Nicolau Santos, Jornalista
«Esta crise é perigosa e imprevisível»
O
director-adjunto do «Expresso» e apresentador do «Expresso da Meia
Noite» teme que o plano de austeridade deixe o país atolado numa
«espiral recessiva». Nicolau Santos prevê momentos conturbados do
ponto de vista social, com o aumento da fuga e evasão fiscais e
fenómenos de delinquência, banditismo e violência. «Nos
supermercados já se rouba para comer», afirma. Após 30 anos de
vivência nas redacções, admite que os jornalistas são hoje «menos
móveis», mas rejeita que se tenha perdido independência.
Escreveu um artigo que ficou célebre chamado «Eu
conheço um país…», em que fala sobre o que Portugal tem de bom em
termos de inovação e criação empresarial, posteriormente replicado
em sites, redes sociais e é hoje uma referência para muita gente.
Portugal é melhor do que o pintam?
Os portugueses olham para o
seu país sempre numa óptica negativa. Vêem apenas aquilo que lhes
falta e costumam desprezar o que conquistaram. Basta ver como era
Portugal em 1975 e como é em 2011. Num ranking de 194 países
estamos nos 30 primeiros em termos de indicadores sócio-económicos.
Progredimos imenso em determinados domínios, nomeadamente em termos
de saúde, natalidade e mortalidade. Muita gente certamente
não sabe que a Via Verde, os telemóveis pré-pagos e os multibancos
foram criações portuguesas. Hoje em dia acham normalíssimo poder
usar estas funcionalidades no dia a dia, mas ao fim ao cabo estas
invenções foram todas «made in Portugal».
Como surgiu a ideia de escrever o
artigo?
Em 2006 escrevi-o pela
primeira vez na revista «Exportar», mas nunca pensei que tivesse
tanta repercussão. Posteriomente, o artigo foi publicado em inglês
para ser inserido num jornal indiano. O impacto foi enorme e ainda
hoje é replicado por e-mail, colocados nas redes sociais, etc. Como
foi redigido numa altura em que nem nos piores pesadelos se
imaginaria a dimensão da crise, entretanto, actualizei-o para o meu
livro «Portugal vale a pena».
O jornalismo também tem «culpas no cartório» por
privilegiar uma abordagem dramática e negativa das
notícias?
Acho que não é justo meter
todo o jornalismo que se faz no mesmo saco. Admito que as
televisões generalistas exagerem um pouco, nomeadamente ao nível
dos noticiários. Os telejornais estão de há uns anos a esta parte
contaminados por duas tendências: o entretenimento (em que se usa e
abusa de promover as novelas dos canais em horário nobre) e os
casos de dramas sociais. Por norma, na TV sobrevaloriza-se o que
corre mal e veicula-se uma imagem pouco optimista do país.
Insiste-se em destacar a pessoa que morreu por negligência médica
no hospital ou o bebé que nasceu na ambulância, quando nesse mesmo
dia houve dezenas de pessoas que foram salvas da morte pelo pessoal
competente e empenhado que trabalha nos serviços de saúde. Se me
permite, quero destacar a SIC-Notícias, que é um caso à parte - e
não digo isto por ser lá colaborador. O jornalista Luís Ferreira
Lopes teve durante algum tempo um programa chamado «Sucesso.pt» em
que realçava o êxito empresarial de muitas empresas nacionais.
Estaria a ser injusto se não referisse também a imprensa
especializada em economia, que salienta com regularidade casos de
sucesso de pessoas e empresas. O que é incontornável é que a TV
chega cada vez a mais gente e tem um peso desmesurado na
sociedade.
Escreveu recentemente no «Expresso» um artigo muito
contundente em que falou que foi acometido «por uma força a
crescer-me nos dedos e uma raiva a nascer-me nos dentes»,
parafraseando o cantor Sérgio Godinho, ao saber de certas medidas
contidas no Orçamento do Estado para 2012. Quer
exemplificar?
Por exemplo a que revela um
Estado prepotente que altera, do dia para a noite, as condições de
reforma de muitos pensionistas, nomeadamente no que diz respeito
aos subsídios de Natal e férias, que toda a sua vida descontaram e
que têm, obviamente, direitos que não podem ser mudados a meio do
jogo.
Os portugueses já interiorizaram o que os
espera?
Acabo de escrever um artigo a
que dei o título, «Uma descida aos infernos». É precisamente isto
que eu considero. Temos, pelo menos, dois anos muito difíceis pela
frente. O Governo acredita que tomando as medidas duríssimas que
planeou ao fim do período de ajustamento a economia vai recuperar,
qual fénix renascida. Todavia, temo que a punção fiscal colocada
sobre famílias e empresas conduza ao fim de milhares de pequenas e
médias empresas.
O memorando de entendimento com a troika prescreve um
tratamento de choque excessivo?
Penso que devíamos negociar
com a troika mais tempo, provavelmente mais um ano, melhores
condições e mais dinheiro. Os 78 mil milhões de euros acordados não
vão chegar por causa da dívida tremenda das empresas
transportadoras ligadas ao setor empresarial do Estado. Avançar,
como fizeram o Primeiro-Ministro e o ministro da Economia, que 2013
será o início da recuperação, não me parece concretizável, a menos
que estejamos no domínio da fé. A Europa está em recessão e como
exportamos cerca de 80 por cento para países do «velho continente»,
as expectativas não podem ser as melhores. Entretanto, se os piores
cenários se concretizarem, ou seja a implosão da Zona Euro, então é
que nem vale a pena fazer contas.
Teme que o doente, leia-se o país, possa morrer da
cura?
Em conversas que mantive com
o Ministro das Finanças e o Governador do Banco de Portugal, eles
próprios me confidenciaram que temiam que Portugal entrasse numa
espiral recessiva. Veja o caso do Japão, que entrou em recessão e
depois demorou uma década a crescer. E depois como é que pagamos o
empréstimo de 78 mil milhões?
Que diferenças encontra entre esta crise e a de
83-85?
Devo lembrar que no início da
década de 80 foram extintas empresas sem viabilidade. De alguma
forma foi benéfico para «limpar» do tecido empresarial as empresas
menos capazes. Na situação actual corre-se o risco de até as
saudáveis poderem fechar portas. Cerca de 95 por cento do tecido
empresarial é constituído por PME e a maior parte não consegue
obter garantias bancárias para obras ou encomendas que desejem
efectuar. Os efeitos são, pois, devastadores. Acho que o drama é ao
concentrar-se toda a atenção em sanear as contas públicas,
esquece-se o lado económico, nomeadamente o apoio às PME. É o que
se diz em linguagem económica: «não se pode deitar fora o bebé com
a água do banho». Há outro aspecto que quero sublinhar: em 1983, os
mais desfavorecidos em termos sociais tinham terrenos e campos no
interior. Isso foi uma saída para muitos. Na altura o país ainda
tinha agricultura pujante e não era tão desertificado como é agora.
Hoje as pessoas vivem esmagadoramente nas cidades.
Admite que o governo
adoptou estas medidas de excepção de uma assentada por cálculo e
tacticismo eleitoral?
É normal. Os ciclos políticos
são de 4 anos e é natural que se enverede por uma dureza inicial,
para no ano antes das eleições poder distribuir "brindes" pela
rapaziada. No fundo, os políticos procuram fazer todo o mal nos
dois primeiros anos de mandato, como aliás preconiza o Maquiavel no
seu aclamado livro «O Príncipe».
O crescimento económico e a taxa de desemprego são
variáveis a monitorizar com atenção nos próximos meses e dos quais
depende a recuperação do país. Qual é a sua
visão?
Chegar nos próximos tempos
aos ansiados 3 por cento de crescimento é perfeitamente impensável.
Quanto à taxa de desemprego, será crucial não ultrapassarmos os 14
por cento - No dia em que estamos a falar o INE divulgou que já
vamos em 12,9% de desempregados. Não sei se será possível, muito
por causa do aumento do IVA na restauração que creio irá ditar o
fim de muitos negócios. Esta crise é muito perigosa, mais ainda do
que a dos anos 80, por ter contornos imprevisíveis. As situações de
fome, delinquência, banditismo e violência vão disparar. Os furtos
nos supermercados e nos hipermercados também vão aumentar. É sabido
que os perfumes e as lâminas de barbear sempre foram os clássicos
dos larápios das grandes superfícies, mas no outro dia um dirigente
de uma associação comercial disse-me que está a acentuar-se uma
tendência em que já se subtrai nas prateleiras, massas, arroz e
bolachas. Sinal de que já se rouba para comer.
As taxas proibitivas de IVA vão estimular a fuga e a
evasão fiscais?
Quanto à fraude e evasão
fiscais também não devemos ser optimistas. «Quer com ou sem
factura?», será uma das perguntas mais ouvidas. Se o interesse
mútuo entre quem vende e quem compra convergir, certamente que o
critério da racionalidade vai prevalecer. Pagar o preço do produto
e cerca de um quarto (23 por cento) do seu preço em IVA é um
convite à fuga. E, bem vistas as coisas, fugir até é capaz de
compensar.
A maioria dos jornais estão nas mãos de grupos
económicos. Escreve-se hoje com a mesma liberdade do que quando
começou?
Principalmente na década de
80, estava eu no "Diário Económico", existia pouca concentração
editorial e muitos projectos a nascer. Era muito fácil mudar de
emprego, em busca de um melhor salário. Na última década do século
passado, os grupos de comunicação social emergiram, passaram a
estar cotados em bolsa e a concentração começou a ser uma
realidade, na rádio, na televisão e nos jornais. O nascimento de um
sentimento de lealdade à entidade empregadora e a diminuição dos
títulos no mercado motivou que passasse a ser mais difícil mudar de
grupo. No entanto, não creio que isso tenha condicionado a
liberdade de imprensa. Os jornalistas são hoje menos móveis, mas
não creio que sejam menos independentes. As únicas transferências
meteóricas estão circunscritas à televisão.
Esse ambiente torna mais exíguas as saídas
profissionais das faculdades para as redacções?
Não havia cursos de
Jornalismo quando eu entrei na profissão. Eu próprio sou formado em
Economia. Estou em crer que a proliferação dos licenciados em
Ciências da Comunicação/Jornalismo empobreceu o exercício
profissional. A riqueza das redacções é fruto da diversidade das
vivências e formações dos seus componentes, sejam eles licenciados
em Medicina, Arquitectura, Direito, Economia, etc.
O «Expresso» teve durante décadas um director, José
António Saraiva, arquitecto de formação…
É verdade. Ele tinha um olhar
gráfico sobre a primeira página do jornal que um jornalista formado
em Comunicação Social não podia possuir. As ferramentas-base são
importantes, mas afunilaram muito o conhecimento, restringindo a
diversidade de pensamento.
Os mais jovens padecem dessa falta de
horizontes?
Os candidatos à profissão têm
talentos e lacunas. Há os bons, os regulares e um ou outro
excepcionais. Vivem dos sonhos e deslumbrados por quererem ser
"pivôt" de telejornal ou repórteres de guerra. Valem-se do bom
relacionamento com as novas tecnologias e de partilharem múltiplos
interesses, mas só isso não chega. Para além disso têm actualmente
a dificuldade adicional de a Comunicação Social não estar a
empregar.
Na sua opinião a que se deve esse deslumbramento pelo
pequeno ecrã?
Há um fascínio generalizado,
quase inexplicável, pela TV. A maior parte deles desconhece que o
trabalho que se faz na redacção de uma televisão é particularmente
duro. Mesmo estando lá a trabalhar, não aparecer no ecrã é não
existir. Se o Jornalismo já é uma profissão de muitos egos, imagine
o que é numa televisão, com um ambiente hipercompetitivo e
porventura o menos amigável de todas as redacções dos órgãos de
comunicação social.
Que percurso sugeriria a um jovem jornalista que está
a iniciar-se na profissão?
Da experiência que tenho,
acho que o melhor local para se começar é uma agência de notícias.
É um trabalho que exige disciplina, rapidez de execução e obriga a
produzir notícias com base no modelo da pirâmide invertida. É uma
correria para colocar na «linha» a notícia o mais rapidamente
possível, mas é um processo que dá tarimba. Os jornais diários e a
rádio também são bastante exigentes. Já um semanário, como o
«Expresso», não aconselho para a iniciação na profissão porque
considero o topo da carreira e obriga a uma análise mais madura e
ponderada. A televisão é completamente a evitar para um novato. É
de outro «campeonato».
Para concluir, uma questão meramente estética, mas
que é indissociável da sua pessoa, enquanto figura pública. O laço
é a sua imagem de marca. Quando é que começou a usá-lo e
porquê?
Vivi em África e lá ninguém
se preocupava com o formalismo da gravata. Quando vim para Portugal
nos meus primeiros anos de jornalismo mantive-me leal à logica de
andar descontraído. Quando cheguei a director do "Diário Economico"
comecei a ter necessidade de participar em diversas reuniões com os
accionistas franceses do jornal. O presidente dessa empresa trajava
sempre impecavelmente. Chamava-se Jean Jacques Servan-Schreiber.
Tive de me aprumar. Sempre detestei gravatas, apesar de saber fazer
o nó, mas preferia usar o laço nesses momentos mais formais, que
tinha e tem a vantagem de poder ser guardado no bolso do casaco sem
amachucar, ao contrário da gravata. Vinte anos depois, o laço é a
minha imagem de marca. Às vezes chego a ser apontado na rua como o
tipo da televisão que usa laço.
Nuno Dias da Silva
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