Entrevista

José Carlos Barros, Escritor e ex-diretor do Parque Natural da ria formosa
“O problema é a morte das aldeias”

Foto José Carlos Barros2 copy.jpgJosé Carlos Barros é licenciado em Arquitetura Paisagista pela Universidade de Évora, foi diretor do Parque Natural da Ria Formosa e exerce funções autárquicas, há oito anos, em Vila Real de Santo António. Tem desempenhado cargos na área da conservação ambiental e vê o risco da extinção do mundo rural como um grande problema do país.

Conquistou vários prémios em poesia. Em prosa, publicou a novela O Dia em que o Mar Desapareceu (2003) e dois romances : O Prazer e o Tédio (2009); e Um Amigo Para o Inverno (2013). O mais recente romance, Um Amigo para o Inverno, é baseado em dois factos reais, do princípio dos anos cinquenta. Alguém se dá por culpado de um crime que não cometeu; e a existência de uma célula clandestina do partido Comunista no Norte de Portugal.

Um Amigo para o Inverno (Casa das Letras) é o seu mais recente romance. Qual foi o ponto de partida para este livro?

Dois acontecimentos reais. Por um lado, alguém que se dá por culpado de um assassinato que não cometeu. Por outro lado, a existência de uma célula clandestina do Partido Comunista no Norte rural e conservador de princípio dos anos cinquenta. Estes são os pontos de partida de uma história que, sendo uma ficção, procura ter sempre um pé assente na realidade. Ambos os acontecimentos me foram próximos durante a infância. De resto, um dos elementos da célula clandestina era meu tio-avô e existem várias fotografias em que aparecemos juntos.

Quem é Francisco Aniceto Gonçalves, o sargento que vai chefiar o posto da GNR da Vila, em Um Amigo Para o Inverno?

O sargento Gonçalves é uma personagem que vai confrontar-se com a impossibilidade da neutralidade, tanto na política como no amor. Gostaria que representasse essa dificuldade e essa imprescindibilidade de escolhermos caminhos.

Um Amigo para o Inverno conta uma história de resistência à ditadura…

De resistência e de desistências. De nobreza e traição. Um vilão, em determinada altura da sua vida, pode revelar-se um herói. Tenho sempre dificuldade em ver os maus de um lado e os bons do outro. A preto-e-branco. Esta é, pois, uma história de resistência que se faz de actos de coragem e da erosão de se perderem os sonhos. Mas, no fundo, é um livro de esperança: a ideia de que é sempre possível sonhar um país justo, de que é sempre possível um recomeço.

É sua a seguinte afirmação «A tradição é o contrário da herança: isso que recebemos e que procuramos legar ao futuro. A tradição é a nossa má-consciência de termos destruído o que nos pertencia: o mosaico da paisagem, as paredes das casas, os cestos de vime, a agricultura, um saber fundado na transmissão acrescentada de conhecimentos. Recuperámos uma eira e editámos um desdobrável ilustrado para nos dias festivos mostrarmos como éramos se não nos tivéssemos transformado no que somos.(…)». Ainda estamos a tempo de salvar o mundo rural?

Foto José Carlos Barros copy.jpgO grande problema do nosso país, afirmou recentemente o Professor Ribeiro Telles, é a morte das aldeias. O pessoal ri-se. Ora, não posso estar mais de acordo com esta afirmação que, a meu ver, deve ser lida numa dupla perspectiva: literalmente e enquanto metáfora. Metáfora de um país que não compreende que acabar com as aldeias é acabar com a Paisagem. E acabar com a Paisagem é acabar com a nossa maior riqueza: os nossos recursos endógenos, naturais, ambientais, territoriais. Varremos a ruralidade para debaixo do tapete como quem se livra de um mal, esquecendo que acabar com o mundo rural é também acabar com o mundo urbano, por quebra de interdependências num território que não pode deixar de ser globalmente considerado. E agora estamos de joelhos, desorientados, perdidos, a pedir dinheiro emprestado a juros altos para comprar grão-de-bico e pagar desvarios. O mundo rural, obviamente, terá que ser uma coisa diferente do mundo rural que conhecemos no passado. Mas regressarmos às aldeias será uma questão de tempo, por ser uma inevitabilidade.

Existe preocupação por parte dos políticos portugueses em preservar o mundo rural?

Os políticos, em regra, fazem o que a sociedade maioritariamente exige. Colocaria a questão de outro modo: não existe preocupação dos portugueses em preservar o mundo rural.

Porque que é que, escrevendo livros e tendo como formação a arquitectura paisagista, se interessou pela política autárquica?

Não me interessei nem deixei de interessar. Sendo desafiado, acabei por aceitar um desafio que julgo que seria importante mais pessoas aceitarem ou procurarem, em vez de se quedarem numa mesa de café a praticarem um dos actuais desportos favoritos, que é o tiro ao político. Como se o exercício da intervenção cívica estivesse destinado em exclusivo a umas figuras sinistras que nasceram e tiveram logo no bilhete de identidade o carimbo de políticos. Exerci funções executivas durante oito anos, e agora vou deixar de exercê-las e regressar com naturalidade à minha profissão e ao que fazia antes -- sem mordomias nem benesses. Acho que a renovação na política, nos cargos políticos, é uma exigência ética. Uma elevada rotatividade nos cargos, uma renovação constante, será, parece-me, uma exigência e uma imprescindibilidade num futuro próximo - por oposição ao berro, a um distanciamento confortável e ao desporto simultâneo de procurar nos outros as culpas de todos os males.

Quais são os grandes erros cometidos nos últimos anos no ordenamento do território português?

Isso daria para uma conversa grande. O ordenamento do território e a conservação da natureza são disciplinas ainda recentes no nosso país, e as tensões e interesses conflituantes não sedimentaram ainda em estratégias com a necessária consensualização na sociedade e na compreensão do que está verdadeiramente em jogo. Essencialmente, ainda não compreendemos que o que é bom para o ambiente e para a conservação da natureza é, do mesmo passo, bom para a economia -- se esquecermos interesses de curto prazo. E, por outro lado, não compreendemos ainda, ou não conseguimos ainda interiorizar e consensualizar, que o processo de ordenamento do território deve estar sempre subordinado a um interesse mais alargado que o dos interesses individualmente considerados. Ou seja: o primado do interesse público ainda não fez jurisprudência na sociedade civil. Finalmente, ainda não se compreendeu que a Paisagem, enquanto exemplo mais acabado de uma civilização e da intervenção culta de uma sociedade, exige actuações estratégicas que não estejam condicionadas por interesses circunstanciais de curto-prazo. É uma simplificação, claro, mas veja-se este exemplo: cada vez se gasta mais dinheiro no combate aos incêndios, e cada vez arde mais floresta. Retirámos as pessoas do meio rural, acabámos com as aldeias, e agora alugamos aviões e helicópteros para apagar fogos que podiam ser apagados com um balde, ou fazendo chichi sobre as chamas, se tivéssemos pessoas a tratar da floresta e a viver ao pé das árvores. Ou que não se teriam sequer iniciado se, em vez do abandono, da desertificação, houvesse ainda gente a viver nas aldeias e a fazer a gestão da Paisagem.

Martin Schultz, o presidente do parlamento europeu, afirmou «A actual crise europeia não é apenas uma crise económica, também é um crise psicológica que põe em causa a democracia.». Como comenta esta afirmação?

As grandes crises económicas dão quase sempre em enfraquecimento, ou desmantelamento, das democracias. Nós próprios parece que já andamos à procura de salvadores providenciais.

Foi director do Parque Natural da Ria Formosa. Qual é o caminho que Portugal tem vindo a traçar em matéria de conservação ambiental?

Acho que já respondi um pouco. Acho, em resumo, que nos falta compreender que a conservação da natureza não é proteger passarinhos mas um processo que, implicando a sustentabilidade ambiental, é sobretudo um processo de sustentabilidade económica. Em tempos de crise económica, como a actual, é de regra que se desvalorizem as questões ambientais. É, a meu ver, o que está a acontecer. Ora, as preocupações com o ambiente, com a paisagem, com o território, deveriam ser, nestas alturas, pelo contrário, consideradas como uma prioridade e uma oportunidade. Mas, tanto quanto sei, o memorando da troika fala essencialmente de cortes, de restrições, de juros, e não de aproveitamento de recursos naturais, de revitalização de actividades económicas, de aproveitamento das potencialidades do território. E o ambiente é também, ou essencialmente, isso: um recurso.

O romance O Prazer e o Tédio foi adaptado ao cinema. Gostaria de ver Um Amigo para o Inverno no grande ecrã?

O filme que resultou da adaptação do livro O Prazer e o Tédio é um objecto artístico, belíssimo do ponto de vista estético, mas foi, essencialmente, um acontecimento social ímpar: o filme foi produzido, realizado e interpretado por pessoas ligadas ao espaço geográfico que o livro descreve; sem subsídios, sem dinheiro, uma comunidade, durante quase dois anos, entregou-se de corpo e alma a um projecto. É claro que não penso que este deva ser o caminho do cinema português, que precisa e merece ter programas de apoio. A verdade é que o filme resultou, também por isto, num objecto verdadeiramente singular. É óbvio que gostaria, nestes ou outros moldes, que a experiência se pudesse repetir.

Começou por escrever poesia e conquistou prémios literários nessa área. A prosa surgiu quando?

Nem mais tarde, nem mais cedo. Mas o romance exige uma disciplina que nunca tive com a escrita, até há uns quatro anos me ter finalmente decidido à empreitada de um texto longo. Foi quando decidi que era tempo de contar as histórias que me apetecia contar.

Em qual dos géneros (poesia ou romance) está mais à vontade?

Não colocaria assim a questão. Mas a poesia está mais próxima da linguagem em estado puro, do assombro, da incerteza, do sobressalto, da inquietação. Num poema também se podem contar histórias, claro. Mas as histórias que desejo contar exigem a prosa, a narrativa longa.

Quais são os livros que não consegue esquecer?

O D. Quixote. É o meu livro preferido, que neste momento, aliás, estou a reler, na tradução de Aquilino. Tenho dezoito edições do Quixote, que para mim já é mais que um livro. É quase como se fosse o livro. Mas, assim de repente, acrescentaria as Ficções do Borges, O Crime e Castigo, o Vermelho e o Negro, a Carta de Guia de Casados, a Alegria Breve do Vergílio Ferreira, Os Passos em Volta do Herberto Helder, os Novos Contos da Montanha, o Camilo todo e os Contos de Gostofrio e Lamalonga do excepcional Bento da Cruz.

Já existe uma ideia para um próximo romance?

Existe mais do que uma ideia. Vai em cento e vinte páginas. É sobre a invisibilidade: sobre pessoas que passam pela vida como se não existissem.

Eugénia Sousa
Direitos reservados
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
Unesco.jpg LogoIPCB.png

logo_ipl.jpg

IPG_B.jpg logo_ipportalegre.jpg logo_ubi_vprincipal.jpg evora-final.jpg ipseutubal IPC-PRETO