Entrevista

Alexandre Quintanilha, deputado e cientista
«Portugal já atrai investigadores de fora»

AlexandreQ5.jpgDos laboratórios e das salas de aula saltou, inesperadamente, para os corredores do Parlamento. Alexandre Quintanilha é um cidadão do mundo que defende o conhecimento como a base da democracia. Esta é a conversa sobre a vida cheia de um homem que, à beira de completar 74 anos de idade, promete não ficar por aqui.

Como reagiu ao convite de António Costa para ser cabeça de lista pelo Porto, como candidato independente do Partido Socialista nas legislativas de 2015?
Isto aconteceu nos últimos dias de julho desse ano. As eleições realizavam-se nos primeiros dias de outubro. Eu dei a minha última aula numa sexta-feira à tarde e no dia seguinte, pela manhã, recebo um telefonema de uma pessoa próxima do então secretário-geral do PS a informar-me que o António Costa queria falar comigo. Achei curioso. E propus um encontro para essa mesma tarde, às 5 horas, em Serralves, no Porto, cidade onde vivo. Como sou obcecado pela pontualidade, cheguei um bocadinho antes da hora…

Não me diga que António Costa fê-lo esperar?
Lembro-me de ter esperado 10 ou 15 minutos depois da hora combinada. Já me vinha embora, e quando vou quase a sair pelo portão de Serralves, deparo-me com António Costa, que pediu muita desculpa pelo atraso. E devo dizer que ele foi direto ao assunto. Perguntou-me se eu aceitaria o desafio de ser cabeça de lista pelo Porto. E eu desatei a rir. Primeiro, não estava nada à espera e nem sabia muito bem o que era um cabeça de lista. Pedi-lhe que me explicasse melhor o convite, até porque, como referi, tinha acabado de dar a última aula e tinha mais tempo para ler e viajar com o meu marido, o Richard (Zimler). Eu só queria que ele me respondesse à pergunta: «Porquê eu?»

E que argumentos lhe deu o secretário-geral do PS?
Para começar disse-me que leu a notícia da minha última aula em que eu afirmara que ia ter mais disponibilidade de tempo e estaria pronto para os mais variados desafios. Para além disso, acrescentou que fazia sentido convidar uma pessoa da área da academia e com interesse no domínio das políticas públicas e de alcance social. Ele sabia muitíssimo bem que eu tinha sido o presidente da comissão que propôs a estratégia nacional contra a toxicodependência e que agora está ser imitada pelo mundo inteiro. No final, agradeci e disse-lhe que tinha de ir falar com o meu marido. Pedi uma semana para tomar uma decisão. Troquei impressões com diversas pessoas, algumas delas já tinham sido deputados, e ao fim de alguns dias de reflexão resolvi aceitar. Com uma condição: ficaria, certamente, dois anos, mas caso eu não me sentisse integrado, ele teria de perceber que eu me afastaria.

Foi eleito deputado e aquando da formação das comissões foi convidado para presidir à comissão de educação e ciência. Recorda-se dos seus primeiros passos no Parlamento?
Para mim, foi tudo novo. Não sabia muito bem o que me esperava. Não sei se é a palavra mais apropriada, mas sentia-me, de algum modo, «virgem». Desconhecia as regras e o funcionamento do Parlamento, mas senti um certo fascínio por estar no centro de uma instituição que permite o debate sobre políticas públicas. Olhei para esta experiência com curiosidade e entusiasmo. Quis muito depressa perceber como funcionava a casa e contribuir para ajudar na, ao mesmo tempo surpreendente e corajosa, «geringonça».

Alexandre-quintanilha2.jpgFoi fácil interiorizar o cerimonial político e até o próprio regimento da Assembleia da República?
Eu passei por algo semelhante quando iniciei a minha tese de doutoramento, em Joanesburgo, na África do Sul. Comecei a dar aulas, como assistente, a alunos de engenharia, de natureza prática e teórica. E o curioso é que eu tinha 24 ou 25 anos e os meus alunos, com 19/20 anos, chamavam-se «professor». E eu olhava para a sala, para ver onde é que estava o «professor» (risos). Quando me começaram a chamar presidente no Parlamento, eu tive quase a mesma reação. Mas deixe-me destacar que todos os deputados se esforçaram para me propiciar o acolhimento mais caloroso possível, fosse de que partido fosse. Aliás, um dos episódios que mais me sensibilizou foi no primeiro plenário em que participei: a primeira pessoa que se abeirou de mim e me deu um abraço muito caloroso foi Jerónimo de Sousa. Marcou-me. Depois o entrosamento foi fácil, até porque eu já conhecia alguns deputados de debates sobre a procriação medicamente assistida, sobre a toxicodependência, etc.

Na sua equação para decidir se aceitava o convite para ser cabeça de lista a deputado esteve a má imagem que, de uma forma, geral os portugueses têm dos políticos?
Confesso que não foi um assunto sobre o qual eu tivesse pensado. Existe a imagem negativa, mas eu também nutria uma enorme admiração por diversos personagens políticos. Nelson Mandela é um exemplo extraordinário. E isso fazia-me acreditar, e acredito, que na política é possível existirem pessoas muito importantes no desenvolvimento dos países. Mas também existiram personagens sinistras no século XX, por exemplo. Tivemos um senhor com bigodinho que achava que a raça ariana era a única que podia existir e, por isso, matou 50 milhões de pessoas. Depois havia outro, mais a leste, que tinha um bigode um pouco maior, que julgava que a ditadura do proletariado ia salvar o mundo e matou mais uns milhões de pessoas. Por último, havia um, com um livrinho vermelho, que andava pela China a impor o seu regime. Isto para dizer que a história está cheia de políticos de muito má reputação, mas também os há de muito prestígio e qualidade.  

Já pode fazer um balanço sobre a qualidade dos seus colegas na Assembleia da República?
Há gente muito competente e há gente muito incompetente, tal qual acontece na academia, onde as coisas não são muito diferentes.

Fiscalizar o governo, produzir legislação e fazer a ponte com a sociedade são as principais atribuições da comissão a que presidiu nesta legislatura. Em qual destes três vetores atingiu melhor os seus objetivos?
Relativamente ao primeiro ponto, a parte fiscalizadora, todos os anos há uma série de audições regimentais, tanto ao ministro da Educação e ao ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que são duras e se prolongam por três ou quatro horas. Estes governantes são submetidos a uma bateria de questões por parte dos grupos parlamentares o que os obriga a estarem devidamente preparados para este diálogo. Também chamamos os reitores das universidades, o CRUP, o CSISP, no fundo, as entidades que estão a dirigir instituições de educação, ciência e tecnologia. Para além disso, a interação com a sociedade é uma função igualmente intensa desta comissão. Nós recebemos todas as pessoas que pedem para ser ouvidas: as associações de pais, investigadores, serviços sociais e até pessoas, individualmente. E organizamos conferências e congressos sobre várias temáticas. Finalmente, a produção legislativa resulta do permanente diálogo entre o plenário e a comissão. No hemiciclo discute-se o objetivo principal das medidas legislativas e na comissão é dado espaço e tempo para o debate e reflexão sobre os detalhes dessas medidas. É na comissão que se desmembra e trabalha ao detalhe os projetos de lei ou as resoluções.

Ao contrário do que acontecia há uns anos, tudo que se passa no plenário e as comissões têm uma tremenda visibilidade publicamente, muito graças à comunicação social e ao próprio Canal Parlamento. Sente esse feed back?
Sei que sim, mas eu confesso que sou um mau espetador de televisão e muitas vezes nem vejo os meus próprios discursos. Mas congratulo-me que as pessoas percebam aquilo que se passa. Prova disso é a célebre fotografia que passou nas televisões e nos jornais em que quatro partidos tentavam alterar a lei relativa aos professores. Foi um momento que deu brado porque se percebeu que o PSD, o CDS-PP, o PCP e o BE, de repente, estavam unidos sobre uma matéria em que sempre discordaram. Eu a brincar cheguei a dizer ao António Costa que aquela fotografia lhe tinha dado, pelo menos, mais 10 por cento de votos nas eleições europeias.

Com que panorâmica é que ficou do setor da educação? O problema é mais de falta de recursos ou mais falta de estratégia de continuidade?
Eu não usava a palavra falta. Obviamente que não há área no mundo que entenda que tem os recursos humanos ou financeiros suficientes. Mas importa não esquecer que Portugal saiu de uma situação financeira muito grave, que se refletiu, nomeadamente nos recursos humanos alocados à educação, à ciência e à investigação privada. Nestes últimos quatro anos procurou encetar-se uma recuperação face à Europa. Mas de uma forma geral, entendo que, apesar dos constrangimentos, nunca se deixou de apostar na educação. Como sabe, a minha vida foi quase toda passada no estrangeiro e a forma como Portugal é olhado além-fronteiras é absolutamente extraordinária. Eu não lhe chamaria um paraíso, mas é certamente uma ilha calma e surpreendente. Sinto-me um privilegiado por ter podido participar nesta aventura de quatro anos de «geringonça».

Mas pensa que se podia ter ido mais longe, por exemplo, no esforço de reinvestimento?
Não creio. A insistência em manter as contas certas foi o passo certo. E prova disso é que a reputação que atingimos nestes quatro anos está patente na diminuição em 2 ou 3 mil milhões de euros/ano dos juros da dívida. A ciência gostaria de ter mais investimento e eu também, mas tal nunca poderia ter sido feito à custa do rigor das contas. Esta aposta de chegar aos 3 por cento do PIB em 2030 continua a ser um objetivo alcançável ou pelo menos que se fique muito próximo. Mas é preciso não esquecer, que muito foi feito nos últimos 30 anos: em todos os indicadores da ciência, Portugal já ultrapassou a média europeia. Aliás, sente-se na comunidade científica que as pessoas anseiam mais para competirem em igualdade de circunstâncias com outros países. Não temos de ter vergonha nenhuma. Temos investigadores e instituições muito prestigiadas e começamos a atrair investigadores estrangeiros para Portugal.

Também é dos que se junta ao coro do «somos todos Centeno»?
Eu tenho muito respeito pelo trabalho de Mário Centeno. Destruir é muito fácil, construir e reequilibrar é que é muito difícil. Ainda estamos neste processo de recuperação e vamos estar durante muitas décadas. Mas a forma inteligente e responsável como o ministro das Finanças tem gerido o processo faz-me estar confiante.

Que país era Portugal em 1990, quando regressou da Califórnia e se instalou no Porto?
É preciso contextualizar: eu abandonei o que era provavelmente o local mais avançado do Planeta - a baía de São Francisco. Eu dava aulas na universidade de Berkeley, que é considerada uma das três melhores faculdades norte-americanas, em determinadas áreas. Não é de admirar que foi um choque quando aterrei no Porto. Um choque a todos os níveis. Eu tive a sensação que chegara a um país muito atrasado. Mas curiosamente Portugal tinha entrado há poucos anos na União Europeia e existia uma enorme energia para acompanhar o ritmo europeu.

Os fundos europeus de Bruxelas davam uma ajuda…
Sim, mas ainda dão. Choca--me de uma forma terrível que os cidadãos se alheiem das questões europeias e das eleições para o Parlamento Europeu, porque sem os fundos europeus confesso que não sei bem onde é que este país estava.

Desculpe ter interrompido o raciocínio. Voltando aos anos 90...
Existia muita vontade de construir um país cada vez melhor, num quadro da democracia recentemente conquistada. Essa energia sentia-se no ar. Contudo, o período inicial, dois ou três anos, não fácil e eu e o Richard chegámos a pensar seriamente regressar à Califórnia. E tínhamos amigos e o incentivo do trabalho que nos chamavam do outro lado do Atlântico.

O tempo passou e quase 30 anos depois está de pedra e cal em Portugal. Como é que vê a questão da fuga de cérebros?
Vejo com naturalidade, mas se houver fuga e não houver entrada não é positivo. Eu quero pensar que nas áreas do conhecimento avançámos imenso nestes 30 anos e estamos claramente numa situação de recuperação, mais evidente nos últimos três anos. Não quero deixar de mencionar o nome de Mariano Gago porque ele dizia que não havia áreas prioritárias. Todas são importantes. Hoje quando se pensa nas alterações climáticas uma das consequências são as imensas migrações, que são problemas sociais. Muitos países privilegiam a inovação do ponto de vista tecnológico, mas esquecem-se que a inovação social é igualmente fundamental: seja com a abolição da escravatura, dar direito de voto às mulheres, permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, uma estratégia para a toxicodependência, etc. O conhecimento aplicado foi um das grandes apostas que diferenciou Portugal de muitos países do mundo e estou em crer que ainda terá consequências ainda mais positivas no futuro.

Defende o conhecimento como base da democracia. De que forma?
Nenhuma nova legislação deve ser criada se não for baseada no conhecimento mais robusto que existe naquele momento. Vou dar-lhe um exemplo: novamente as alterações climáticas. A grande maioria dos investigadores neste domínio prevê que a temperatura do Planeta vai aumentar e existem evidências nesse sentido. Toda a história do Planeta Terra mostra que tem havido áreas de glaciação severas, seguidas de áreas de maior aquecimento. Aquilo que nunca aconteceu é uma alteração tão rápida. E ninguém sabe prever, com 100 por cento de certeza, o que vai acontecer. A única coisa que sabemos é que os eventos extremos vão aumentar. Dou-lhe o caso da toxicodependência, que apresenta muitas semelhanças. Nós sabemos que a perseguição dos toxicodependentes como criminosos não funciona. Só nos Estados Unidos existem três milhões de cidadãos americanos presos. Temos de alterar esta forma de olhar para a toxicodependência. Olhar os problemas de uma forma diferente e ver se as soluções funcionam é fundamental.

Defende uma abordagem multidisciplinar dos problemas modernos?
Nós não sabemos tudo sobre um assunto. Hoje em dia os dilemas que enfrentamos são cada vez mais complexos e necessitam do diálogo entre as várias áreas do conhecimento. A Sociologia, a Medicina, a Engenharia, por aí fora. Lançar leis que não estejam baseadas naquilo que é o conhecimento mais aprofundado atual é uma estupidez. As leis devem ser baseadas no conhecimento e não em ideologias. Eu tenho muito receio das ideologias quando elas se tornam dominantes. As nossas decisões devem ser tomadas com base no conhecimento e na robustez e atualidade do conhecimento.

A política em termos globais está muito contaminada por ideologias?
Não sei se contaminada é o termo. Toda a política tem convicções fortes a suportá-la. Entre o neoliberalismo, o socialismo, o fascismo e o comunismo há perspetivas diferentes de olhar para o mundo. As pessoas que perfilham determinado espetro político são condicionadas por esse setor político. Eu não sou político e a minha experiência é muito recente, mas também na política - como na religião - as pessoas fortemente convictas, têm uma certa relutância em mudar essas convicções. Todo o seu mundo foi moldado por essas experiências, pela educação e as relações que tiveram. De uma coisa estou certo: acho triste se não basearmos as nossas ideias e a nossa forma de olhar para o mundo na evidências e nas experiências que vamos acumulando ao longo da vida. Aprendi muito em 73 anos de vida. Estive um terço da minha vida em África, 20 anos nos Estados Unidos e agora os últimos 30 anos em Portugal. São culturas diferentes e formas de olhar para o mundo distintas. É natural que gostemos mais de umas e menos de outras.

Vivemos na era da informação. Como se equilibra a obtenção de conhecimento com a informação que nos cerca por todos os lados?
Agora está na moda falar do «Big data». Parece um cliché, mas não é: dados não são informação. Informação não é conhecimento. Conhecimento não é sabedoria. Cada um destes passos necessita de trabalho. Explico: dos dados tem de se escolher os relevantes para ter informação que seja útil. A informação também deve ser selecionada e filtrada para o conhecimento ser útil. E o conhecimento encontra-se quase na fase final do processo. Até porque à sabedoria há muito pouca gente que lá chega. Em suma, este é um processo longo e o termo de comparação que faço com a democracia é que as decisões neste sistema às vezes são apressadas de mais porque o ciclo político é muito curto. Aliás, e a talhe de foice, os jornalistas não gostam nada que um cientista responda: «não sei».

Churchill disse que «a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros». Concorda?
A democracia é difícil. Aprendemos isso quando vivemos com outra pessoa: é preciso fazer compromissos e cedências, que nem sempre são fáceis de fazer. Mas também é preciso ser sincero e dizer que também aprendemos com os compromissos que estabelecemos. Nestes meus quatro anos de deputado se aprendi algo verdadeiramente importante foi o valor dos compromissos. Desenvolvi mais o meu respeito pela ideia dos compromissos que são necessários em política. Pode nem ser aquilo em que acredite, mas percebe-se que há outros olhares sobre os problemas e a ênfase colocada sobre outros aspetos. Admito que os compromissos podem ser frustrantes para quem acredita muito numa convicção e vê-se obrigado a ceder, mas também é verdade que se aprende muito com eles e crescemos como pessoas.

De que forma é que a revolução tecnológica e digital vai mudar o mercado de trabalho?
Tenho muito pouco jeito para futurologia. Hoje em dia a maior parte dos empregos já obriga a que as pessoas trabalhem com o digital, mas o digital é um instrumento.  Como antigamente as enciclopédias e mais recentemente as bibliotecas eram um meio para chegar a um fim. Hoje, felizmente, o acesso às bibliotecas digitais é muito mais rápido. Mas eu continuo com algum receio que percamos algo que sempre foi muito enriquecedor. Eu quando vou a uma biblioteca ou a uma livraria vou à procura de um livro e não raras vezes saio de lá com um livro completamente diferente do que procurava. Porquê? Porque ao lado estão outros livros, cuja existência eu desconhecia. E isto passa-se no campo das ciências, na literatura, nas artes, na arquitetura, etc. Ainda bem que o digital existe, é uma ferramenta poderosíssima, mas nunca será a mesma coisa. Acho até que pensar que o digital vai modificar o processo todo do desenvolvimento do conhecimento, que passa pelos dados, pela informação e pela sabedoria, é um bocadinho infantil. O processo de escolher informação para depois construirmos a nossa visão do mundo e de nós próprios, com o digital ou sem o digital, é o mesmo.

De que forma é que a educação vai sofrer alterações com este novo mundo?
O que se quer da escola ou da universidade não é apenas informação. O objetivo principal de toda a educação é conseguirmos desenvolver uma auto-confiança lúcida, a capacidade de não termos medo de nos atirarmos de cabeça num novo domínio, etc. Esta coisa de aos 69 anos ter aceite o desafio de entrar na política deveu-se ao facto de eu ter uma auto-confiança suficiente para achar que se calhar podia aprender qualquer coisa e contribuir para isso. Segundo um jornalista inglês, a função principal da educação é transformar espelhos em janelas. Eu acho esta frase lindíssima e muita rica. Porque os espelhos permitem que reafirmemos a nossa identidade, enquanto as janelas possibilitam ver mais longe e abrem novos horizontes.

Era um aluno que passava à tangente com nota 10 no liceu e tornou-se um investigador reconhecido a nível internacional. A paixão com que viveu e vive a sua área do conhecimento foi a receita para o sucesso?
Até ao 5.º ano do liceu estudava o suficiente para passar. E precisamente nesse 5.º ano houve um professor que chegou a Lourenço Marques (Moçambique), local onde nasci, e fez uma coisa fora da caixa. Ele levou-nos a realizar viagens de estudo a ecossistemas africanos. Fomos até à ilha da Inhaca onde havia mangais extraordinários e barreiras de corais fantásticas. De repente percebi melhor aquilo que estudava nas ciências naturais, que era as macieiras, as pereiras e as cerejeiras, que eu nunca tinha visto em África - porque não existem. Há um mundo novo que descobri. E este professor fez aquilo que Mariano Gago defendia: o ensino deve ser experimental. Ele obrigou os seus alunos a fazerem dezenas de experiências diferentes nos laboratórios do liceu Salazar em Lourenço Marques, nas áreas da Biologia, Geologia e Mineralogia. Abrir uma minhoca, um sapo ou um pombo, foram algumas das experiências feitas. Foi esse contacto com as coisas que me despertou para esta área.

Mas primeiro escolheu a Engenharia…
Quando acabei o 7.º ano a melhor nota que eu tive foi um 20 - que era nota que não se dava - a geometria descritiva. Acho que não houve um único 20 nesse ano no império português. E como gostava muito de Matemática, escolhi Engenharia. Também gostava muito de Desenho. Na minha turma de 2.º ano, em engenharia civil, em Joanesburgo, não me adaptei às rotinas sociais dos meus colegas e achei que era altura de mudar. Transferi-me para Física e Matemática, para uma turma com 12 alunos. E gostei imenso. Convém não esquecer que a segunda metade do século XX foi dominada pelas grandes descobertas na biologia molecular e no DNA. Quando cheguei ao fim do meu doutoramento conheci um homem extraordinário, também nascido na África de Sul, Sydney Brenner de seu nome. Disse-lhe que queria mudar para Biologia, mas estava com medo, ao que ele respondeu: «se quer fazer, faça».


Esteve nos Estados Unidos quase duas décadas. Como é que vê esta América, que também considera sua, governada por Donald Trump?
Deixe-me contextualizar. Na Califórnia conheci uma América distinta da real América. Vivi em Berkeley, que é uma ilha em todos os sentidos, durante 19 anos. Este ambiente tem muito pouco a ver com o resto da América. E é ainda mais diferenciado do que outras cidades, como Boston. Filadélfia, etc. É um ambiente muito liberal, muito de esquerda, avançado em relação ao seu tempo. E o tempo que lá estive, ou me encontrava na costa oeste ou leste. Conheci uma América urbana e culta. Não conheci a América rural. Eu tinha uma visão da América restrita. Para ter uma noção, eu quando cheguei a Berkeley, os meus alunos de doutoramento não queriam acreditar que eu nunca tinha dado uma passa! Isto para dizer que eu não conhecia a América profunda que é fortemente conservadora, fechada e muitos dos seus habitantes nunca tiveram passaporte. Para eles, o mundo começa no Alaska e acaba no Maine.

É essa América profunda que elegeu e vai reeleger Trump?
Creio que sim. Há três fatores que fazem dele uma personalidade respeitada e com crédito para determinada população. Ele diz coisas que uma grande de percentagem de pessoas - e não é só nos EUA -  concorda e não tem coragem para verbalizar. Há muitos racistas, misóginos, homofóbicos, mas não têm lata para o dizer. Mas as pessoas acham-no corajoso, porque ele diz! Outro aspeto que pesa a favor dele é que Trump veio de fora da política e nos negócios é supostamente bem sucedido. Ele já mostrou que o sonho americano é possível. Finalmente, a forma moderna como ele usa as novas técnicas digitais, nomeadamente através do Twitter, fá-lo liderar a discussão política, inflamando os ânimos e pondo os outros a discutir. Custa-me reconhecer isto, mas ele tem um mérito: acho que é o único líder mundial que está a enfrentar o poder chinês, que se encontra, literalmente, a comprar o resto do mundo. A China assusta--me e esse temor vai muito para lá da questão económica.

É um estudioso das questões ambientais e já aqui falámos disso. A nova presidente da Comissão Europeia (CE) apresentou um «Green Deal» para o clima, nomeadamente com o objetivo de cortar as emissões de carbono na UE até 2050. Trata-se apenas de uma declaração de intenções?
A senhora Ursula Von der Leyen percebeu que o movimento verde cresceu nas últimas eleições europeias e a tendência é de crescimento. Para além disso, há a noção clara que isto é uma área emergente e de inovação muito interessante. Podermos substituir o petróleo e o carvão por energias renováveis é um passo que Portugal já fez de uma forma bastante importante. Se olhar para a sua conta de eletricidade com alguma atenção, verá que há alturas do ano em que toda a energia consumida é totalmente renovável. Isto ajuda a diminuir as emissões carbónicas. Provavelmente ainda há carvão para consumir nos próximos cinco mil anos, petróleo talvez não tanto, mas acredito que esta presidente da CE percebeu que a sua utilização intensiva vai ter efeitos nefastos sobre o clima. Para além disso, os jovens estão a olhar para a questão ambiental com uma nova sensibilidade e também com apreensão. E os políticos começam a perceber isso.

Também sente os jovens portugueses mais despertos para estes e outros problemas?
Sem dúvida. Deixe-me fazer uma referência ao Parlamento Jovem, que é um dos eventos da Assembleia da República que eu mais acarinho. Mostra o que de melhor existe nos nossos jovens e em mil escolas (do ensino básico e secundário) que participam nesta iniciativa. Os estabelecimentos de ensino que «ganham» os debates escolhem os seus melhores representantes para discursarem no plenário da Assembleia da República. Alguns trazem assuntos muito políticos para a discussão, enquanto outros abordam temas, eu diria mais genuínos. Confesso que quando saio de lá parece que acabei de tomar um banho de água fresca.

CARA DA NOTÍCIA
Um cidadão do mundo

Alexandre Quintanilha nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, Moçambique, a 9 de agosto de 1945. É um físico português de renome internacional. Completou o doutoramento em Física em 1972, na Universidade Witwatersrand de Joanesburgo, mas mudou-se para Berkeley, Universidade da Califórnia e para a investigação sobre fisiologia celular. No Laboratório Nacional de Lawrence Berkeley dirigiu ainda o Centro de Estudos Ambientais. Em 1991 tornou-se professor da Universidade do Porto e fundou o Instituto de Biologia Molecular e Celular da mesma universidade. Presidiu a comités da Fundação Europeia para a Ciência, Comissão Europeia e OECD, bem como de várias organizações de investigação nacionais e internacionais. Nos últimos anos, Alexandre Quintanilha tem também trabalhado sobre perceção do risco e compreensão pública da ciência, por exemplo nas áreas do "melhoramento" cognitivo. É ainda presidente do conselho científico do Pavilhão do Conhecimento. Em 2018, recebeu o título de doutor «honoris causa» pela Universidade de Évora. Na atual legislatura foi deputado à Assembleia da República, tendo presidido à Comissão de Educação e Ciência. Integra, de novo, as listas do PS, como cabeça de lista, pelo círculo do Porto, nas legislativas marcadas para 6 de outubro.

Nuno Dias da Silva
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