê do seu processo de
decisão, baseado em interesses particulares que deixam
completamente à margem a ciência, sacrificando o interesse público
e o bem comum.
O espírito científico é o
único antídoto para combater as "fake news" e os vendedores de
banha de cobra, como não se cansa de acusar?
Contra a pseudociência a única arma válida é a cultura científica.
As pessoas têm de saber melhor o que é a ciência, para a
distinguirem da falsa ciência. Contra as "fake news", de uma forma
geral, é preciso cultivar um sentido crítico, aumentar a educação e
a cultura da população, sem esquecer a cultura científica. São
objetivos bem difíceis de alcançar, mas o espírito científico e os
princípios básicos da ciência devem ser ensinados na escola, desde
tenra idade, designadamente a partir dos valores da observação e da
experiência. A escola e os professores têm um papel fundamental,
sem esquecer a própria educação informal que é apreendida ao longo
da vida. E não gostaria de excluir os próprios meios de comunicação
social e os divulgadores de ciência.
Depois desta pandemia,
existirão mais jovens a desejarem seguir a carreira de
cientista?
É imprevisível antecipar se vai aumentar o número de vocações para
a investigação científica. Os estudos dizem que, em geral, os
alunos valorizam a ciência e os cientistas. O mesmo acontecendo com
os pais. Mas quando perguntados que profissão querem ter, não dizem
que querem ser cientistas. É um fenómeno muito curioso.
Provavelmente, é uma atividade que aparenta não ser atraente para
os mais novos. Valha a verdade, que também não precisamos de muitos
cientistas. Precisamos é de pessoas com cultura científica, o que é
diferente.
Nuno Dias da Silva
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