Entrevista

Presidente do Conselho de Finanças Públicas
Teodora Cardoso: não se pode ter medo da mudança

DL0A3814 (2).jpgÉ uma das economistas mais respeitada do país e os seus alertas têm peso, junto dos políticos e da opinião pública. Teodora Cardoso fala sobre as finanças públicas, as cativações, o incentivo ao consumo privado e partilha ainda o seu ponto de vista sobre a educação, considerando que a grande debilidade do sistema é a dificuldade em ensinar a estudar.

Tendo em conta o cenário de alguma volatilidade, o Orçamento do Estado para 2018 é demasiado otimista?
Não gosto muito de usar o termo pessimista ou otimista, porque quer dizer tudo e não quer dizer nada. O relatório elaborado pelo CFP refere que estando nós a beneficiar de uma conjunta económica bastante favorável, considerando os últimos anos, e do ajustamento que foi feito nos últimos tempos, agora já não estamos na fase de nos preocupar tanto com cortes e operações duras de austeridade em matéria de politica orçamental, esse cenário não nos deve deixar de obrigar a ter em conta o chamado ajustamento estrutural do Orçamento.

No que é que esse ajustamento estrutural se traduz?
Quando um Orçamento é feito são tomadas decisões, quer em termos de despesas, quer em termos de receitas, que não vão ter apenas impacto no ano a que o Orçamento diz respeito, mas têm impactos futuros. E os impactos registam-se não apenas nas contas públicas, mas também na economia. Portanto, o Orçamento deve tomar decisões que tiram partido de uma conjuntura favorável, mas deve procurar favorecê-la e mantê-la, não podendo ser contrárias a variáveis económicas cruciais, como é o caso do investimento e da poupança. Aliás, a poupança continua a ser um dos pontos fracos da economia portuguesa e é um problema longe de estar resolvido.

E quanto às contas públicas, o pior já passou?
Temos que reconhecer que todas as economias estão sujeitas a flutuações e, pode até acontecer, que soframos as consequências de crises ou oscilações que se registem noutras economias que não a nossa. Por isso, as decisões orçamentais têm que ter estas variações em conta e, sobretudo, não devem estimular excessivamente as despesas rígidas. Precisamente quando as coisas correm mal, é-se obrigado a tomar medidas de austeridade, que passam por cortes de salários ou pensões, que são piores na perspetiva da economia e do bem estar das pessoas. Recomenda-se, por isso, prudência nestas decisões. Por consequência, entendemos que o Orçamento do Estado para 2018 está muito virado para os benefícios da conjuntura no curto prazo e para os aspetos estruturais.

Insiste que os governos têm tido uma visão curto prazista das finanças públicas. Defende pactos de regime a este nível?
Confesso que não tenho uma opinião firme sobre os pactos de regime nas finanças. Já sobre o curto prazismo das finanças públicas trata-se de um problema de todas as democracias, não é exclusivo de Portugal. Os governos têm em mente, em primeiro lugar, a capacidade de serem reeleitos. Todos os países democráticos têm este problema e não se têm socorrido de pactos de regime. O que é desejável, e o CFP tem insistido nesse rumo, é um desenho da política orçamental que seja mais virado para o médio prazo. Aliás, é isso que está previsto nas próprias regras europeias. Mas o problema não é tanto fazer para cumprir o que os outros no obrigam - o que é sempre um mau princípio - mas porque este caminho é necessário. As decisões quando são tomadas devem sê-lo a pensar no futuro e não apenas no ano seguinte. Os orçamentos que são feitos para o ano seguinte devem enquadrar-se em toda a legislatura, como está previsto na Lei de Enquadramento Orçamental. Infelizmente, na prática, continuamos muito virados para a ótica anual em base de caixa, que nem sequer conta com os compromissos assumidos. O que acaba por refletir-se nas contas nacionais.

A dívida pública e o serviço dos juros da dívida são fardos  que continuaremos a carregar por muitos e bons anos?
Primeiro é preciso saber que carregamos esse fardo por termos levado décadas a fazer orçamentos em base de caixa anual…

DL0A3829 (1).jpgPara os leitores perceberem, o que são orçamentos em base de caixa?
Aquilo que aparece no Orçamento é a despesa que vai ser paga, mas não aparecem os compromissos da despesa que ficam por pagar. Vemos isso, por exemplo, na Saúde, com as dívidas aos fornecedores, etc. O planeamento anual e em base de caixa permitiu tomar decisões que oneraram períodos futuros e acumularam-se défices, não sendo de admirar que desde o 25 de abril até aos nossos dias temos tido défices todos os anos. Portanto, esses défices estão refletidos na dívida.

A dívida é pagável?
O problema é que a dívida atual já é muito alta e, por consequência, torna-se mais difícil poder continuar a aumentá-la, na medida em que os credores começam a olhar com desconfiança para esse facto, que se reflete, no imediato, em juros mais elevados. Mas mesmo no período atual - em que a conjuntura é favorável em termos de juros - o simples facto de o saldo da dívida ser muito alto leva a que haja encargos com juros elevados e para se pagar isso, não se pode gastar noutros lados. Mais uma razão para ter que existir cuidado.

As cativações são o mais recente palavrão na área económico-financeira. Na prática, o que traduzem?
As cativações sempre existiram e todos os orçamentos têm. No fundo, são um instrumento de gestão de tesouraria. Passo a explicar: o Orçamento define dotações, cada serviço tem «x» para gastar em determinada área, mas o Ministério das Finanças cativa uma parte desse valor. E durante o ano parte desse montante pode ser descativado, outro mantém-se, sempre em função das necessidades. O problema é que este é um instrumento completamente discricionário e que nos últimos anos foi usado em muito maior escala, sem estar sujeito a uma política. O ministro das Finanças pode, a qualquer momento, dizer a um serviço que em vez de «x» só pode gastar «y». Para além disso, trata-se de um grande constrangimento para os serviços que deixam de poder planear as suas despesas. É uma gestão do dia a dia que ainda agrava mais a gestão curto prazista do Orçamento.

O Orçamento é um bolo cobiçado por muitas corporações, afetas a diversos setores. Como se lida com essa pressão?
Essa é uma das razões pela qual devíamos ter uma visão do Orçamento de longo prazo. Nós sabemos todos que, por exemplo, o sistema de Saúde vai encarecer, primeiro porque a população está a envelhecer, o aumento das doenças oncológicas e também porque as tecnologias da saúde têm evoluído bastante. Por consequência, se Portugal quer um Sistema Nacional de Saúde (SNS) que corresponda às crescentemente exigentes necessidades é preciso considerar que este sistema vai custar mais caro, sucessivamente, ao longo dos anos. Ou seja, estar a gastar toda a margem orçamental que temos num ano e depois para o ano logo se vê, não é suportável…

Se na Saúde são os médicos, os enfermeiros e os técnicos de diagnóstico, na Educação são os professores a saírem para a rua como forma de protesto…
Na Educação o caso é distinto. A baixa taxa de natalidade leva a que haja menos alunos no ensino. Não conheço o setor a fundo, mas creio que na Educação, para além das cativações, também tivemos os congelamentos das carreiras. Quando as carreiras são descongeladas, ainda por cima com anos e anos acumulados, isto significa um encargo enorme que não pode ser tomado de uma vez. É uma dificuldade adicional, pois terá de se distribuir parcimoniosamente esse ativo acumulado das carreiras congeladas, já que o Orçamento não tem espaço para satisfazer toda a gente.

Temos visto nas últimas semanas, o aumento das campanhas de crédito ao consumo, porventura também devido à proximidade do Natal. O incentivo ao consumo privado pode ter um lado perverso?
O incentivo ao consumo privado pode ser perigoso. Os bancos estão inundados de liquidez e, portanto, se tiverem procura para esse crédito, concedem-no. Mas depende das expectativas das pessoas. Se estas se endividam para consumir é porque estão a pensar que o seu rendimento vai aumentar. Neste ponto em particular tem havido um excesso de otimismo que tem procurado ser transmitido para as pessoas. E este é um lado perigoso que eu identifico. Porquê? Porque a haver efetivamente aumento de rendimento - e eu desejo que exista, evidentemente - devia procurar-se estimular mais a poupança, com medidas concretas de incentivo ao aforro, que começam por incorporar na decisão individual de cada um de nós que «isto não está garantido».

DL0A3855 (1).jpgO Turismo tem sido uma âncora da recuperação nacional. Teme que este setor esteja a ser um balão que enche e quando menos se espera pode rebentar?
O Turismo tem um problema associado que é a sua relativa volatilidade, porque é dos setores que mais sofre com as conjunturas negativas. Basta haver um problema na Europa - e infelizmente, mais dia menos dia acontecerá, - e uma das variáveis mais afetadas é sempre o Turismo. Um país que depende tanto do Turismo como o nosso está a incorrer numa maior volatilidade na sua própria economia.

Diz que não estamos a salvo de novas crises. E de um novo resgate?
Ninguém está a salvo de novas crises, nem nós, nem ninguém. Já quanto ao regaste, só se poria essa questão se fizéssemos grandes disparates. Não estamos a fazer tudo para evitar problemas, mas também não estamos a cometer disparates. Por outro, para haver um resgate é necessário haver quem nos resgate. No passado, temos conseguido ser resgatados, mas se continuarmos nesta vida, não sei se alguém nos dará a mão.

Seguiu a área de Economia. Teve algum motivo forte para trilhar este rumo?
Eu segui este curso sem saber muito bem ao que ia. Aliás, foi assim com praticamente toda a gente da minha geração. Para começar, porque discutia-se pouco Economia, por outro lado, tínhamos que escolher o curso de Economia aos 15 anos, que era o 9.º ano do liceu. A Economia era, de certa maneira, o curso dos indecisos entre Letras e Ciências.

Foi a atração pela Matemática que a levou para estes caminhos?
Este curso tinha Inglês e História, disciplinas do meu agrado, e também Matemática, uma das minhas disciplinas preferidas. Alias, devo dizer que tive mais vocação e dediquei-me mais a todas as cadeiras de Matemática, Estatística e Econometria, do que propriamente a Economia. Onde eu efetivamente reconheci posteriormente o interesse e utilidade pela Economia foi no Banco de Portugal, não foi na universidade.

Disse numa entrevista que «sempre teve jeito para estudar e gostava de estudar», afirmando mesmo que leu todos os clássicos da Literatura. Foi esta receita de esforço e de uma cultura abrangente que lhe permitiu chegar longe na sua carreira?
A carreira de estudante foi absolutamente essencial para chegar onde cheguei. Independentemente do curso que se segue, não se pode ter unicamente a visão estreita e redutora da matéria, é preciso ir além disso. Para mim ler os clássicos, gostar de Literatura, Filosofia e Línguas não é um esforço, é um prazer. Devo até dizer que é das melhores coisas que a vida nos dá.

Até quando é que a Matemática vai ser o eterno «bicho papão» dos alunos?
A Matemática requer raciocínio, atenção e bases. E exige que se pense e muita concentração. E obriga, na Matemática e em tudo o resto, que existam, primeiro, bons professores, e depois que motivem os alunos e que não lhes metam medo para a Matemática. Os alunos deviam ser preparados desde o início da escolaridade a lidar com a Matemática de uma forma natural e sem medo. Não há razão nenhuma para ter medo da Matemática, mas a verdade é que esse temor existe e constitui uma barreira à aprendizagem.

Porque é que a escola dos nossos dias  não é apelativa e cativante para a maior parte dos alunos?
Os meios de informação e as técnicas de informação mudaram por completo a sociedade e contribuíram muito para o chamado défice de atenção. Vê-se isso muito na televisão e nas mensagens que são veiculadas, tudo o que seja mais do que 1 ou 2 minutos, já não passa. Vivemos numa sociedade com muitas distrações e que prejudicam uma desejável concentração sobre uma matéria ou uma disciplina. Creio que o principal problema na Educação atualmente não é tanto o de ensinar matérias, mas sim ensinar a estudar,  procurar a informação e trabalhá-la. Só o Google não chega, até porque tem boa e má informação, é preciso selecioná-la e a escola devia ter um papel importante nesse filtro, incentivando ao conhecimento.

A escola terá de se reinventar?
Na prática vai acontecendo, mas como as coisas vão evoluindo muito rapidamente continua a existir um desfasamento. A evolução tecnológica foi profunda e rápida, sem paralelo e obriga a uma grande capacidade de ajustamento, que implica, necessariamente, uma grande capacidade de atenção, que neste momento não existe.

Na sociedade de aprendizagem e reciclagem permanente como é que nos devemos preparar a nível estrutural e do sistema de ensino para a crescente substituição do homem pela máquina?
No passado as máquinas também substituíram o homem em várias tarefas, houve empregos destruídos, mas outros que, entretanto, foram criados. A minha expetativa é que isso aconteça, mas para que tal suceda é necessário que quem desenvolve uma atividade puramente mecânica, que é substituída pelos robôs, seja capaz de fazer outras coisas. E aqui entronca a questão da formação, que tem de ser diferente e, essencialmente, tem de ser contínua e ao longo da vida. É verdade para todos e especialmente para os professores porque são eles que vão incutir essa mentalidade nos alunos. O debitar e o decorar da matéria ainda serve para apresentar umas notas ao fim do ano, mas já não chega para uma carreira de estudante de qualidade.
Os anos têm provado que os portugueses são até dos povos mais adaptáveis, por exemplo, às crises económicas e, portanto, seria muito importante que nos adaptássemos a esta nova realidade do ensino. A vida exige que se esteja preparado para a mudança. E não se pode ter medo da mudança, deve ir-se ao encontro dela. Se a soubermos gerir, a mudança muda-nos para melhor.


CARA DA NOTÍCIA

Teodora Cardoso nasceu em Estremoz, em 1942.
Licenciou-se em Economia pela Universidade Técnica de Lisboa, no Instituto Superior de Economia (atual ISEG).
Entre 1970 e 1973 participou da elaboração e acompanhamento dos Planos de Fomento no Ministério das Obras Públicas, mantendo uma atividade docente no Instituto Superior de Economia, como Assistente de Teoria Económica, Estatística e Investigação Operacional.
A partir de março de 1973 inicia uma carreira sempre ascendente no Banco de Portugal, onde foi a primeira mulher num meio dominado por homens.
Técnica do Banco de Portugal, entre 1973 e 1992, desempenhou funções no Departamento de Estatística e Estudos Económicos. Trabalhou nas áreas de macroeconomia, política monetária e relações com organizações internacionais. Chefiou aquele departamento entre 1985 e 1990.
Entre 1990 e 1992 representou o Banco de Portugal (na especialidade de Política Monetária) no Comité de Governadores da Comunidade Europeia, bem como na Conferência de representantes dos ministros das Finanças encarregada de redigir a proposta de Tratado da União Europeia (o Tratado de Maastricht).
Foi consultora da administração em 1991 e 1992. No Banco Português de Investimento, desempenhou as funções de consultora da administração entre 1992 e 2008. Integrou o Conselho Consultivo do Instituto de Gestão do Crédito Público (IGCP) entre 1996 e 2008. Em 2001, fez parte da Estrutura para a Reforma da Despesa Pública. Entre junho de 2008 e fevereiro de 2012, foi membro do conselho de administração do Banco de Portugal.
Presidiu ao Conselho Diretivo da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD).
É desde fevereiro de 2012 presidente do conselho superior do Conselho das Finanças Públicas.

Nuno Dias da Silva
 
 
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