Entrevista

Maria Emília Brederode dos Santos, presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE)
«A escola tem de trabalhar para o futuro»

DR (2).jpgO Estado da educação visto à lupa pela palavra de Maria Emília Brederode dos Santos, presidente do CNE e uma das vozes mais autorizadas a falar sobre o ensino em Portugal.

Preside ao CNE desde novembro de 2017, um órgão independente, nomeado pela Assembleia da República. Quais são, em traços gerais, as principais funções deste organismo?

É um órgão consultivo,  constituído por 68 conselheiros, que se encontram em representação de inúmeros parceiros educativos: associações de estudantes, de pais, de professores, de associações científicas, de instituições de ensino superior, etc. O CNE debruça-se sobre determinados temas, relativamente aos quais o governo ou a Assembleia da República queiram legislar e, nesse sentido, pronuncia-se sobre essas medidas ou projetos que vão ser levadas a Plenário, procurando chegar a um consenso ou a um compromisso sobre essas iniciativas.

E de que forma é que o CNE se pode manifestar?
Nomeadamente, com pareceres e recomendações. No fundo, ajudar a que as medidas de política educativa sejam o mais bem trabalhadas, o mais debatidas e o mais consensuais possível. Esta é a missão principal do CNE. Para além disso o CNE também tem as suas próprias iniciativas, de reflexão e debate sobre os mais variados temas da educação. Quando os próprios conselheiros entendam que existem áreas que não estão a ser alvo de legislação, e que merecem uma atenção especial, o CNE faz recomendações, que seguem os mesmos trâmites dos pareceres, isto é, são objecto de um estudo técnico que fundamentará uma proposta de dois ou três relatores, essa proposta é debatida em comissão e são-lhe incorporadas alterações. Finalmente a proposta é levada a Plenário, debatida e votada.

É possível chegar a um consenso com tantos conselheiros em representação de sensibilidades tão distintas?
É certo que os interesses são diferentes, mas também podem ser comuns, veja-se o caso dos pais, estudantes, professores,  diretores e funcionários de uma escola. As medidas que vão ser legisladas devem ter em conta todos estes interesses e é neste ponto que o contraditório pode acrescentar valor à decisão final. Mas o CNE não emite os seus pareceres apenas com base nos interesses e sensibilidades, apoia-
-se em estudos, na investigação, na melhor evidência disponível.

O relatório anual do Estado da Educação é uma das atividades mais emblemáticas do CNE. No último relatório critica os altos níveis de retenção. Como combater este problema?
Existiu uma viragem muito grande na educação e que consistiu no deixar de pensar que o aluno é o único responsável pelas suas aprendizagens e passar a considerar que a escola é responsável pelo desempenho dos seus alunos. O problema da retenção é fácil de resolver, aliás, bastaria dizer que não há retenção. Até há escolas que já o fizeram! O problema não é esse, é conseguir que todos aprendam realmente. Essa é que é a dificuldade e a tarefa que compete às escolas. Para esse caminho tem de existir a tal diversidade de métodos, a mudança na organização na escola, etc. Está tudo em aberto. Temos de procurar as soluções para que todos os alunos aprendam sem ser necessário quaisquer retenções.

Fala-se muito que este e aquele aluno tem «falta de bases»…
Se não as tem, tem de passar a ter. Não se pode adiar o problema. Identificar o aluno que não tem bases e "chumbá-lo" não vai fazer com que ele passe a ter as tais bases. As reprovações de pouco servem se o aluno não tiver uma atenção especial por parte do sistema educativo em relação às suas reais necessidades.

Diz que a cultura e o modelo escolar terão de se adaptar às necessidades da economia. Significa isto que o ensino atual não serve ou, pelo menos, está desenquadrado da realidade?
O que eu quero dizer é que a escola tem de trabalhar para o futuro. Estamos a atravessar uma fase de profundas transformações, nomeadamente ao nível da tecnologia, mas não só. E é perante este contexto que a escola deve preparar-se atempada e adequadamente. E deixe-me sublinhar um aspeto: a escola não deve passivamente adaptar-se à economia, a escola e os cidadãos devem ser capazes de comandar a economia. Não quero a escola a reboque da economia, devemos antes exigir cidadãos aptos e capazes de fazerem opções políticas que orientem a economia e o desenvolvimento social.

Pretende, de alguma forma, desdramatizar a inevitabilidade que o futuro será dominado pela tecnologia?
Eu recuso um certo deslumbramento e uma deriva tecnológica. Mas não será preciso preparar muita gente para as novas tecnologias? É, sim senhor. Mas também é preciso preparar pessoas que sejam capazes de pensar um mundo em que as novas tecnologias vão ter um papel cada vez mais importante.

Esta questão traz à colação a empregabilidade. Diploma-se, ainda, muito para o desemprego?

Se for ver as estatísticas, há claramente menos desemprego entre as pessoas que têm formação superior. Mas discordo que a educação sirva apenas para a empregabilidade. Serve para refletir. Aprender é um prazer imenso e deve servir para preparar pessoas que gostem de se desenvolver intelectualmente ao longo da vida.

FOTO VERiSSIMO DIAS.jpgQual é a importância da emergência das novas competências, os chamados soft skills?
Penso que todas as pessoas devem desenvolver um conjunto de competências no âmbito da socialização, reflexão e cidadania, em paralelo com a necessária qualificação técnica e especializada na área que seguirem.

Defende currículos mais amplos, nomeadamente com a incursão nas artes e na educação para a cidadania. São lacunas dos atuais currículos?
São lacunas dos currículos que herdámos, ultimamente. Veja que as artes estiveram presentes no 1.º ciclo e foram depois um pouco esquecidas com o ênfase que tem sido colocado na Matemática e na língua materna, o Português. O mesmo se passa com a educação para a cidadania, que mais recentemente tem sido retomada. Mas no fundo o que temos de combater são os currículos muito restritivos e muito orientados só para as áreas em que há testes internacionais.

Porquê esse ênfase na Matemática e no Português?
Primeiramente, porque é mais fácil avaliar essas áreas. Admito que o grau de subjetividade seja menor, relativamente, por exemplo, às artes ou à cidadania, mas não podemos deixar que os currículos se circunscrevam a essas áreas, fazendo com que a escola perca riqueza curricular. Há uma importância excessiva da Matemática e do Português, subalternizando outras áreas. Já viu melhor maneira de aprender a língua materna do que fazer teatro? E há outro aspeto que não pode ser esquecido que é a grande injustiça social. Repare que as pessoas com menos possibilidades económicas e menor herança cultural terão menos acesso às artes se a escola não desempenhar esse papel.

Que balanço faz do projeto de flexibilidade curricular que entrou em vigor este ano letivo em 235 escolas?
Ainda não disponho de dados que me permitam pronunciar-me sobre essa matéria, mas à partida parece-me positivo que haja um currículo comum a toda a gente e por outro lado que haja uma margem de liberdade para cada escola definir o seu próprio currículo.

Falou há pouco que o modelo e a cultura da escola devem adaptar-se aos novos tempos. Quer isto dizer que as tradicionais aulas expositivas também podem ter os dias contados?
Eu adoro uma boa aula expositiva, e gosto de assistir a uma conferência bem feita, bem organizada e bem comunicada. O que não se pode é fazer isso o dia todo. Ninguém aguenta. Veja que até as TED Conferences têm, no máximo, 18 minutos. Ou seja, as aulas expositivas podem existir, mas em paralelo com uma grande variedade de outros métodos, porque também há uma grande variedade de formas de aprender. Quando foram introduzidas as aulas de 90 minutos, o objetivo era que as pessoas trabalhassem de outra maneira. Ou seja, aulas expositivas, sim, mas em paralelo com muitas outras formas de trabalhar e aprender.

A escola ocupa os alunos o tempo suficiente ou em excesso?
Uma vez que os programas estão muito sobrecarregados, existe a tendência por parte dos professores para darem aulas expositivas - que é o meio mais rápido para "dar" o programa todo - e, por outro lado, os alunos que financeiramente podem, vão ter explicações para perceberem aquilo que não conseguiram perceber nas aulas. Mas a escola pública, que é para todos, não pode contar com explicações pagas, por fora. E não faz sentido "dar" o programa se os alunos não aprenderem! E depois, a vida não pode ser só a escola!

E os famigerados trabalhos de casa (TPC)?
Esse é um assunto muito polémico. Não estou contra os trabalhos de casa em absoluto. Devem ser pedidos com conta, peso e medida. E, acima de tudo, variados e interessantes para  que os miúdos os possam fazer autonomamente em casa, ou que suscitem uma conversa e um diálogo com os pais.

O CNE está a desenvolver um estudo que visa as chamadas "escolas resilientes". Ou seja, estabelecimentos inseridos num contexto sócio-económico desfavorecido, cujos alunos obtêm um bom desempenho escolar. Já pode levantar a ponta do véu?
Em Portugal e noutros países, há uma correlação muito forte entre o meio social de origem e o desempenho escolar. Isso foi posto em evidência nos Estados Unidos nos anos 60 e posteriormente em França, Inglaterra, etc. Essa tendência confirma-se em Portugal, mais até do que noutros países. Mas também sabemos que há escolas, as chamadas "escolas resilientes", que conseguem ultrapassar esse determinismo social. O estudo que está a ser desenvolvido pretende saber como é que essas escolas conseguem ultrapassar esse determinismo. E que bom seria que estas conclusões fossem inspiradoras para outras escolas!. Para já, estamos a identificar as escolas a estudar e posteriormente, no terreno, faremos um trabalho que não é em extensão e a que posso chamar mais etnográfico.

O determinismo social é culpa da escola?
A nossa sociedade é muito desigual e a escola reproduz essa desigualdade. Não consegue, na maioria dos casos, vencê-la, mas é aí que entram as "escolas resilientes". As que vencem esse determinismo.

Defende que se devem abordar e trazer temas fraturantes para as escolas, sendo a educação para os media um desses pontos. Quer explicitar?
Basicamente, o que eu digo é que é preciso interessar as pessoas pelas aprendizagens. O modelo de escola vigente em Portugal ainda assenta muito na ameaça da reprovação. Se queremos acabar com isso, temos de enveredar por outras maneiras para que as pessoas aprendam. E estou em crer que, à nossa volta, há tantas questões tão complexas e interessantes e a que os jovens apenas têm acesso superficialmente na TV ou nas redes sociais. Seria uma forma de os interessar a partir dessas temáticas e também para os preparar para uma tomada de posição sobre as mesmas.

E que temas sugeria?
As alterações climáticas, o desenvolvimento sustentável, as migrações, os refugiados… E também as «fake news». São temas muito interessantes e de grande atualidade, que dificilmente podem ser abordados, com a profundidade necessária, por um professor de uma qualquer disciplina. Isto obrigaria a um trabalho de projeto e a um envolvimento de vários professores.

O que está a procurar transmitir é que para além de faltar debate e reflexão na escola, falta também alguma…filosofia?
Também. A filosofia é muito importante nos conturbados tempos que vivemos. Uma das missões da educação é que as pessoas aprendam a pensar e, sem dúvida, que a filosofia é um instrumento importante para esse fim.

A educação e a saúde foram das duas maiores conquistas da revolução de Abril. É na escola que pode estar o futuro do país?
A educação foi e será sempre fundamental para o futuro de qualquer país. O nosso sistema educativo teve um progresso extraordinário desde o 25 de Abril. Basta pensar na rede de jardins de infância, na taxa de analfabetismo, na frequência do ensino secundário e ensino superior, etc. A diferença é colossal. Já muito foi feito, mas continua a ser necessário investir na escola e mudar a escola, para procurar vencer o tal determinismo social de que há pouco falei. A educação é uma área muito vasta. Para além disso, entendo que é urgente e necessário investir na educação de adultos. Há cerca de 3 milhões e meio de portugueses que têm, no máximo, quatro anos de escolaridade. É preciso perceber que esta estatística tem efeitos diretos na própria escolaridade dos filhos.

O envelhecimento da classe docente é um problema?
Não serei eu a considerar o envelhecimento um problema!!! Mas enfim, se há problema será na escola como em outra qualquer profissão! Devia haver um maior equilíbrio de gerações na classe docente, até para promover uma espécie de passagem de testemunho entre colegas.

A paz social e a estabilidade nas escolas está ameaçada com o braço de ferro entre professores e Ministério da Educação, com reflexos no final do ano letivo e início do próximo. O ensino sai a perder?
Não me quero pronunciar sobre essa questão, mas apenas digo que percebo os dois lados.
As novas tecnologias e a aprendizagem é um tema que tem sido muito debatido. Como atingir o ponto de equilíbrio entre o que pode ser uma mais valia para aprender e uma distração para o estudo?
É uma questão candente e complexa. Assistimos a uma quase viciação dos jovens por estes aparelhos eletrónicos. Não sou nem a favor, nem contra a utilização das tecnologias na escola. É preciso saber o que se pretende em concreto e depois utilizar os meios mais adequados. Mas é lógico que a escola deve promover uma reflexão sobre o assunto tendo em vista preparar os jovens para lidar com essa diversidade de dispositivos.

O CNE tem alguma iniciativa em preparação sobre esta matéria?
Vamos ter um seminário em novembro sobre competências de literacia mediática que se devem desenvolver nos jovens tendo em conta as transformações tecnológicas em curso.


Foi diretora pedagógica do programa «Rua Sésamo», que se iniciou em 1987, uma referência para a geração que hoje tem 30 anos. Que memórias guarda desse projeto tão marcante?

DR.jpgImensas e ótimas. Tenho vários episódios engraçados, mas gostaria de partilhar um que me marcou. Um dia a equipa de investigação, que eu dirigia, foi até um jardim de infância de uma zona degradada da Grande Lisboa, porque soubemos que alguns miúdos não gostavam de determinada personagem. Eles estavam todos a brincar, mas quando tocou a música da «Rua Sésamo» foram de imediato para um quartinho minúsculo e ficaram de olhos postos na televisão. Os mais pequenos, sentados ao colo dos mais velhos, repetiam o que ouviam ou respondiam às perguntas feitas no programa ou tentavam antecipar o que iria acontecer a seguir e os crescidos corrigiam-nos e conversavam com eles. Foi uma aula fantástica. Era, de facto, uma série educativa, que promovia boas práticas e deixou muitas saudades. Cada personagem encarnava uma mensagem e existiu sempre a preocupação de contrariar os estereótipos e mostrar como as pessoas podiam ser diferentes.

 







 





 



Nuno Dias da Silva
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