Entrevista

Hélio Loureiro, chef
«Cozinhar é uma manifestação de afeto e amor»

IMG2490.JPGHélio Loureiro é um dos chefs portugueses de referência. Uma entrevista onde se fala das Estrelas Michelin, da alimentação nas cantinas escolares, na convivência com os craques da seleção de futebol e como será a sua noite de Natal.

Os restaurantes portugueses já têm 26 estrelas Michelin. Pode-se dizer que a cozinha e os cozinheiros nacionais estão na moda?

A cozinha portuguesa conseguiu, finalmente, ter projeção internacional. As estrelas Michelin distinguem a qualidade dos nossos chefs. Estes galardões não distinguem propriamente a cozinha portuguesa mais tradicional, que continua a não ter um reconhecimento tão notório, mas permanece em crescendo. Por isso, creio que importa diferenciar a cozinha tradicional portuguesa, ou seja, aquilo que é a nossa cultura gastronómica e com raízes ancestrais, da chamada cozinha de autor, a que é distinguida pelas estrelas Michelin. Tem bases da cozinha portuguesa e fazem dela alta cozinha. É um pouco como a moda, em que temos o prêt-à-porter, os trajes tradicionais portugueses e, finalmente, a alta costura. Portugal está na moda e isso faz projetar as nossas tradições e a nossa cultura.

O forte impulso turístico dos últimos anos, especialmente em cidades como Lisboa e Porto, foi importante?

Está nos estudos já desenvolvidos que quando um turista nos visita aquilo que vem em primeiro lugar na lista de preferências são as pessoas e logo a seguir a gastronomia. E quando se fala em gastronomia, lembramo-nos logo dos nossos doces. Nada mais errado. Um estrangeiro não gosta dos nossos doces tradicionais. É muito raro um inglês ou um alemão apreciar um pudim abade de Priscos ou ovos moles, por exemplo. Por terem açúcar em excesso. Eles apreciam, verdadeiramente, é a frescura e o sabor dos nossos produtos, seja o peixe, a fruta, as verduras, etc. No fundo, a qualidade.

Como vê o fenómeno dos chefs internacionais convertidos em pop stars, por exemplo, o Jamie OIiver ou o Anthony Bourdain?

Finalmente, a gastronomia passou a ser reconhecida como cultura. Depois as pessoas deixaram de ter aquilo que era uma tradição familiar de passagem de receituário para ter alguém que aparece na televisão com receitas. E há um aspeto novo, que é a culinária e a gastronomia ligadas aos valores da saúde e do bem estar. A mediatização destes chefs deve-se também à projeção dos programas de TV em que eles participam e da vontade que as pessoas têm em voltar às origens e preservar o valor de estar em família ou com amigos, que foi desvalorizado durante muito tempo.

Apresentou um programa de TV durante vários anos. Qual o segredo para o sucesso?

Os programas de culinária na TV são entretenimento, mas transmitem conhecimento às pessoas. A cozinha passou a estar outra vez no centro da atividade doméstica. A crise levou a uma reflexão generalizada sobre o que queremos para as nossas vidas e o que queremos evidenciar, se a compra por impulso, o ir jantar ou almoçar fora para não ter trabalho, etc. Mas as refeições em casa para estarmos com os outros penso que têm sido recuperadas. Como diz um personagem do livro de Mia Couto, «O fio de missangas», «cozinhar não é um serviço, é uma forma diferente de amar os outros.» Não posso estar mais de acordo. Cozinhar é uma manifestação de afeto e de amor. Uma mãe ou um pai que se levanta cedo num domingo ou dia feriado para cozinhar para a família inteira está a demonstrar amor pelos seus. Eu próprio quando estou na cozinha de um restaurante, tento sempre colocar uma dose de afeto nas refeições que confeciono. É a diferença, por exemplo, de comer uma refeição rápida numa estação de serviço, em que não existe sensibilidade ou afeto. É servir, apenas.

Como vê esta tendência para uma alimentação mais saudável e a emergência de novas tendências como os vegan ou os vegetarianos?

Quanto mais informação há, mais vontade as pessoas têm de experimentar coisas novas. Por exemplo, o vegan é uma forma de cozinhar e um modo de estar no mundo. Hoje também surgem muitas modas, como as dietas do paleolítico ou ligadas à proteína, em detrimento dos hidratos de carbono, etc. As tendências têm muito que ver com a nossa filosofia perante o mundo e os valores que partilhamos.

As notícias que a comunicação social veicula, por exemplo, os efeitos cancerígenos dos alimentos processados, são responsáveis por estas novas tendências?

Pode parecer duro ouvir, mas da forma como a nossa civilização se organiza, se de repente a indústria agro-alimentar deixasse de ter esses tipos de produtos nós passávamos fome. É impossível pensarmos que no mundo ideal seriamos alimentados de forma tradicional ou biológica. O que é necessário é valorizar, cada vez mais, o valor da terra e tentarmos ser o menos invasivos possível. Como? Reduzindo o consumo da proteína animal - só precisamos de 50 gramas por dia - e diminuindo a quantidade de alimentos que ingerimos por dia. É preciso parar para pensar e reconhecer que ao ingerir os alimentos processados estamos a prejudicar o nosso organismo e o planeta Terra. Mas também há fenómenos de intolerância alimentar simplesmente porque sim. Simplesmente por serem modas. Veja o caso da rejeição à lactose, que já se tornou um mito, baseando-se em teorias sem prova científica. As pessoas devem evitar produtos com lactose só se forem intolerantes.

A questão da biodiversidade e da preservação ecológica é cada vez mais relevante?

Deve ser. Mas há um longo caminho a percorrer. Veja que atualmente comemos peixes que viajam mais do que nós, o que é completamente errado. Quando devíamos era comer produtos locais, com uma alimentação baseada no que está ao nosso redor, no fundo, para diminuir a pegada ecológica.

Há um fenómeno interessante, pelo menos em Lisboa, com as hortas e as hortinhas a despontarem…

A alimentação deve basear-se na biodiversidade e na sazonalidade, que temos vindo a esquecer. Comemos uvas e laranjas no verão, melão no inverno. Ou seja, andamos desfasados em relação à natureza, o que do ponto de vista nutricional não é correto. Sobre as hortas e as hortinhas, sobretudo nas cidades, temos de ter em consideração os metais pesados que existem nessas hortas urbanas. Uma horta junto à Segunda Circular pode ser um perigo para a saúde, porque os solos e a estrutura ambiental estão contaminados.

NunoMarkl.JPGCozinha é trabalho, arte ou imaginação?

A inspiração, seja para o que for, vem sempre do trabalho. A inspiração é tempo, observação e trabalho. É disto que nasce a criatividade e faz que a partir de uma batata a transformemos num puré e a seguir juntamos trufas. É aqui que reside a base do que é hoje a cozinha de autor.

Sei que começou a ganhar o gosto pela cozinha com 6 ou 7 anos. Que recordações tem desse período?

Venho de uma família do Porto em que a cozinha sempre esteve muito presente e o convívio à mesa sempre foi fundamental. A minha mãe era enfermeira e fazia turnos. Tínhamos uma empregada que adiantava o jantar, mas muitas vezes o meu pai também fazia e comecei a achar graça ajudar nesta atividade doméstica. Assim nasce o meu gosto pela cozinha. Em 1976 surge a revista «Tele Culinária», do chef Silva, com quem mantive uma relação muito estreita. O meu pai comprava a revista e eu passava os dias seguintes a experimentar as receitas que lá vinham. Foi a minha primeira escola e que me motivou e ajudou a seguir esta carreira. Terminei o liceu, entrei para a escola de hotelaria e segui o meu rumo, até hoje.

Posso perguntar ao chef qual é o seu prato favorito?

Eu tanto gosto de sardinhas como de ca viar. Mas depende do momento, é como a música, há dias em que apetece ouvir jazz e outros em que apetece ouvir música clássica.  Uma coisa que não gosto muito são nabos. Não me sabem bem, mas se me puserem à frente eu como, por uma questão de educação. Mas em termos de pratos tradicionais posso confessar que sou um apaixonado por cozido à portuguesa, adoro tripas à moda do Porto, mas também gosto de uma francesinha, gosto de bacalhau. Uma vez perguntaram se eu morresse amanhã qual seria a minha última ceia: teriam de ser vários pratos, porque um não me iria satisfizer, mas a companhia, que não pode ser dissociada da comida, também seria muito importante. Como é sabido a dieta mediterrânica valoriza o convívio e o prazer de estar à mesa. Ninguém se lembra de uma refeição comida sozinha.

Como vê o futuro desta nova geração de chefs de cozinha? Têm beneficiado de uma boa formação?

É muito importante que haja formação, e ela existe, como formação de base. O que eu defendo é que as escolas de hotelaria têm que se abrir mais às pessoas externas à sua existência. Um pouco como acontece nos Estados Unidos ou na Alemanha, em que os chefs de cozinha, reconhecidos e conhecidos fora dos seus ambientes, são chamados às escolas para masterclasses ou aulas especiais de formação. Não podemos ter nas escolas pessoas que nunca tiveram outra atividade que não fosse na hotelaria. Um chef que ganhe 5 ou 6 mil euros não vai para uma escola hoteleira lecionar para ganhar 1 ou 2 mil euros. É, por isso, normal que na carreira do ensino não estejam os melhores. Seria preciso inverter esta situação e não apenas no turismo. As universidades deviam ir buscar ao exterior mais pessoas com conhecimento prático.

A qualidade da alimentação das cantinas nas escolas é a mais indicada para jovens e crianças?

Acompanho muito a alimentação escolar e hospitalar, porque sou consultor de uma empresa que fornece 700 mil refeições por dia, nomeadamente para esses estabelecimentos. O primeiro aspeto a considerar é o preço. É impossível qualquer empresa fornecer uma refeição por 90 cêntimos. Alguma coisa tem que falhar. É muito pouco o que o Estado dá para a alimentação escolar e este é logo um fator inibidor da variedade e da qualidade alimentar. Por muito boa vontade, é impossível servir numa cantina pescada fresca. O preço não o permite.

Mas a segurança alimentar está garantida?

Completamente. A segurança alimentar e a forma como a comida é cozinhada estão asseguradas. A diversidade também existe, porque normalmente todas as cantinas têm cinco semanas de comida diferente. O que é impossível é pretender que comamos nas cantinas como comemos em casa. A alimentação escolar nunca vai ser a continuidade da sala de jantar de casa. Primeiro pelo preço, depois pelas quantidades. Agora posso garantir que a alimentação escolar nutricionalmente está correta, ou seja, a ementa completa está equilibrada, e a higiene e segurança alimentares estão garantidas. A questão de fundo tem a ver com o ambiente e o espaço em que se consome a comida. É muito diferente comer um caldo verde num ambiente hoteleiro, decorado a preceito, do que comer um caldo verde ou um bacalhau em ambiente de cantina, com luzes brancas, sem janelas, muito barulho. Nada daquilo nos vai saber bem.

Como foram os 20 anos que esteve na Federação Portuguesa de Futebol (FPF), a conviver em estágios com sucessivas gerações de craques?

Eu comecei no FC Porto e foi nesse clube que se começou a olhar para a alimentação dos atletas de alta competição de uma forma mais sustentada e a adaptar as suas refeições ao seu calendário desportivo. Na seleção desenvolvi um trabalho de três anos de pesquisa antes do mundial da Coreia/Japão, de 2002, para comparar a alimentação de várias seleções de futebol na Europa e de basquetebol nos Estados Unidos. É evidente que os hidratos de carbono são essenciais, as carnes brancas e os peixes são de fácil digestão, mas não podemos esquecer a nossa tradição culinária. Não é possível alimentar o corpo, sem alimentar o espírito. Houve sempre um grande cuidado na seleção e no FC Porto de manter o equilíbrio entre uma refeição saudável, que salvaguardasse o conforto de casa. É importante assegurar que os atletas «comam» memórias. Comer um caldo verde na Rússia ou no Japão projeta-nos para uma infância, para o ambiente de casa, para as origens. Por isso, nos produtos que levávamos para jogos fora de Portugal e para os estágios havia sempre uma preocupação de levar os chamados produtos da saudade: o bacalhau, os enchidos, os queijos, etc.

Os craques da seleção são bons de boca?

São. Nunca encontrei nenhum jogador que fosse complicado. Nem mesmo as estrelas. O Luís Figo, o Fernando Couto, o Rui Costa, o Cristiano Ronaldo, são pessoas simples e educadas que fazem parte desta geração que sabe como ninguém a importância de uma alimentação saudável para um bom desempenho. Quem quer chegar ao topo tem de fazer sacrifícios a todos os níveis, a começar pela alimentação. O Cristiano Ronaldo gosta de comer e o prato favorito dele é bacalhau à brás, feito pela mãe, claro.

É um monárquico por convicção. Portugal seria um país melhor se fosse governado por um Rei?

A OCDE diz que sete dos 12 países mais desenvolvidos do mundo são monarquias. Os países mais progressistas e democratas do mundo são monarquias. Isso é um facto evidente. Portugal, na sua base, é um país monárquico. Veja a repercussão da recente viagem dos reis de Espanha a Portugal ou da visita da Rainha Isabel II de Inglaterra há uns anos atrás. Algo incomparável mesmo com a visita de um presidente dos Estados Unidos. Isto relaciona-se com a nossa tradição, a nossa cultura e as nossas memórias. O Rei representa a estabilidade democrática e a estabilidade institucional da tradição e da moral, por isso, está sempre acima de qualquer interesse económico e político. Não tem que ser partidário. Tem é de ser agregador. Os fenómenos extremistas que se multiplicam pelo mundo devem-se à falta de liderança e à existência de dirigentes separadores, em vez de serem agregadores. Veja o que se passou nos EUA com a vitória de Trump, que está longe de ser agregador, tendo dividido o país em dois. Em Portugal, na liderança de Cavaco Silva existiam dois blocos bem definidos, uns pró e outros anti Presidente.

Marcelo Rebelo de Sousa não está a fazer o papel de Rei informal?

Marcelo tem a vantagem de vir de uma família ligada ao Estado e foi educado a lidar com o povo e a ser conciliador. Não há escolas para presidentes da República, mas educa-se a ser Rei.

Que papel está reservado ao Duque de Bragança?

Os portugueses conhecem-no mal. Muito por culpa de uma comunicação social e de um status quo que é deliberadamente a favor da República e que silencia tudo o que está ligado à monarquia,  exceto quando pretendem colar o Senhor D. Duarte às páginas das revistas cor de rosa, quando um monarca não é para essas publicações. Nestes 106 anos de regime houve praticamente um apagão do que é a monarquia. As pessoas desconhecem, pelos fatores que atrás mencionei, a preparação do Senhor D. Duarte para o cargo de Rei. Ele consegue falar de vários temas com sabedoria, bom senso e em tom conciliador. Por exemplo, conheço poucos portugueses que saibam tanto sobre a Lusofonia. Como Rei dos portugueses que ele é devia ser uma figura de Estado como se fosse um embaixador de Portugal pelo mundo. As pessoas esquecem-se do trabalho feito anos a fio, contra tudo e contra todos, pelo Senhor D. Duarte em prol da causa timorense.

Nuno Dias da Silva
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