Entrevista

Richard Zimler, escritor
Os neoliberais não compreendem a diferença entre educação e treino

3.JPGÉ um americano em Portugal com opiniões contundentes sobre o sistema educativo e a literatura que se faz na atualidade, sem nunca perder de vista o novo inquilino da Casa Branca.

  Votou em Hillary Clinton nas eleições americanas. Ficou surpreendido com a vitória de Donald Trump?

Fiquei, mas não tão surpreendido como muitos jornalistas e comentadores. Tinha um pressentimento de desastre há uns meses atrás, porque a campanha eleitoral não estava a correr bem para a candidata democrata. As críticas sobre a frieza e a rigidez dela, demasiado ligada ao sistema, a Wall Street e aos lóbis, faziam temer o pior e acabou por confirmar-se. Fiquei chocado, desorientado e triste. A visão da América proposta por Trump não se enquadra na visão de um país de compaixão, de solidariedade, de emigração e multicultural. Trump é um demagogo com um discurso primário em relação aos outros povos e etnias. Isso mete muito medo.

O que esteve na origem da vitória republicana?

A classe média americana tem sido muito penalizada pelo sistema económico-financeiro nos últimos 50 anos, especialmente ao nível do poder de compra. O fosso entre ricos e pobres aumentou nas últimas décadas, desde a presidência de Reagan. Há 45 milhões de americanos que estão a viver abaixo do limiar da pobreza. Isso explica como é que eles se sentem minados pelo sistema económico e financeiro. Eles não têm confiança alguma nos partidos democrático e republicano.

Hillary é vista quase como o inimigo e representa uma força que se esquece deles, exceto nas campanhas eleitorais. Os republicanos são piores, mas Trump passou a mensagem, através de uma forma muito primária, que era o candidato alternativo. O que não é verdade, visto que ele é multimilionário, herdou uma fortuna e está completamente dentro do sistema.

«Fazer da América grande outra vez» foi o slogan de Trump. O que transmite esta mensagem?

Ele procurou recuar no tempo até à campanha de Reagan nos anos 70. Antes disso a América viveu um momento de introspeção e de culpa após a guerra do Vietname. Reagan passou uma mensagem de tornar a América grande outra vez e agora Trump recuperou-a. Os americanos caem sempre na conversa que a América é o melhor país do mundo.

O discurso de vitória moderado e apaziguador pode indiciar que há um Trump candidato e um Trump presidente?

Não sabemos. Importa saber quem é o verdadeiro Donald Trump. Acho que nem ele sabe, porque ele vive do espetáculo e usa uma máscara em público. Tenho a certeza que ele é um homem primário e ignorante que só está interessado na fama e no dinheiro. Em Nova Iorque ficou conhecido por construir prédios gigantescos e nacionalmente saltou do anonimato por participar num reality show. Ele vai ter de aprender uma linguagem mais diplomática, mais sensata e mais calma. Mas como exerce um cargo poderoso, pelo menos internamente, vai poder fazer muitas mudanças, a começar pela escolha de um juiz para o Tribunal Supremo norte-americano, um órgão de soberania que tem uma influência sobre a vida quotidiana dos americanos que os europeus não compreendem. Será alguém super conservador, religioso e fundamentalista. Ou seja, todo o rumo do país pode mudar em termos judiciais porque o Supremo analisa a constitucionalidade de todas as leis estaduais. Leis sobre o aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, uso da marijuana para fins médicos, etc.

Está apreensivo com o ideário de Trump?

Bastante. Uma das propostas mais preocupantes passa por baixar o nível ; máximo de impostos pago pelas grandes empresas, que neste momento é de 35 por cento. Se Trump baixar até 15 por cento, onde é que ele vai compensar essa perda de receita para o Orçamento do Estado? Só pode ir à classe média e cortar programas sociais, educação, saúde e cultura, porque o gigantesco orçamento de defesa é intocável nos Estados Unidos. Para além disso as previsíveis decisões nos acordos mundiais sobre o clima é outro aspeto preocupante.

E acredita que o muro vai mesmo para a frente?

Trump tem uma mentalidade de tirano e prova-o quando diz que vai construir o muro e os mexicanos é que vão pagar. Mas não acredito que isso vá acontecer, o que pode ser um problema para os eleitores da Califórnia, Novo México, Texas e Arizona que votaram Trump por receio à emigração. Vão chamá-lo de traidor e Trump não terá argumentos, porque o Senado e a Casa dos Representantes são controlados pelo mesmo partido.

Atribui este desfecho às falhas no sistema de educação. Que América é esta que elege Obama em 2008 e depois elege Trump, em 2016?

14.JPGA educação é a chave para tudo e para evitar que no futuro se volte a eleger outro demagogo. A única solução é educar, educar e educar. Senão veja: é fascinante estabelecer uma ligação entre o nível de educação dos votantes e a sua escolha para presidente. O Massachusetts é o estado mais «educado», ou seja, 38 por cento dos habitantes daquele estado completaram uma licenciatura. É um nível bastante alto para a realidade americana. Hillary Clinton ganhou folgadamente este estado. Pelo contrário, Missisipi, Alabama e Arkansas são estados com menos educação, em que cerca de 19 por cento têm um grau de educação superior. E estes são os estados em que Trump ganhou.

E porque é que existe esta assimetria entre estados?

Tem a ver com a história americana e com os próprios estados. Porque em grande parte deles, os estados e os municípios podem determinar o orçamento para as escolas públicas. Estas escolas, localizadas em zonas urbanas pobres ou zonas rurais pobres, não têm comparação com uma escola pública numa zona abastada, com gente rica, classe média alta, com professores de qualidade, ginásios, courts de ténis, campos de basquetebol, programas extracurriculares, clube de francês, etc. E isto faz toda a diferença na hora de decidir e de votar. Nos Estados Unidos, os municípios podem determinar os curricula da própria escola. Ou seja, no Kansas, no Nebraska, o município que recusa falar de evolução na escola vai dar criacionismo também. Uma escola que não quer que os livros de Mark Twain, Philipe Roth ou Richard Zimler, sejam utilizados nas aulas de inglês vai limitar o acesso a estes autores. Isto é um drama nos Estados Unidos. Muitos caloiros destes estados mais atrasados chegam às universidades sem qualquer preparação, sobretudo na ciência, e muitos deles nunca ouviram falar da teoria da evolução.

Trump disse no Nevada: «amo as pessoas com um nível de educação baixo». Este é o público alvo do presidente eleito?

Os europeus não compreendem o seguinte: a palavra intelectual nos EUA tem uma conotação negativa. Noam Chomsky, por exemplo, como é intelectual acham que vive na sua torre de marfim e que não tem qualquer ligação à realidade das pessoas. E há outro fenómeno típico dos EUA: as pessoas orgulham-se de ser ignorantes, especialmente as que vivem nas zonas rurais.  O produto cultural americano da atualidade  é dirigido, quase totalmente, aos adolescentes e aos adultos que pensam como adolescentes. Por isso, as comédias idiotas ou os filmes de ação com efeitos especiais são os que alcançam maiores audiências. E nos livros passa-se o mesmo. Não critico o Harry Potter, até porque nunca li, mas são livros destinados a adolescentes. O fenómeno de os adultos lerem esses livros é sintomático da sua falta de maturidade. Querem continuar a ser adolescentes. E o discurso de Trump foi construído para obter o voto daquela gente. Ele fala como se fosse o Capitão América.

Critica as práticas neoliberalistas no domínio da educação por insistirem no treino em vez da educação. Quer detalhar esta sua perspetiva?

Desde os gregos havia a tradição de formar as pessoas para que estas participassem como cidadãos ativos na nossa sociedade e na vida pública. Os neoliberais chegam e quererem destruir dois mil anos de história europeia e da herança da civilização grega, defendendo que a educação ;

apenas treina para a repetição de determinadas competências. Os neoliberais, incluindo os políticos do PSD, não compreendem a diferença entre educação e treino. Treinar é educar é a teoria que o PSD tentou convencer os pais, os filhos, os reitores e os professores. Eu rejeito este erro gigante que tem repercussões económicas. Quem está treinado para fazer algo muito específico, em pouco tempo fica ultrapassado, devido ao avançado tecnológico. Daí os problemas no setor têxtil em Portugal, por exemplo. Temos de educar pessoas com educação básica em matemática, ciência, língua portuguesa, inglês, etc, para que possam ter flexibilidade, para poderem vir a ter opções profissionais na vida.

Foi professor em Portugal. Que balanço faz da sua experiência?

Notei como diferença que em Portugal os alunos são passivos, querem apenas receber a informação debitada pelo professor. O contrário do que acontece nos Estados Unidos, em que os alunos estão mentalizados para participar, exprimir a opinião e questionar o professor. Tentei anos a fio arrancar opiniões e dúvidas. Não foi fácil, mas é possível se começarmos a educar e a estimular reações desde muito cedo, desde os 4,5,6,7 anos. E é o que procuro fazer nos meus livros infantis, encorajando-os a não ter medo de exprimir a sua opinião, em desafiar, em sonhar, etc. Basicamente, e voltando à questão anterior, foi o que o PSD tentou fazer quando foi governo: abafar os sonhos dos jovens portugueses. Nem imagina o efeito destrutivo que isso tem na mente de um adolescente de 15 anos.

Está em Portugal há 26 anos e já tem nacionalidade portuguesa. O que é que lhe continua a fazer confusão na nossa maneira de ser?

Quando cá cheguei percebi que o português não pensa como o americano sobre todos os temas: a vida, a morte, a amizade, a política, a vida privada, etc. Levou-me muito tempo a perceber o que os portugueses pensam sobre a pontualidade ou a falta dela. Cá, a pontualidade é relativa. Mas agora pouca coisa me faz confusão. Confesso que não compreendo, por exemplo, porque é que os portugueses gostam de Paulo Portas e do CDS. Não vejo nem autenticidade, nem honestidade, nem mensagem, no partido e no homem. Para mim é um mistério.

Veio para Portugal por amor, onde se casou com o cientista e atual deputado, Alexandre Quintanilha. Disse que não pode haver democracia real sem igualdade. Acha que com o seu ato contribuiu para consolidar  esse objetivo?

Sim. Ainda há um caminho a percorrer. Mas Portugal fez um progresso espetacular. Dou os meus sinceros parabéns a todos os portugueses. Quando cheguei cá o Porto era uma cidade fechada e sem noção do que se passava no exterior. Hoje, o Porto é uma cidade aberta e com grande dinamismo. O português, de uma forma geral, fez um progresso mental fantástico nos últimos anos praticamente sem paralelo com outros povos. Quando eu aterrei em Portugal, na década de 90, era quase um tabu falar de homossexualidadade. Os homossexuais e as lésbicas estavam no armário. Hoje, especialmente nos jovens de Lisboa e Porto esse é praticamente um não assunto.  Continuo a trabalhar para tornar a orientação sexual um não assunto, da mesma forma que se tem olhos azuis ou castanhos, é apenas uma característica da pessoa.

Sobre a sua carreira de escritor, foi recusado por vinte e tal editoras, até que teve um livro de grande êxito e desde então nunca mais parou. Alguma vez esteve à beira de desistir?

Sempre quis escrever um livro que me desse prazer e satisfação. Quando estou a escrever nunca penso nas vendas e no editor, mas sim em escrever uma obra maravilhosa. A minha primeira grande deceção editorial foi «Meia noite, ou o princípio do mundo», nos Estados Unidos. Um romance que decorre no Porto, no século XIX, demorou três anos e meio a escrever, foi muito ambicioso e dei tudo. Fui alvo de uma crítica impiedosa por parte de um jornal de São Francisco que teve grande efeito em mim e nas vendas.

A ditadura das vendas não o condiciona?

Escrever para mim é uma paixão, não é um passatempo. Só fico realizado se escrever exatamente o que eu quero. As pressões continuam a aumentar todos os anos, porque já não há editoras que publicam só para ter o prazer de publicar um excelente romance. Não há lealdade no mundo editorial hoje em dia. Por via disto, muitos autores nos Estados Unidos e na Inglaterra publicam os seus próprios livros. Basta um fracasso editorial para as editoras se afastarem. Em Portugal ainda há editoras da velha guarda que são leais, mas são já uma raridade. Felizmente os meus livros vendem bem.

Foi justa a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Bob Dylan?

Acho que sim. O prémio Nobel raramente reflete a qualidade da escrita, da mesma forma que os Óscares de Hollywood nem sempre refletem o melhor filme. É impossível dizer quem é o melhor escritor. É completamente subjetivo avaliar William Faulkner,  Charles Dickens, Jane Austen e dizer que um é melhor do que o outro. Uma comissão de peritos na Suécia não tem a capacidade de avaliar um livro escrito por um chinês, japonês, português, etc. As escolhas são feitas por razões geográficas, políticas, estilo de escrita, influência, etc. E pouco tem a ver com qualidade. Os critérios de atribuição do prémio Nobel da Paz são igualmente duvidosos. Quero recordar que Henry Kissinger foi galardoado com esta distinção depois de planear a guerra do Vietname e matar 2 milhões de vietnamitas. A partir daí deixei de acreditar nestes prémios. Eventualmente só no âmbito da ciência os prémios são justos e sérios.

«O evangelho segundo Lázaro» é o seu último livro. Deu-lhe prazer pelo trabalho exaustivo de investigação que teve de desenvolver?

Eu adoro pesquisar períodos da história longínqua. Dá-me gozo pessoal mergulhar na história. Faço sempre descobertas, pequenas e grandes, que mudam a minha visão sobre as coisas e dão-me a possibilidade de criar um universo paralelo, realista e convincente. Neste livro, fiz pequenas descobertas, como os temperos na alimentação, o cruzamento de culturas, etc. A grande descoberta foi saber que em Jerusalém, há 2 mil anos, já havia uma sociedade multicultural, onde existiam romanos, gregos, judeus, fenícios. Uma mistura de gente.

Quanto tempo demorou a pesquisa?

Demorou entre um ano e meio e dois anos. Costumo encomendar livros sobre a vida quotidiana, sobre mitologia grega, judaica, romana, sobre o Novo Testamento, sobre comida, roupa da época, uso de língua, etc. E anoto tudo o que pode vir a ser objeto de entrar no livro. A internet também pode dar uma ajuda, principalmente quando se pretende, rapidamente, saber uma data. A formação que tenho em Religião Comparada foi muito importante para me dar a confiança para entrar neste ambicioso projeto.

Qual é a mensagem genérica que pretendeu passar?

A mensagem que procurei deixar nesta história entre Jesus e Lázaro, dois amigos de infância, é que podemos perder a fé em muita coisa, mas nunca nas pessoas que amamos.

Nuno Dias da Silva
Porto Editora
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
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