Presidente do Conselho de Finanças Públicas
Teodora Cardoso: não se pode ter medo da mudança
É uma das economistas mais respeitada do
país e os seus alertas têm peso, junto dos políticos e da opinião
pública. Teodora Cardoso fala sobre as finanças públicas, as
cativações, o incentivo ao consumo privado e partilha ainda o seu
ponto de vista sobre a educação, considerando que a grande
debilidade do sistema é a dificuldade em ensinar a estudar.
Tendo em conta o cenário de
alguma volatilidade, o Orçamento do Estado para 2018 é demasiado
otimista?
Não gosto muito de usar o termo pessimista ou otimista, porque
quer dizer tudo e não quer dizer nada. O relatório elaborado pelo
CFP refere que estando nós a beneficiar de uma conjunta económica
bastante favorável, considerando os últimos anos, e do ajustamento
que foi feito nos últimos tempos, agora já não estamos na fase de
nos preocupar tanto com cortes e operações duras de austeridade em
matéria de politica orçamental, esse cenário não nos deve deixar de
obrigar a ter em conta o chamado ajustamento estrutural do
Orçamento.
No que é que esse
ajustamento estrutural se traduz?
Quando um Orçamento é feito são tomadas decisões, quer em termos
de despesas, quer em termos de receitas, que não vão ter apenas
impacto no ano a que o Orçamento diz respeito, mas têm impactos
futuros. E os impactos registam-se não apenas nas contas públicas,
mas também na economia. Portanto, o Orçamento deve tomar decisões
que tiram partido de uma conjuntura favorável, mas deve procurar
favorecê-la e mantê-la, não podendo ser contrárias a variáveis
económicas cruciais, como é o caso do investimento e da poupança.
Aliás, a poupança continua a ser um dos pontos fracos da economia
portuguesa e é um problema longe de estar resolvido.
E quanto às contas
públicas, o pior já passou?
Temos que reconhecer que todas as economias estão sujeitas a
flutuações e, pode até acontecer, que soframos as consequências de
crises ou oscilações que se registem noutras economias que não a
nossa. Por isso, as decisões orçamentais têm que ter estas
variações em conta e, sobretudo, não devem estimular excessivamente
as despesas rígidas. Precisamente quando as coisas correm mal, é-se
obrigado a tomar medidas de austeridade, que passam por cortes de
salários ou pensões, que são piores na perspetiva da economia e do
bem estar das pessoas. Recomenda-se, por isso, prudência nestas
decisões. Por consequência, entendemos que o Orçamento do Estado
para 2018 está muito virado para os benefícios da conjuntura no
curto prazo e para os aspetos estruturais.
Insiste que os governos têm
tido uma visão curto prazista das finanças públicas. Defende pactos
de regime a este nível?
Confesso que não tenho uma opinião firme sobre os pactos de regime
nas finanças. Já sobre o curto prazismo das finanças públicas
trata-se de um problema de todas as democracias, não é exclusivo de
Portugal. Os governos têm em mente, em primeiro lugar, a capacidade
de serem reeleitos. Todos os países democráticos têm este problema
e não se têm socorrido de pactos de regime. O que é desejável, e o
CFP tem insistido nesse rumo, é um desenho da política orçamental
que seja mais virado para o médio prazo. Aliás, é isso que está
previsto nas próprias regras europeias. Mas o problema não é tanto
fazer para cumprir o que os outros no obrigam - o que é sempre um
mau princípio - mas porque este caminho é necessário. As decisões
quando são tomadas devem sê-lo a pensar no futuro e não apenas no
ano seguinte. Os orçamentos que são feitos para o ano seguinte
devem enquadrar-se em toda a legislatura, como está previsto na Lei
de Enquadramento Orçamental. Infelizmente, na prática, continuamos
muito virados para a ótica anual em base de caixa, que nem sequer
conta com os compromissos assumidos. O que acaba por refletir-se
nas contas nacionais.
A dívida pública e o
serviço dos juros da dívida são fardos que continuaremos a
carregar por muitos e bons anos?
Primeiro é preciso saber que carregamos esse fardo por termos
levado décadas a fazer orçamentos em base de caixa anual…
Para os leitores
perceberem, o que são orçamentos em base de caixa?
Aquilo que aparece no Orçamento é a despesa que vai ser paga, mas
não aparecem os compromissos da despesa que ficam por pagar. Vemos
isso, por exemplo, na Saúde, com as dívidas aos fornecedores, etc.
O planeamento anual e em base de caixa permitiu tomar decisões que
oneraram períodos futuros e acumularam-se défices, não sendo de
admirar que desde o 25 de abril até aos nossos dias temos tido
défices todos os anos. Portanto, esses défices estão refletidos na
dívida.
A dívida é
pagável?
O problema é que a dívida atual já é muito alta e, por
consequência, torna-se mais difícil poder continuar a aumentá-la,
na medida em que os credores começam a olhar com desconfiança para
esse facto, que se reflete, no imediato, em juros mais elevados.
Mas mesmo no período atual - em que a conjuntura é favorável em
termos de juros - o simples facto de o saldo da dívida ser muito
alto leva a que haja encargos com juros elevados e para se pagar
isso, não se pode gastar noutros lados. Mais uma razão para ter que
existir cuidado.
As cativações são o mais
recente palavrão na área económico-financeira. Na prática, o que
traduzem?
As cativações sempre existiram e todos os orçamentos têm. No
fundo, são um instrumento de gestão de tesouraria. Passo a
explicar: o Orçamento define dotações, cada serviço tem «x» para
gastar em determinada área, mas o Ministério das Finanças cativa
uma parte desse valor. E durante o ano parte desse montante pode
ser descativado, outro mantém-se, sempre em função das
necessidades. O problema é que este é um instrumento completamente
discricionário e que nos últimos anos foi usado em muito maior
escala, sem estar sujeito a uma política. O ministro das Finanças
pode, a qualquer momento, dizer a um serviço que em vez de «x» só
pode gastar «y». Para além disso, trata-se de um grande
constrangimento para os serviços que deixam de poder planear as
suas despesas. É uma gestão do dia a dia que ainda agrava mais a
gestão curto prazista do Orçamento.
O Orçamento é um bolo
cobiçado por muitas corporações, afetas a diversos setores. Como se
lida com essa pressão?
Essa é uma das razões pela qual devíamos ter uma visão do
Orçamento de longo prazo. Nós sabemos todos que, por exemplo, o
sistema de Saúde vai encarecer, primeiro porque a população está a
envelhecer, o aumento das doenças oncológicas e também porque as
tecnologias da saúde têm evoluído bastante. Por consequência, se
Portugal quer um Sistema Nacional de Saúde (SNS) que corresponda às
crescentemente exigentes necessidades é preciso considerar que este
sistema vai custar mais caro, sucessivamente, ao longo dos anos. Ou
seja, estar a gastar toda a margem orçamental que temos num ano e
depois para o ano logo se vê, não é suportável…
Se na Saúde são os médicos,
os enfermeiros e os técnicos de diagnóstico, na Educação são os
professores a saírem para a rua como forma de
protesto…
Na Educação o caso é distinto. A baixa taxa de natalidade leva a
que haja menos alunos no ensino. Não conheço o setor a fundo, mas
creio que na Educação, para além das cativações, também tivemos os
congelamentos das carreiras. Quando as carreiras são descongeladas,
ainda por cima com anos e anos acumulados, isto significa um
encargo enorme que não pode ser tomado de uma vez. É uma
dificuldade adicional, pois terá de se distribuir parcimoniosamente
esse ativo acumulado das carreiras congeladas, já que o Orçamento
não tem espaço para satisfazer toda a gente.
Temos visto nas últimas
semanas, o aumento das campanhas de crédito ao consumo, porventura
também devido à proximidade do Natal. O incentivo ao consumo
privado pode ter um lado perverso?
O incentivo ao consumo privado pode ser perigoso. Os bancos estão
inundados de liquidez e, portanto, se tiverem procura para esse
crédito, concedem-no. Mas depende das expectativas das pessoas. Se
estas se endividam para consumir é porque estão a pensar que o seu
rendimento vai aumentar. Neste ponto em particular tem havido um
excesso de otimismo que tem procurado ser transmitido para as
pessoas. E este é um lado perigoso que eu identifico. Porquê?
Porque a haver efetivamente aumento de rendimento - e eu desejo que
exista, evidentemente - devia procurar-se estimular mais a
poupança, com medidas concretas de incentivo ao aforro, que começam
por incorporar na decisão individual de cada um de nós que «isto
não está garantido».
O Turismo tem
sido uma âncora da recuperação nacional. Teme que este setor esteja
a ser um balão que enche e quando menos se espera pode
rebentar?
O Turismo tem um problema associado que é a sua relativa
volatilidade, porque é dos setores que mais sofre com as
conjunturas negativas. Basta haver um problema na Europa - e
infelizmente, mais dia menos dia acontecerá, - e uma das variáveis
mais afetadas é sempre o Turismo. Um país que depende tanto do
Turismo como o nosso está a incorrer numa maior volatilidade na sua
própria economia.
Diz que não estamos a salvo
de novas crises. E de um novo resgate?
Ninguém está a salvo de novas crises, nem nós, nem ninguém. Já
quanto ao regaste, só se poria essa questão se fizéssemos grandes
disparates. Não estamos a fazer tudo para evitar problemas, mas
também não estamos a cometer disparates. Por outro, para haver um
resgate é necessário haver quem nos resgate. No passado, temos
conseguido ser resgatados, mas se continuarmos nesta vida, não sei
se alguém nos dará a mão.
Seguiu a área de Economia.
Teve algum motivo forte para trilhar este rumo?
Eu segui este curso sem saber muito bem ao que ia. Aliás, foi
assim com praticamente toda a gente da minha geração. Para começar,
porque discutia-se pouco Economia, por outro lado, tínhamos que
escolher o curso de Economia aos 15 anos, que era o 9.º ano do
liceu. A Economia era, de certa maneira, o curso dos indecisos
entre Letras e Ciências.
Foi a atração pela
Matemática que a levou para estes caminhos?
Este curso tinha Inglês e História, disciplinas do meu agrado, e
também Matemática, uma das minhas disciplinas preferidas. Alias,
devo dizer que tive mais vocação e dediquei-me mais a todas as
cadeiras de Matemática, Estatística e Econometria, do que
propriamente a Economia. Onde eu efetivamente reconheci
posteriormente o interesse e utilidade pela Economia foi no Banco
de Portugal, não foi na universidade.
Disse numa entrevista que
«sempre teve jeito para estudar e gostava de estudar», afirmando
mesmo que leu todos os clássicos da Literatura. Foi esta receita de
esforço e de uma cultura abrangente que lhe permitiu chegar longe
na sua carreira?
A carreira de estudante foi absolutamente essencial para chegar
onde cheguei. Independentemente do curso que se segue, não se pode
ter unicamente a visão estreita e redutora da matéria, é preciso ir
além disso. Para mim ler os clássicos, gostar de Literatura,
Filosofia e Línguas não é um esforço, é um prazer. Devo até dizer
que é das melhores coisas que a vida nos dá.
Até quando é que a
Matemática vai ser o eterno «bicho papão» dos
alunos?
A Matemática requer raciocínio, atenção e bases. E exige que se
pense e muita concentração. E obriga, na Matemática e em tudo o
resto, que existam, primeiro, bons professores, e depois que
motivem os alunos e que não lhes metam medo para a Matemática. Os
alunos deviam ser preparados desde o início da escolaridade a lidar
com a Matemática de uma forma natural e sem medo. Não há razão
nenhuma para ter medo da Matemática, mas a verdade é que esse temor
existe e constitui uma barreira à aprendizagem.
Porque é que a escola dos
nossos dias não é apelativa e cativante para a maior parte
dos alunos?
Os meios de informação e as técnicas de informação mudaram por
completo a sociedade e contribuíram muito para o chamado défice de
atenção. Vê-se isso muito na televisão e nas mensagens que são
veiculadas, tudo o que seja mais do que 1 ou 2 minutos, já não
passa. Vivemos numa sociedade com muitas distrações e que
prejudicam uma desejável concentração sobre uma matéria ou uma
disciplina. Creio que o principal problema na Educação atualmente
não é tanto o de ensinar matérias, mas sim ensinar a estudar,
procurar a informação e trabalhá-la. Só o Google não chega, até
porque tem boa e má informação, é preciso selecioná-la e a escola
devia ter um papel importante nesse filtro, incentivando ao
conhecimento.
A escola terá de se
reinventar?
Na prática vai acontecendo, mas como as coisas vão evoluindo muito
rapidamente continua a existir um desfasamento. A evolução
tecnológica foi profunda e rápida, sem paralelo e obriga a uma
grande capacidade de ajustamento, que implica, necessariamente, uma
grande capacidade de atenção, que neste momento não existe.
Na sociedade de
aprendizagem e reciclagem permanente como é que nos devemos
preparar a nível estrutural e do sistema de ensino para a crescente
substituição do homem pela máquina?
No passado as máquinas também substituíram o homem em várias
tarefas, houve empregos destruídos, mas outros que, entretanto,
foram criados. A minha expetativa é que isso aconteça, mas para que
tal suceda é necessário que quem desenvolve uma atividade puramente
mecânica, que é substituída pelos robôs, seja capaz de fazer outras
coisas. E aqui entronca a questão da formação, que tem de ser
diferente e, essencialmente, tem de ser contínua e ao longo da
vida. É verdade para todos e especialmente para os professores
porque são eles que vão incutir essa mentalidade nos alunos. O
debitar e o decorar da matéria ainda serve para apresentar umas
notas ao fim do ano, mas já não chega para uma carreira de
estudante de qualidade.
Os anos têm provado que os portugueses são até dos povos mais
adaptáveis, por exemplo, às crises económicas e, portanto, seria
muito importante que nos adaptássemos a esta nova realidade do
ensino. A vida exige que se esteja preparado para a mudança. E não
se pode ter medo da mudança, deve ir-se ao encontro dela. Se a
soubermos gerir, a mudança muda-nos para melhor.
CARA DA NOTÍCIA
Teodora Cardoso nasceu em Estremoz,
em 1942.
Licenciou-se em Economia pela Universidade Técnica de Lisboa, no
Instituto Superior de Economia (atual ISEG).
Entre 1970 e 1973 participou da elaboração e acompanhamento dos
Planos de Fomento no Ministério das Obras Públicas, mantendo uma
atividade docente no Instituto Superior de Economia, como
Assistente de Teoria Económica, Estatística e Investigação
Operacional.
A partir de março de 1973 inicia uma carreira sempre ascendente no
Banco de Portugal, onde foi a primeira mulher num meio dominado por
homens.
Técnica do Banco de Portugal, entre 1973 e 1992, desempenhou
funções no Departamento de Estatística e Estudos Económicos.
Trabalhou nas áreas de macroeconomia, política monetária e relações
com organizações internacionais. Chefiou aquele departamento entre
1985 e 1990.
Entre 1990 e 1992 representou o Banco de Portugal (na
especialidade de Política Monetária) no Comité de Governadores da
Comunidade Europeia, bem como na Conferência de representantes dos
ministros das Finanças encarregada de redigir a proposta de Tratado
da União Europeia (o Tratado de Maastricht).
Foi consultora da administração em 1991 e 1992. No Banco Português
de Investimento, desempenhou as funções de consultora da
administração entre 1992 e 2008. Integrou o Conselho Consultivo do
Instituto de Gestão do Crédito Público (IGCP) entre 1996 e 2008. Em
2001, fez parte da Estrutura para a Reforma da Despesa Pública.
Entre junho de 2008 e fevereiro de 2012, foi membro do conselho de
administração do Banco de Portugal.
Presidiu ao Conselho Diretivo da Fundação Luso-Americana para o
Desenvolvimento (FLAD).
É desde fevereiro de 2012 presidente do conselho superior do
Conselho das Finanças Públicas.