Bocas do Galinheiro
Últimas horas
Ao ler o texto de João Bénard da Costa sobre "Vai e
Vem" (2003), o último filme de João César Monteiro, "aí pelo meados
do século findo, esteve muito em voga dizer-se que a última obra
representaria um topo. Em tempos - mas sempre no século passado - a
Cinemateca organizou mesmo um Ciclo com últimas obras, para
examinar essa questão. Como João César Monteiro diz a Jacinta - a
terceira das suas mulheres-a-dias, a propósito de outras coisas que
também aparecem feitas - 'as opiniões dividem-se' e 'é com a
subjectividade de cada qual'. Mas, se há 'últimas obras' que nada
parecia predestinar a últimas (em nos distraindo ou em Deus se
distraindo, acontece) há 'últimas obras' que todos, a começar pelo
próprio sabiam que seriam as últimas. VAI E VEM está neste caso", e
uma vez que não assistimos ao tal ciclo de que o crítico fala,
lembrámo-nos de procurar algumas das últimas obras de cineastas,
não de todos, claro está.
E para começar, Antonioni que, já depois de um avc,
e quando a sua careira parecia ter terminado, com assistência de
Wim Wenders assina "Para Além das Nuvens", em 1995, e tem a sua
derradeira direcção num episódio do filme colectivo "Eros",
acompanhado de Steven Soderbergh e Wong Kar Wai, em três histórias
sobre amor e sexo. Curiosamente Wim Wenders vai estar ligado à
despedida de Nicholas Ray, realizador de quem era confesso
admirador e cúmplice, diga-se, ao onto de o incluir como actor no
seu filme "O Amigo Americano", ao terminar, neste caso mesmo a
"última obra", "Lightening Over Water", de 1980, uma co-realização,
será mesmo?, num filme que nos passa em revista a obra de Ray e nos
mostra os seu últimos tempos de vida, o realizador morreria antes
de terminado o filme, daí a eterna questão se é um Nick's movie ou
a derradeira homenagem de Wenders ao mentor e amigo. Adiante. Quem
também não viu projectada a sua última obra foi Sergei Eisentein. A
segunda parte de Ivan o Terrível. Depois de êxito que foi a
primeira, "A Tomada do Poder por Ivan", a segunda "A Conspiração
dos Boiardos", banida por Estaline, nunca foi exibida publicamente
antes da sua morte, em 1948 e da de Estaline em 1953, vindo a sê-lo
em 1958. Claro está que o realizador nunca obteve autorização para
filmar a terceira parte, "As Lutas Finais de
Ivan".
Sobre "Gertrud, (1964) de Carl Th. Dreyer, escreveu
Manuel Cintra Ferreira: "Foi o último filme de Carl Dreyer. Quatro
anos depois da sua estreia, o realizador falecia sem ter podido
concretizar o velho projecto de 20 anos de uma Vida de Cristo, nem
outro que o ocupou depois de GERTRUD, uma adaptação de Medeia.
GERTURD é tudo menos o clássico 'testamento' que geralmente se
procura na obra derradeira de um autor. GERTRUD é um novo começo e
uma revolução. Daí que tenha sido também o mais incompreendido dos
filmes de Dreyer, por se encontrar muito à frente do cinema que
então se fazia, apesar de já ter aparecido a Nouvelle Vague e toda
uma série de movimento de 'cinema novo'. No fim de contas, se
alguma coisa de novo se fez então, a parte mais importante talvez
esteja nos velhos mestres e nas suas obras derradeiras (e a que
mais se aproxima da obra de Dreyer é a que John Ford fez dois anos
depois e que também encerra uma vida e uma carreira, SEVEN WOMEN),
como se na sua despedida quisessem abrir caminhos novos para os
seus herdeiros".
"Intriga em Família" (1976), é o último filme da
Hitchcock. Mais uma vez não se pode dizer que estamos perante o tal
testamento cinematográfico, tanto mais que na altura da sua morte o
realizador já tinha o script para um novo filme. Não deixa de ser
curioso o facto de este último filme do mestre do suspense tenha
como tema a morte, ou a vida para além da morte (apesar de no filme
sabermos que aquilo do espiritismo é treta) e que, a sua aparição
neste filme seja como sombra chinesa atrás do vidro de um gabinete
de "registo de óbitos".
Apesar do no muito autobiográfico "All That Jazz"
(1979), Bob Fosse ter coreografado a morte do protagonista, também
ele morreria de ataque cardíaco em 1989, o seu último filme, duma
curta filmografia, diga-se, de que "Lenny" (1975) e "Cabaret"
(1972) serão referências obrigatórias, é "Star 80", um biopic da
playmate Dorothy Stratten, também ela morta precocemente. Também o
tema da morte está patente no adeus ao cinema de Douglas Sirk, de
1959, "Imitation of Life", como não podia deixar de ser um
derradeiro melodrama sirkiano. Também em "Mutiny on The Bounty",
1962, de Lewis Milestone, a morte acontece, não dos muitos homens
que nele perdem a vida, mas a morte simbólica do navio consumido
pelo fogo.
É evidente que a lista era longa e distinta se nos
puséssemos aqui a escrever sobre todos os últimos filmes de grandes
realizadores. De "Salo", 1975, de Pasolini, a "Querelle", 1982, de
R. W. Fassbinder, passando por "O Sacrifício", 1986, de Andrei
Tarkovski e aquele fenomenal plano final de quase dez minutos, ou
"Eyes Wide Shut", de Kubrik (1999), "Vermelho" de Kielowski (1994),
para lembrar apenas alguns mais recentes, sem esquecer Bergman que
retoma o tema do relacionamento conjugal e familiar numa sequela de
"Cenas da Vida Conjugal" naquele que viria a ser o seu último
trabalho "Saraband", de 2003.
Como já escrevi antes, e a propósito de Bergman,
eles vivem para sempre nos seus filmes, agora que a Parca os veio
buscar!