Opinião

Crónica
Desabafo Docente

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David Munir, figura proeminente da comunidade islâmica em Portugal e que lidera há mais de três décadas a mesquita mais importante do país, afirma que «o terrorista não tem religião, não tem pátria e não tem amigos.»

Qual é a dimensão da comunidade islâmica em Portugal?

Ronda os 50 mil a nível nacional. A comunidade islâmica de Lisboa foi o nome dado quando a comunidade foi fundada, em 1968. No início os muçulmanos vinham das ex-colónias, mas atualmente já temos muçulmanos provenientes de outras partes, como o Magreb, a Índia, o Paquistão, o Bangladesh e alguns até do extremo oriente.

A integração e o acolhimento têm sido pacíficos?

Como ponto prévio, é preciso referir que não é possível comparar a comunidade islâmica portuguesa com as restantes comunidades islâmicas espalhadas pela Europa. Após o 25 de Abril, principalmente os muçulmanos que vieram de Moçambique e da Guiné, os chamados "retornados", foram recebidos como os portugueses que voltaram à pátria. Não se colocou qualquer ideologia ou rótulo a essas pessoas que deixaram tudo e voltaram com as suas famílias. E, com um forte instinto de sobrevivência, instalaram-se em Lisboa e nos arredores da capital, procurando emprego e fixando-se.

Portanto, quer dizer que o passado colonial não é um problema para a integração dessas comunidades?

Na Guiné e em Moçambique existia uma salutar convivência entre as várias culturas, coisa que não aconteceu nas colónias francesas, britânicas e outras. Vir para Portugal, ou para o continente, se quiser, era simplesmente mudar para uma outra cidade ou freguesia. Esta foi a primeira vaga da presença islâmica em Portugal continental. Por seu turno, os muçulmanos que vieram para cá provenientes de países que não são de expressão portuguesa, tiveram a sua integração facilitada por já cá existir uma comunidade islâmica. Perante isto, a questão da integração não se coloca na agenda da comunidade.


Concorda com o presidente da comunidade islâmica, Abdool Vakil, que diz que «não há islamofobia em Portugal»?

Perante o que descrevi anteriormente, as possibilidades disso acontecer são pouquíssimas. É preciso dizer que noutros países da Europa criaram-se guetos, enquanto em Portugal não temos. Quer dizer que onde o muçulmano encontrar a casa que julga ideal para viver, pode comprá-la, sem problemas. O factor proximidade com uma mesquita ou com uma comunidade islâmica já não é determinante.


É imã da mesquita central de Lisboa desde 1986. Quer explicar o que faz o imã de uma mesquita para além de presidir às orações?

Acaba por fazer um pouco de tudo. Dá apoio espiritual, apoio religioso, apoio psicológico, etc. Conversa com as pessoas que precisam de falar, simplesmente de desabafar e também recebo as visitas de estudo onde explico em mais detalhe o que é o Islão, faço casamentos, participo nas orações fúnebres, dou apoio às famílias que perderam os seus entes queridos, etc.

Ainda dou aulas dentro e fora da mesquita, faço palestras, acedo às solicitações da comunicação social. Faço muita coisa.


O que é que perguntam as pessoas que se deslocam em visitas de estudo à mesquita?

Temos visitas de estudo das escolas, duas ou três vezes por semana, em que tenho oportunidade de conversar com eles, mostro a sala de culto e depois dou um tempo para formularem as perguntas que quiserem. Ultimamente temos visitas mais tardias, organizadas por uma empresa via Facebook, onde recebemos pessoas de todas as idades, mentalidades, adultos, crianças, adolescentes, etc. Os alunos das escolas costumam perguntar sobre a onda de terrorismo e a sua propalada ligação ao Islão. É um tema praticamente incontornável, bem como a questão que anteriormente falamos sobre se a comunidade está ou não bem integrada. Nas visitas noturnas as perguntas são mais variadas, e podem ir dos direitos das mulheres, o papel da mulher na sociedade, o uso do véu, etc.

 

Sheik_3.jpgO Ramadão e o "Hajj" são dois momentos emblemáticos para o Islão e para os seus praticantes. Porquê?

São ocasiões em que as pessoas se dedicam mais aos outros e também a si próprios, na parte espiritual. O Ramadão é o jejum durante o dia, antes da primeira oração até ao pôr-do sol, momento em que se quebra o jejum. No dia em que falamos está a decorrer o "Hajj", que termina amanhã. É a peregrinação a Meca que todos os muçulmanos devem fazer, pelo menos uma vez na vida, desde que tenham possibilidades e sejam saudáveis.


O Islão nem sempre é bem conhecido, na sua essência, pelas pessoas. Se conhecessem os cinco pilares do Alcorão olhariam para esta religião de outra forma?

Estou em crer que sim. O primeiro pilar é a crença na unicidade de Deus, Ele é único, Ele é eterno, e podemos acrescentar a crença em Maomé, como mensageiro e profeta de Deus. O segundo pilar é o da oração, cada oração são 10 minutos, deve ser feita nas mesquitas, mas também em casa ou no local de trabalho. O corpo limpo, a roupa limpa e saber a direção de Meca são requisitos importantes. A oração é o diálogo com o criador. O terceiro pilar é o da caridade. É obrigatório ajudar as pessoas que mais precisam e necessitam. O Islão fixou uma percentagem de 2,5 por cento do balanço anual de cada pessoa para distribuir pelos mais necessitados. O quarto pilar é o jejum do Ramadão, que é o nono mês do calendário islâmico. Como o calendário islâmico é lunar, é móvel, por isso calha sempre em diferentes épocas do ano. Finalmente, o quinto pilar, é o "Hajj", a peregrinação a Meca, que ocorre no 12.º mês do calendário islâmico.


Qual o significado do "Hajj"?

São cerca de três milhões de pessoas numa mesma localidade e representa uma espécie de "lavagem" interior e também exterior da própria pessoa. Quem regressa do "Hajj" vem mais elevado do ponto de vista espiritual.


Quantas vezes fez esta peregrinação a Meca?

Em duas ocasiões. É uma experiência que não é possível de traduzir em palavras. Mas é muito positiva. Lá não se tem a real dimensão do número de pessoas que se juntam naquele local.


Participou entre 8 e 14 de julho num périplo pela paz por várias cidades da Europa, na companhia de diversos imãs. Qual foi a importância desta marcha?

Esta iniciativa, que passou por Bruxelas, Paris, Berlim e Nice - cidades alvo de atentados - visou esclarecer muitas pessoas que ainda confundem tudo e pensam que o Islão tem a ver com o terrorismo. O terrorista não tem religião, não tem pátria, não tem amigos. É um frustrado que só quer destruir.


Os recentes atentados de Barcelona trouxeram a lume a questão da radicalização de jovens, alguns deles menores, por parte de um imã de uma localidade catalã, com poucos milhares de habitantes. Como é que fica a relação de confiança entre a comunidade muçulmana e os restantes habitantes?

Normalmente um imã tem de ser uma pessoa que dialoga e quebra as barreiras com a sua congregação. É uma pessoa do povo, que convive com as pessoas da sua comunidade. Há mesquitas, provavelmente devido à sua pequena dimensão, que aceitam imãs como voluntários, e pode ter sido o caso dessa localidade catalã. Ser imã não significa que seja teólogo ou conhecedor do Islão, pode simplesmente dar apoio na hora da oração. Mas admito que é chocante para quem ao longo de anos se envolveu espiritualmente com este imã vir a saber que ele influenciou jovens a cometer atos que o próprio Islão condena. Como é possível um imã, que devia ser exemplar, fazer ou levar a fazer algo que o Islão repudia?


Admite que atos como este fazem aumentar a suspeição no seio das próprias comunidades muçulmanas na Europa?

Deixe-me voltar um pouco atrás no meu raciocínio. A marcha que fiz no mês de julho procurou demonstrar aos próprios muçulmanos que é possível fazer muito mais. Esta marcha permitiu-me constatar que boa parte dos muçulmanos, residentes nesses países do centro da Europa, não se identificam como europeus. Eles primeiro consideram-se magrebinos, marroquinos, argelinos, tunisinos, turcos, etc. Só depois é que são europeus. Como é possível se muitos deles nunca foram a esses países e nem sequer falam árabe?

Fiquei muito dececionado, porque a identidade nacional é importante. Ser europeu não significa ter a pele branca. Felizmente em Portugal essa crise de identidade não se coloca e a parte espiritual e religiosa é respeitada por se entender ser uma questão que pertence ao íntimo de cada um.


Que solução defende para resolver esse problema de identidade europeia?


Tem de haver mais diálogo interno entre as comunidades islâmicas da Europa do que propriamente diálogo interreligioso. Este é um desafio que os muçulmanos que residem na Europa têm, porque o problema, não haja dúvidas, está dentro da própria comunidade. De que me serve participar num encontro com outras religiões se a minha comunidade se mantiver em permanente sobressalto?

À pergunta se o Islão precisa de reformas, riposta dizendo que necessita é de educação e cultura. São antídotos contra os fanatismos?

A educação e o conhecimento têm um poder imenso, dependem é da forma como são transmitidos. Se olharmos para o passado, os muçulmanos sempre foram sedentos de conhecimento. Tinham sede, embebedaram-se e depois tornaram-se fontes. Hoje o mundo islâmico, de há uns 100 anos a esta parte, não tem sede, não tem conhecimento e, perante isto, não pode ser fonte. Indique-me um cientista ou um médico muçulmano que no mundo islâmico  tenha feito algo de destaque? Não há. Não sei se devido ao facto de muitos regimes políticos limitarem o campo de ação, mas parece que boa parte dos muçulmanos do mundo islâmico pararam no tempo e estão mais interessados no poder político e financeiro. Falta dialogar, discutir e abanar um pouco. O conhecimento, se existir, precisa de ser partilhado. E a quem? Aos jovens. É preciso chegar ao pé dos jovens muçulmanos que vivem no ocidente, apostar neles e fazer uma revolução. Se as coisas correrem bem, admito que muitos países islâmicos sejam levados a repensar os seus currículos.


A cobertura mediática devia ser mais moderada na abordagem que faz aos atentados terroristas praticados, alegadamente, em nome do Islão?

Ao transmitir e difundir exaustivamente estas notícias acaba-se por motivar ainda mais os responsáveis pelo atentado. Se fossem ignorados, isso seria uma frustração para os terroristas. Segundo me disseram, Israel é um país onde é prática comum não falar dos atentados que acontecem no seu território. Entendo que é uma boa política para minimizar o que aconteceu. Na Europa passa-se completamente o oposto e as imagens e os pormenores são transmitidos até à exaustão. Falar é importante, mas há coisas que em excesso incomodam.


Um terrorista muçulmano tem mais impacto para a comunicação social do que um terrorista ocidental?

Há uma discriminação negativa. Se um atentado for feito por um muçulmano é porque é fundamentalista e radical islâmico, se for um não muçulmano nunca vem o nome da religião que a pessoa professava, mas a descrição que é feita é a de um transtornado que sofria de problemas psiquiátricos. Basta ver o que aconteceu com o piloto da Germanwings que despenhou um avião cheio de passageiros contra os Alpes. Neste tipo de casos a comunicação social funciona como uma espécie de advogado de defesa que sabe que o seu cliente cometeu um crime, deliberadamente e conscientemente, mas para o libertar inventa novas técnicas para o juiz - que é a opinião pública - ser brando.

 

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Cara da Notícia

Xeque ou "sheik" é uma fórmula honorífica em língua árabe, com o significado de «líder» ou «governador». É assim como é conhecido David Munir, o imã da mesquita central de Lisboa, nascido na cidade da Beira, em Moçambique, em 1963. É filho de pai iemenita e mãe moçambicana de ascendência indiana. Começou os seus estudos religiosos em 1975 numa madraça na Índia (Madrassah Ashrafia). Licenciou-se em Teologia Islâmica no Instituto Aleemiyah, Centro islâmico de Carachi, Paquistão, e prosseguiu os seus estudos islâmicos na universidade de Carachi, onde se licenciou em Pedagogia e fez o Bacharelato no Curso de Letras. Em 1986, com 23 anos, deixou o Paquistão e é desde essa altura o imã da mesquita central de Lisboa, ministro de culto, docente de língua árabe e cultura islâmica e conselheiro religioso da Comunidade Islâmica de Lisboa. Foi professor de língua árabe no Instituto Oriental da Universidade Nova de Lisboa, na Universidade Independente e na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. É membro do Conselho Consultivo Internacional da Fundação Paz e Democracia Monsenhor Martinho da Costa Lopes. Tem como obras publicadas: "Deus que nunca o foi" (1987), "Ensinamentos Elementares do Islão" (1988) e "Da Ciência e Filosofia à Religião" (1996).

 
 
 
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