Joaquim Vieira, Jornalista
"O povo é melhor que as elites"
A dedicatória do seu mais recente livro,
«De Abril à Troika» é para «o povo português, paciente, tolerante e
estóico, na esperança de que não se deixe resignar». O povo é o
melhor deste país?
O povo é melhor do que
as elites. Foram estas que conduziram Portugal ao estado em que se
encontra. Não quero endeusar o povo como uma entidade
mítica e perfeita, mas é preciso reconhecer que o povo, muitas
vezes, foi mal liderado. Muitos dos que se candidataram a dirigir o
povo e conseguiram vencer eleições acabaram por defraudar as
expetativas, por terem preterido o interesse nacional e da
coletividade por interesses particulares, interesses ocultos, etc.
Por isso entendo que o povo tem o direito de exigir
responsabilidades aos que os governaram até
agora.
Quando fala de elites, refere-se às elites
políticas, económicas ou culturais?
São elites de toda a
espécie. Os casos BES e BPN ao nível das elites financeiras foi um
pesadelo. Ao nível das elites políticas constatamos os inúmeros
políticos envolvidos em casos dúbios e com fortes indícios. Os
«Vistos Gold» denunciam outras práticas repudiáveis ao nível dos
altos cargos dirigentes da função pública. Isto já para não falar
da promiscuidade entre interesses políticos e interesses
particulares no caso dos gabinetes de advogados que atuam na
elaboração de leis que terminam no Parlamento e eles,
melhor do que ninguém, sabem como contornar.
Julgavamos que o sistema saído da Constituição
de 1976, e na sequência das revisões sucessivas a que foi sujeita,
era o modelo perfeito e democrático, que nos conduziria rumo à
evolução e ao progresso mas, infelizmente, houve quem se tivesse
apropriado dele, pervertendo-o por completo. Esta é a principal
conclusão que eu tiro dos últimos 40 anos da história de
Portugal.
Para cada um dos 10 capítulos do livro define
um primado. Qual é para si o mais decisivo nos últimos 40
anos?
Tivemos o Bloco Central
que coincide com a integração, a que eu chamo primado da
integração. De facto, a entrada na União Europeia foi uma mudança
completa de agulha, depois de finalizado o ciclo colonial e do
império que durou mais de meio milénio. Por outro lado, o Bloco
Central inaugura aquilo que se chama o «bloco central de
interesses», em que os dois maiores partidos, PS e PSD, se vão
revezando no poder, conservando o monopólio do exercício da
atividade política. Penso que nesse momento nasceram vícios e erros
que se agravaram com o passar dos anos. Nomeadamente o
endividamento.
Mas também tivemos períodos de vacas
gordas…
É a fase dos fundos
europeus em que a Europa era vista como uma árvore das patacas. Há
que admitir que progredimos muito devido a isso, mas por outro lado
também de forma muito inconsciente, entrámos num período
completamente louco. Julgou-se que existia um tesouro inesgotável,
em que se podia sempre recorrer, para gastar e gastar. A crise
financeira de 2007/2008 despertou-nos para a dura realidade e para
os vícios estruturais na organização do país que
tínhamos. A crise e a austeridade que se seguiu e que pode
manter-se por uma geração é a pesada fatura que temos de
pagar.
O primado da austeridade, que é o último do seu
livro, está para durar?
Ninguém sabe quando
isto vai acabar. Em 2011 escrevi um livro chamado «Só um milagre
nos salva», em que entrevistei vários economistas sobre o futuro do
país. E o que se concluiu é que não há um projeto para
o país e ninguém sabe como sair do buraco onde caímos. Para sair
daqui é preciso uma conjuntura favorável, mas também saber qual é o
nosso papel e isso está longe de ser claro.
O que se perdeu de mais significativo dos
valores e das conquistas
pós-revolucionárias?
Ao nível da
educação, constata-se que algumas famílias não
têm condições económicas para proporcionar uma educação condigna
aos filhos, por residirem em locais isolados e fora dos grandes
centros, o que revela que a educação deixou de ser um
direito igual para todos. Na saúde ainda estamos na expectativa,
apesar de a perspetiva de privatização total não é boa, veremos o
que vai acontecer. Em suma, ao nível do bem estar retrocedemos,
claramente. Por outro lado, em termos dos direitos
fundamentais, liberdade de expressão , informação e
democracia não creio que tenhamos recuado. Pelo
contrário.
E a Justiça permanece sempre no
olho do furacão…
A justiça nunca
funcionou bem em Portugal e agora não está
melhor. As reformas mais recentes falharam,
nunca altura em que a justiça tinha necessariamente que
evoluir. Penso que o problema reside no facto de após
o 25 de abril nunca se ter dado verdadeira importância às reformas
no setor judicial.
Na conclusão do seu livro revela que o futuro
do país é um ponto de interrogação. «Nada está seguro, tudo se
encontra em aberto», escreve. Está assim tão
cético?
É uma incógnita.
Ninguém consegue fazer previsões a um ano ano, quanto mais num
horizonte de décadas. Nem os governantes, nem os pensadores.
Ninguém. Os países não abrem falência como os negócios, mas se
Portugal fosse um negócio porventura já teria falido. Certo é que
Portugal vai continuar, só não sabemos em que condições. O desafio
demográfico e o consequente envelhecimento da população são
questões decisivas que não podem ser adiadas.
As elites políticas estão sempre sob a sua
mira. Como diria Jean Jacques Rosseau do ser humano, acha que elas
são boas por natureza e a sociedade é que as
corrompe?
É uma questão moral e
de valores. Impera o egoísmo, só pensam nos seus
interesses, nos seus partidos, nos seus amigos. A escola também é
responsável por não cultivar os valores. Se a política numa
sociedade aberta e democrática não for praticada com altos padrões
morais é caminho aberto para tudo descambar e emergirem soluções
alternativas. Com a riqueza que produzimos, tínhamos todas as
condições para sermos um país estável, sem necessidade de pedir
ajuda financeira internacional.
Paulo Morais, que já aqui entrevistámos,
defende que com metade da corrupção que tem Portugal seria um país
próspero…
Acredito. Basta pensar
no dinheiro dos impostos que não é cobrado fruto da fraude e evasão
fiscais ou na sua colocação em paraísos fiscais.
Os recentes escândalos envolvendo políticos,
que culminou com a prisão preventiva de José Sócrates, voltaram a
relançar o argumento da crise do regime.
Subscreve?
A opinião pública olha
para o que se está a passar com uma descrença muito grande. José
Sócrates foi primeiro-ministro com maioria absoluta, o que
significa que teve o voto e a confiança de quase metade dos
eleitores. Imagine a quantidade de portugueses que confiaram
nele. É verdade que ele ainda não foi condenado, mas o
caso em si é um golpe terrível na auto-estima do país, ainda para
mais envolvendo um político que governou há tão pouco tempo.
Mas este é apenas um caso. Temos os «Vistos Gold», os casos
BES e BPN, que levam as pessoas a pensar que o regime ideal
democrático surgido em 1974 não terá acabado, mas precisa de levar
um valente abanão.
Caso contrário, o terreno está fértil para a
emergência dos populismos…
Os fenómenos
extremistas, sejam de esquerda ou de direita, alimentam-se destas
conjunturas. Este é um mal europeu. Em Espanha, temos o partido
«Podemos» que lidera as sondagens com vista às próximas
legislativas. Na Grécia, temos o Syriza, que também está em
primeiro lugar nas intenções de voto. Já para não falar da extrema
direita que ganhou as eleições em França. Isto é sintomático que o
eleitorado está a descrer das elites que os
governam.
Há uma definição clássica que diz que a
política é a arte do possível. Podemos falar com a profusão de
exemplos que saltam à vista que nos temos confrontado com uma burla
democrática?
Os políticos fecharam
os olhos a muitos problemas, durante anos demasiados, e
envolveram-se em muitas cumplicidades, beneficiando da falta de
escrutínio. Talvez seja pesado chamar-lhe burla, mas muitos
governantes ocuparam cargos executivos nem sempre com as melhores
intenções, em prejuízo da causa pública. O caminho certo passa por
uma maior transparência de comportamentos e uma maior integridade
das pessoas, sem esquecer, claro está, uma crescente exigência dos
eleitores para com os seus eleitos.
Conhece bem os políticos portugueses, tendo
publicado biografias de Mário Soares e Álvaro Cunhal. Quais são os
maiores políticos nacionais dos últimos 40
anos?
Mário Soares é,
porventura, o político mais importante, pelo seu papel na transição
para a democracia. Cavaco Silva também não pode ser
esquecido, mais pela sua década enquanto primeiro-ministro, do que
propriamente pelos seus dois mandatos em Belém. Os governos de
Cavaco foram de tal modo reformistas, que fizeram todos os
anteriores executivos pós-25 de abril parecerem governos de gestão.
Bem sei que aproveitou a conjuntura de feição, desde a adesão
europeia aos fundos estruturais, mas revelou um inegável ímpeto
reformista.
Em 40 anos de democracia, Cavaco esteve 20 anos
no poder, primeiro em São Bento, depois em Belém. É natural que lhe
sejam apontados os olhares mais
críticos?
Não acho. Ele é um
entre outros. A desgraça nacional é coletiva e as responsabilidades
têm de ser repartidas. Por tradição até são os governos de esquerda
a quererem gastar mais dinheiro. Os problemas começaram com
Guterres, mas estávamos na perfeita ignorância. Guterres não leva o
mandato até ao fim e foge do «pântano», sem dar uma explicação
cabal aos portugueses. Durão Barroso vem a seguir e diz que os
socialistas tinham deixado o país de tanga. Só aí é que caímos
em nós e percebemos onde estávamos metidos.
Depois Barroso desertou para Bruxelas. A seguir veio Santana
Lopes que pouco tempo lá esteve. Depois veio Sócrates, que tinha a
mania que era reformista e ajudou a conduzir o país para a
desgraça.
Em que gastaram os políticos o nosso
dinheiro?
No que deviam e no que
não deviam. O dinheiro vai para empresas amigas, para o
financiamento partidário, que é uma podridão, entre outros
expedientes pouco transparentes.
Como perspetiva a corrida eleitoral para as
presidenciais de janeiro de 2016?
A tendência habitual é
haver uma personalidade da esquerda e da direita. Como são eleições
uninominais, em que contam mais as pessoas do que os partidos,
prevê-se um sufrágio muito aberto. Pode aparecer um Marinho Pinto a
baralhar as contas. Guterres seria o melhor candidato à esquerda,
mas duvida-se que avance. À direita, Marcelo só pensa em ser
candidato, mas ainda não convenceu Passos Coelho que teima em
admitir que não tem um candidato tão forte quanto o comentador da
TVI.
Marcelo tem mais crédito como comentador ou
como político?
Acho que as pessoas
gostam de vê-lo no papel de comentador na TV, mas confiar nele para
um cargo público não creio que recolha tanta unanimidade. E Marcelo
também corre outro risco, que é as pessoas associarem-no ao
sistema, quando o sistema está em xeque. Provavelmente os
portugueses apostariam em alguém que estivesse à
margem do sistema. O facto de Guterres se ter
afastado da política portuguesa, e de desempenhar um cargo
internacional de elevado prestígio, dá-lhe um certo ar de frescura
que Marcelo não tem.
E Durão Barroso é uma carta fora do
baralho?
Barroso está muito
colado à troika e a troika trouxe austeridade. As pessoas
rejeitam-no. Ele percebe isso e diz que não quer nenhum cargo
político.
E à esquerda, a hipótese do independente
Sampaio da Nova?
Acho mais difícil, mas
também é verdade que um partido pode dar força a um candidato. Veja
o que aconteceu em 1976. Ramalho Eanes não era conhecido da opinião
pública, mas ao receber o apoio dos três partidos do arco
governativo fez com que ele ganhasse facilmente.
Voltando a José Sócrates. Depois de seis anos
no poder e agora em prisão preventiva, o ex-primeiro ministro é um
seu potencial biográfavel?
Acho que é.
Não é só pelo facto de as pessoas triunfarem que têm entrada
direta para a galeria dos biografáveis. Se se confirmar que ele tem
uma vida secreta que corresponde aquilo que ele está a ser
investigado, devo dizer-lhe que deve ser muito interessante fazer
um livro com a sua história.
Falemos agora de jornalismo e segredo de
justiça. O jornalista é um mero mensageiro de fugas de informação
promovidas por outros agentes ou tem culpas no cartório na violação
do segredo de justiça?
Os agentes de justiça é
que saem desacreditados. O jornalista faz o seu papel, que é
recolher a maior quantidade de informação possível. Se alguém de
dentro do sistema judicial lhe dá informação útil e relevante ele
não vai fechar os olhos. O jornalista, como tem os seus próprios
meios de investigação, pode ter alcançado determinado tipo de
informação através do seus próprios métodos, ou seja pelo seu
próprio pé, longe de qualquer acusação de violação do segredo de
justiça. Falo pela minha experiência. Eu publiquei informações de
processos judiciais que estavam ainda em segredo de justiça, mas às
quais cheguei através de uma investigação por minha conta e risco.
Admito que muitas vezes falei com agentes de justiça que me deram
informação fundamental e confesso que não lhes apontei uma pistola
à cabeça para eles revelarem o que quer que
fosse…
Fecham jornais, despedem-se profissionais, os
títulos concentram-se dentro de grupos económicos. O setor da
comunicação social na encruzilhada reflete-se no
produto?
O quadro é adverso. A
crise civilizacional fez com que a sociedade contemporânea mudasse
os paradigmas face à comunicação. A era Gutenberg, através da
palavra impressa, deu lugar à era da palavra dita, rádio e
televisão. O apogeu da informação digital,
nomeadamente a internet, mudou tudo. A presença dos meios é
permanente e a rapidez fundamental. Já ninguém espera pela manhã
seguinte pelos jornais para saber as novidades. A
interação do público nas redes sociais operou outra transformação
relevante. O cidadão que consome informação também ele participa no
espaço público virtual, que se converteu numa espécie de ágora dos
tempos modernos. Em suma, basicamente o que mudou? O
jornalista perdeu o monopólio da informação, informação que é
partilhada por milhões, em simultâneo. Isto fez a Comunicação
Social perder muito espaço. As audiências caem, especialmente a
rádio e a imprensa, e também as televisões generalistas. A quebra
das receitas publicitárias é mais outro ingrediente para termos uma
Comunicação Social desorientada e em crise.
A migração dos jornais para o digital ainda
está na fase embrionária?
O problema é que em
Portugal as pessoas habituaram-se a consumir informação à borla na
internet. Vai ser muito difícil contrariar esse hábito, que é
cultural, e está na cabeça das pessoas. Os jornais têm tido muita
dificuldade em reinventarem-se a si próprios. Ainda não está
definido o modo como a imprensa escrita deve responder ao advento
da internet.
O jornalismo de investigação está
a cair em desuso e contam-se pelos dedo de uma mão os jornalistas
portugueses que assim podem ser chamados. Tem saudades dos tempos
de «O Independente»?
«O Independente» era um
cocktail, tinha investigação, recados e instrumentalização
política. E foi um instrumento de ascensão política de Paulo Portas
que fez do jornal o seu trampolim, apesar de ter jurado que nunca
iria fazer política, proferindo declarações que estigmatizavam os
políticos…
Merkel diz que temos licenciados a mais, Passos
Coelho contrariou-a. Em que é que ficamos no jornalismo? Há cursos
de Comunicação Social a mais?
Não tenho presentemente
os dados atualizados, mas é uma evidência que o mercado não absorve
os potenciais jornalistas saídos das universidades. A maior parte
dos licenciados em Comunicação Social nem acabam no jornalismo,
preferem trabalhar em empresas em relações públicas, assessoria de
imprensa, comunicação institucional, etc.
As redações da atualidade, por serem mais
jovens ganham em energia e entrega o que perdem em memória. Tem
algum caso grave que tenha conhecimento?
Há dois anos morreu um
piloto aviador num acidente de aviação que se chamava Costa
Martins, um elemento muito importante durante o 25 de abril. O
jornal «Público», que é um jornal de referência, deu a notícia na
edição impressa mas sem uma única referência ao cargo da vítima na
revolução. Não havia ninguém na redação com memória para associar
este oficial da Força Aérea com o passado. Este é
apenas um exemplo gritante de que a memória é fundamental nas
redações e está a desaparecer. A pesquisa na internet ajuda, mas
não chega, e os jornalistas cometem o pecado de utilizarem a net de
forma acrítica.
Nuno Dias da Silva
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