Crónica
Recreio Facebookiano
Estamos num pátio de muitos muros que, desta vez,
podemos saltar. Um lugar recheado de palcos, poleiros, cordas
bambas, trampolins, cartolas de ilusionistas, espelhos foscos ou
tragicamente distorcidos. É feira, é circo, é passarela, é ribalta,
é sala de janelas com cortinas a esvoaçar no vento que sopra do
norte, do sul ou do poente. É tudo o que se queira. Tal como o
recreio da nossa infância que recuperámos e onde navegamos com a
vantagem de não termos de ir à escola para receber o prémio de um
espaço que era a conquista da nossa liberdade. Ou o que pensávamos
tratar-se de liberdade, sem ainda termos a consciência de que,
mesmo então, não éramos livres. Era a ilusão de ser-se livre, de
quando em quando, a ajudar-nos a suportar os momentos em que nos
sentíamos amachucados, espezinhados, espartilhados.
Tocava a sineta ou soava a campainha
estridente que nos fazia erguer de um salto redentor. Chegava
finalmente a hora de sermos nós próprios ou de entrarmos no jogo do
faz-de-conta, no folguedo dos heróis. Saíamos para o pátio,
saltávamos, corríamos, andávamos de pé-coxinho de quadrado em
quadrado, exibindo a nossa perícia, sempre prontos para vencer,
sempre prontos para ganhar. Não importava que, no fim, não se
ganhasse nada. Tínhamos de ser os primeiros, os maiores, os
melhores! Esquecíamos os lanches, mas dificilmente ignorávamos os
olhares zombeteiros de alguns, os risinhos escarninhos de outros,
as palavras madrastas que, de súbito, rasgavam as nossas defesas e
expunham as fragilidades, inseguranças e incertezas mal
resguardadas.
Tínhamos de aproveitar o tempo sem
ainda percebermos a tirania desse carrasco sempre colado a nós. O
tempo não se media. Julgávamos que nos pertencia e, por isso,
podíamos ser jocosos e cruéis, quando a velhice passava por nós.
Exibíamos, com perversa satisfação, a juventude trajada de falsa
ingenuidade. Desdenhávamos, com ostensiva confiança, das marcas
ruins que o tempo imprimia nas feições e corpos dos controladores
dos nossos sonhos e vontades. Mas, não sucumbamos à enganosa ideia
de que éramos um grupo coeso, de que fazíamos parte de uma
irmandade, lá porque pertencíamos à mesma geração e nos
encontrávamos, todos os dias, nesse lugar de instrução e
desvario.
Tínhamos amigos e sofríamos a
amizade, de forma galante, ostensiva. Direi mesmo teatral. Uns,
muito poucos, eram seriamente, verdadeiramente amigos. Outros nem
tanto assim. E muitos nunca chegariam a receber a nossa aprovação.
Descartávamo-nos deles com desfaçatez, sem os rodeios ao abrigo das
regras sociais que desconhecíamos. Apenas sabíamos as regras dos
jogos que íamos inventando e que se alteravam ao sabor dos nossos
voláteis desejos.
Afinal, pouco mudou, neste recreio
Facebookiano, onde viemos parar e de onde dificilmente nos
afastamos. Contudo, não queremos admitir que assim é, adultos que
somos, vaidosos da nossa merecida e vangloriada superioridade.
Conhecemos as manhas do Tempo, cursámos a escola da Vida,
formámo-nos com distinção nas Artes do Disfarce. Entramos no
recreio virtual às ocultas, saltando de muro em muro, vasculhando,
partilhando, desacatando, elogiando, gostando ou desgostando e
somando amigos. Temos agora o doce proveito de não sairmos do
conforto das nossas casas, de não sermos vistos e de não vermos os
nossos parceiros nos jogos que jogamos, com primor: a cabra-cega,
as escondidas e muitos mais!