Crónica
Diz-me espelho meu...
Pedimos tão acaloradamente, enfaticamente e
encarecidamente que nos digam a verdade. Credo! Não há por aí quem
fale verdade? A verdade sem tirar nem pôr. A pura verdade, nua e
crua. A verdade, verdadinha. Sem desvios, sem poetizações, sem
rendilhados, sem cosméticos, sem silicones, sem tudo aquilo que a
transforma numa reles impostura! Mas, dirão alguns, trata-se de um
acto caritativo, cheio de boas intenções. É o adoçante na chávena
do amargo café, o verniz a pintar a unha partida, a camada de pó de
arroz a abafar os traços daninhos do tempo. Essa é a falsa verdade
que escorre de tantos lábios abertos num ensaiado sorriso, de forma
airosa e convincente, não se vá magoar quem a ouve - assim pensa
quem deseja uma auto-absolvição instantânea, para tranquilizar a
consciência e dar descanso ao espírito. Porque, vamos lá a ver, a
verdade é pesada e pode vir a causar umas certas dores de cabeça,
de barriga e até de cotovelo.
E depois,
pergunta-se, com um ar de filósofo feito à pressa e um
intelectualismo de trazer por casa: o que é a verdade? Como se a
verdade fizesse parte dessa lista de conceitos metafísicos que
transcendem a compreensão dos mais simples mortais. Como se a
verdade só fosse estudada por quem tenha o privilégio de se sentar
numa aula magna de Universidade, ouvindo as enfadonhas e complexas
palestras dos detentores da sabedoria e da cultura de um país. Como
se apenas os mais eruditos pudessem chegar aos enigmáticos meandros
da verdade! Mas fica bem, sim senhor. Fica bem essa pergunta
retórica para desnortear e confundir as
mentes.
E que me dizem a
esse jogo estranho de brincar às escondidas com a verdade? Isto
para os que se julgam capazes de desafiar as forças ocultas do
universo ou de um sistema superior de conhecimento e se afoitam em
a perseguir, desalmadamente, procurando-a por toda a parte.
Todavia, como estão constantemente a escondê-la, tanto aqueles que
a buscam como os outros que a desprezam, e todos eles se esquecem
do lugar onde a guardaram muito bem guardadinha, o resultado da sua
procura é estéril. Já viram um cão às voltas, a querer agarrar a
própria cauda? Já viram alguém a procurar uma agulha num palheiro?
Não precisam de ter visto, basta imaginarem! Se eu lhes disser que
nem o cão conseguirá agarrar a cauda nem a agulha será encontrada,
acreditem porque é a verdade.
Há um dia em que
finalmente a verdade nos olha de frente, sem cerimónia ou convite.
Assim, de rompante, quando menos esperamos e quando as nossas bem
treinadas defesas felinas ficaram a hibernar. É nessa altura que
preferiríamos nunca a ter chamado e a nossa resposta é de choque e
negação. Querem lá ver? Que desaforo, que afronta! Logo ali,
munidos da bagagem que fomos armazenando pela vida, arranjamos
nomes pomposos para classificar quem nos traz a verdade ainda
fresquinha e crocante como os pastéis de Belém que, entenda-se, são
os verdadeiros pastéis de nata. Pois então! Chamamos-lhes
socialmente desajustados, psiquicamente desalinhados, falhos do
mínimo decoro dentro das regras instituídas, egocêntricos e
individualistas, néscios e loucos, possivelmente padecentes de um
desses síndromes modernos que têm a ver com uma esquisita
patologia.
Depois do embate
doloroso e indigno com a verdade, continuamos confortavelmente
submersos nas águas turvas e pantanosas do engano e, de vez em
quando, olhamo-nos ao espelho, esperando que ele nos devolva a
imagem projectada da nossa verdade.