Editorial
O país do faz de conta
Faz de conta que somos um país. O
Ministro da Educação não dispensou (despediu?) cerca de 30 mil
professores (colaboradores?), num só mês. Que se tratava de gente
qualificada, experiente, e de dádiva diária. Faz de conta que tudo
isto não se passou no grupo socioprofissional europeu em que há
mais casais no exercício da mesma profissão. Faz de conta que
qualquer notícia de um despedimento de tal monta, em qualquer
empresa mundial, mesmo a ser aplicada apenas para próximos dois ou
três anos, não seria notícia de abertura de todos os telejornais do
mundo, dito, ocidental… Por aqui, faz de conta que foi considerada
uma mera medida de ajuste do sistema educativo. Faz de conta que
essa medida foi sustentada em qualquer relatório de uma qualquer
comissão de avaliação externa, independente e credível… Faz de
conta que a OCDE não disse, nesse mesmo dia, que o número de alunos
no básico e secundário tinham aumentado em Portugal em 70 mil. Faz
de conta que, no mesmo dia, o Ministro da Educação não disse que os
estudantes tinham diminuído em 200 mil.
Faz de conta que a EU não nos
obriga a aumentar para 40% o número de diplomados no ensino
superior, entre os 30 e os 34 anos, até 2020. Por isso mesmo, faz
de conta que não vivemos num país em que inúmeros pais dos nossos
alunos ainda têm menos habilitações académicas do que os seus
filhos. Faz de conta, ainda, que já não há alunos com avós
analfabetos. Faz de conta que não se reduziram as actividades, os
currículos e horas curriculares nas escolas, para provocar
fictícios excedentes de professores e de educadores. Faz de conta
que, actualmente, os professores não fazem um pouco de tudo, menos
o que deveriam (e sabem) fazer: isto é, ensinar, educar, orientar e
promover o desenvolvimento dos seus alunos.
Faz de conta que não há escolas
onde se morre de frio. Assim como não há escolas com novíssimo
aquecimento central e ar condicionado topo de gama, mas que ambos
estão desligados… por falta de verbas orçamentais para pagar as
contas à EDP/GALP. Faz de conta que não há estudantes com fome nas
aulas, e que o ensino já é tão gratuito que ainda querem que ainda
seja mais bem pago. Faz de conta que os professores podem (devem?)
ficar em casa, desocupados, num país onde ainda falta muita escola,
cultura, aprendizagem da cidadania e, sobretudo, apoio a alunos com
necessidades educativas especiais e a grupos socioculturais
altamente carenciados e diferenciados.
Faz de conta que o ministro não tem
os corredores do seu ministério apinhados de assessores de duvidosa
proveniência e que não é imune aos grupos de pressão, sobretudo os
que tentam repartir o bolo entre o público e o privado. Faz de
conta que os rankings das escolas traduzem a real e verdadeira
situação dessas organizações educativas, na sua globalidade. Faz de
conta que não temos uma das redes europeias mais pequenas de ensino
superior público e que os ditos mega agrupamentos não se baseiam em
medidas de caracter exclusivamente orçamental. Faz de conta que os
professores não têm que fazer centenas de horas extraordinárias não
remuneradas, e adicionalmente, tenham que pagar os transportes
públicos para se deslocarem, diariamente, para o seu local de
trabalho, ao contrário de outros grupos socioprofissionais do
Estado. Faz de conta que os docentes nunca souberam o que
significava a expressão mobilidade geográfica e profissional e que
Portugal não está a custear a formação dos seus jovens para que
outros países os acolham, já formados, e sem qualquer custo
adicional. Faz de conta que os melhores e mais capazes, regressam
logo que podem, em reconhecimento do esforço que a pátria por eles
fez. Faz de conta que não temos ministros e secretários de estado
que não fazem a mínima ideia do que é estudar e obter um diploma a
sério (com trabalho, sacrifício, suor e, quantas vezes, até
lágrimas…).
Faz de conta que o país não exige
demais, sobretudo às franjas sociais mais fragilizadas. Aliás,
sabe-se, que a primeira coisa que um governante faz quando tem um
familiar doente é correr para as urgências do hospital público mais
próximo, ou integrar a fila das 8 da manhã do centro de saúde do
seu local de residência. Faz de conta que os governantes se fazem
deslocar em veículos que estariam ao alcance do seu orçamento
familiar, se fossem comuns cidadãos. Faz de conta que os
professores e a educação não são considerados em todos os
relatórios internacionais como o melhor bem de cada país e
apontados como O recurso indispensável ao progresso dos povos. Faz
de conta que não somos um país nas mãos dos "Jotas", formados no
espírito corporativo da fidelidade cega ao chefe e da ascensão
fácil, quantas vezes por desmérito.
Por tudo isto, o nosso ministro vai
dando uma no crato, quando diz que os professores (ainda) são
necessários ao desenvolvimento, e outra na ferradura, quando quer
ostentar publicamente o preço por aluno, sem base em critério
universalmente aceite e estabelecido por entidade idónea.
Somos o país do vai andando, o país
do outro lado do espelho. Mas também somos o povo do faz de conta
onde, um dia, se acorda e se percebe que, afinal, já toda a gente
percebia o que todos nós também já tínhamos percebido, e que eles
teimavam em querer que a gente fingisse que ainda não percebera.
Perceberam?!