Opinião

Crónica
Diz-me espelho meu...

Julieta Ferreira - Foto3.jpgPedimos tão acaloradamente, enfaticamente e encarecidamente que nos digam a verdade. Credo! Não há por aí quem fale verdade? A verdade sem tirar nem pôr. A pura verdade, nua e crua. A verdade, verdadinha. Sem desvios, sem poetizações, sem rendilhados, sem cosméticos, sem silicones, sem tudo aquilo que a transforma numa reles impostura! Mas, dirão alguns, trata-se de um acto caritativo, cheio de boas intenções. É o adoçante na chávena do amargo café, o verniz a pintar a unha partida, a camada de pó de arroz a abafar os traços daninhos do tempo. Essa é a falsa verdade que escorre de tantos lábios abertos num ensaiado sorriso, de forma airosa e convincente, não se vá magoar quem a ouve - assim pensa quem deseja uma auto-absolvição instantânea, para tranquilizar a consciência e dar descanso ao espírito. Porque, vamos lá a ver, a verdade é pesada e pode vir a causar umas certas dores de cabeça, de barriga e até de cotovelo.

 E depois, pergunta-se, com um ar de filósofo feito à pressa e um intelectualismo de trazer por casa: o que é a verdade? Como se a verdade fizesse parte dessa lista de conceitos metafísicos que transcendem a compreensão dos mais simples mortais. Como se a verdade só fosse estudada por quem tenha o privilégio de se sentar numa aula magna de Universidade, ouvindo as enfadonhas e complexas palestras dos detentores da sabedoria e da cultura de um país. Como se apenas os mais eruditos pudessem chegar aos enigmáticos meandros da verdade! Mas fica bem, sim senhor. Fica bem essa pergunta retórica para desnortear e confundir as mentes.

E que me dizem a esse jogo estranho de brincar às escondidas com a verdade? Isto para os que se julgam capazes de desafiar as forças ocultas do universo ou de um sistema superior de conhecimento e se afoitam em a perseguir, desalmadamente, procurando-a por toda a parte. Todavia, como estão constantemente a escondê-la, tanto aqueles que a buscam como os outros que a desprezam, e todos eles se esquecem do lugar onde a guardaram muito bem guardadinha, o resultado da sua procura é estéril. Já viram um cão às voltas, a querer agarrar a própria cauda? Já viram alguém a procurar uma agulha num palheiro? Não precisam de ter visto, basta imaginarem! Se eu lhes disser que nem o cão conseguirá agarrar a cauda nem a agulha será encontrada, acreditem porque é a verdade.

Há um dia em que finalmente a verdade nos olha de frente, sem cerimónia ou convite. Assim, de rompante, quando menos esperamos e quando as nossas bem treinadas defesas felinas ficaram a hibernar. É nessa altura que preferiríamos nunca a ter chamado e a nossa resposta é de choque e negação. Querem lá ver? Que desaforo, que afronta! Logo ali, munidos da bagagem que fomos armazenando pela vida, arranjamos nomes pomposos para classificar quem nos traz a verdade ainda fresquinha e crocante como os pastéis de Belém que, entenda-se, são os verdadeiros pastéis de nata. Pois então! Chamamos-lhes socialmente desajustados, psiquicamente desalinhados, falhos do mínimo decoro dentro das regras instituídas, egocêntricos e individualistas, néscios e loucos, possivelmente padecentes de um desses síndromes modernos que têm a ver com uma esquisita patologia.

Depois do embate doloroso e indigno com a verdade, continuamos confortavelmente submersos nas águas turvas e pantanosas do engano e, de vez em quando, olhamo-nos ao espelho, esperando que ele nos devolva a imagem projectada da nossa verdade.

Julieta Ferreira
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
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