Carvalho da Silva, Sociólogo
“É preciso dar qualidade ao emprego”
O ex-líder da CGTP afirma que as universidades e os
politécnicos estão mais atentos às necessidades das empresas, mas
entende, ao mesmo tempo, que a cooperação e a articulação deve ser
ainda mais ampliada.
Após a saída da "troika" e
do governo Passos Coelho, a chamada "geringonça" gerou uma situação
de uma relativa estabilidade política. Pode-se dizer que, neste
momento, vivemos um clima de paz social?
De certa forma, sim, mas é preciso uma análise mais profunda. Em
primeiro lugar, esta solução governativa, apesar do Presidente da
República de então não gostar dela, resultou de uma aceitação por
parte das forças de esquerda que este percurso era possível. Outro
ponto que quero destacar é que na sociedade não houve uma dinâmica
social contrária a esta solução. Para além disso, rapidamente se
registou um reconhecimento e confiança por parte das forças
económicas, sociais e culturais da viabilidade na condução deste
processo de entendimento à esquerda, ao contrário do que se
propagandeava em certos meios dominantes na comunicação social.
Isto são motivos para uma estabilidade na sociedade portuguesa,
onde a componente laboral é apenas uma parte.
Tem dito que não é possível
termos um investimento capaz enquanto tivermos de suportar os
valores do serviço da dívida. Acha que devíamos seguir o exemplo da
Itália e bater o pé a Bruxelas?
O peso político de Portugal e da Itália são bem diferentes. O
facto de Mário Centeno ser também presidente do Eurogrupo é
meramente circunstancial. Manter o nível de despesa que temos com a
dívida como ela está hoje, e querermos introduzir políticas de
investimento que impulsionem um desenvolvimento acelerado é um
exercício quase impossível. É uma espécie de quadratura do círculo.
Numa primeira fase o Governo deu a sensação de se distanciar do
seguidismo face às políticas europeias e foi afirmando políticas
com algum grau de autonomia, mas na minha opinião manteve, de uma
forma geral, um nível de alinhamento com a União Europeia que não
precisava de ter. Em algumas áreas específicas podia ter exposto
com mais vigor os limites. Não estou a falar de rutura. Portugal
não ia armar-se em D. Quixote, mas era possível forçar limites e
demonstrar que os portugueses têm direito a melhor saúde, educação,
etc.
Em que áreas defende mais
investimento?
Nós precisamos mesmo de mais investimento privado e público.
Normalmente o público puxa pelo privado, o que quer dizer que é
preciso arranjar forma de arranjar mais investimento público. Por
vezes assiste-se a um discurso em que se tenta fazer crer que um
certo investimento tecnológico resolve tudo. Não nos iludamos. É
preciso esse, mas a divisão internacional do trabalho, vinda do
domínio das tecnologias, como aconteceu noutros períodos
históricos, não coloca os países todos em pé de igualdade. E
Portugal corre o risco de ter investimento estrangeiro dirigido às
áreas tecnológicas com um caráter predador e não como catapultador
do desenvolvimento da sociedade nacional.
A carga fiscal continua a
asfixiar particulares e empresas. Há margem para reduzir
impostos?
Quando se baixa impostos, em regra está-se a ir ao bolso por outro
lado. Em primeiro lugar, não há um país com um nível de prestação
de direitos fundamentais aos cidadãos com qualidade sem
contribuição destes. Como sabemos os países mais desenvolvidos têm
cargas de impostos elevadas. Segundo ponto, não se deve gerar na
sociedade portuguesa esta pedinchice contínua para a diminuição dos
impostos. Deve--se procurar ajustar as políticas fiscais para que o
mais possível cada indivíduo pague, em cada ano, os impostos
inerentes aos rendimentos que obteve nesse mesmo ano,
independentemente da fonte de rendimento. Terceiro aspeto:
era importante que certos empresários e grandes grupos pagassem
aquilo que devem pagar e que houvesse um combate à economia
paralela. Confesso que me choca quando me fazem a pergunta: «Quer
com ou sem fatura?». Isto não faz sentido. Era preciso criar no
país o princípio permanente de que há sempre fatura. Ao pagar IVA
que vai para o Estado é imperioso que exista um comprovativo.
Depois, um quarto aspeto, existem acertos que são necessários fazer
no sistema fiscal, de modo a propiciar mais justiça, nomeadamente
ao nível dos escalões, benefícios, etc.
Considera o Orçamento do
Estado para 2019 , um documento eleitoralista?
Para eleitoralista é, por assim dizer, muito apertado. Este
continua a ser um Orçamento de pequenos passos em relação a
políticas sociais, nomeadamente atualizações minúsculas das
reformas, política laboral e investimento, etc. São passos
positivos e que ajudam à mobilização da sociedade e à criação de
uma dinâmica positiva no incremento da atividade económica, mas
cada vez mais o país aproxima-se da necessidade imperiosa de
mudanças mais profundas e estruturais. Este documento não tem
sustentação para mudanças estruturais mais profundas.
A que mudanças
estruturais se refere?
Nomeadamente ao nível da economia. O Orçamento podia dar sinais se
estamos a mudar de agulha em relação à matriz de desenvolvimento. E
a verdade é que não dá. Continuamos a perspetivar o nosso
equilíbrio a partir da existência de dinâmica económica centrada no
turismo e em setores de pouco valor acrescentado. Aqui e ali, em
alguns setores, vê-se uma melhoria salarial e qualitativa,
nomeadamente ao nível da incorporação tecnológica, mas essa tónica
ainda não é predominante na dinâmica geral. É um Orçamento que não
perspetiva, por exemplo, as mudanças tecnológicas em curso, nem uma
aposta suficiente no sistema de ensino, educação e ciência que
apontem para um novo tempo.
Falta uma estratégia
nacional de desenvolvimento?
Ela não existe, mas se existisse resultaria de uma confluência de
múltiplas políticas, assente num pensamento coerente e sustentado,
traduzido em políticas públicas concretas que contribuíssem para
essa mudança de matriz. Dou um exemplo: ao longo do tempo tem
havido um discurso simplista sobre o turismo. É muito importante
que tenhamos um bom volume de turismo, mas é imperioso que se
procure melhorar a sua qualidade e utilizar os ganhos do turismo
para dinâmicas que gerem, em setores que lhe são conexos,
alterações qualitativas. O Primeiro-Ministro introduziu no último
ano o tópico da «qualidade do emprego como grande desafio». Mas
este tópico é indissociável da conjugação de políticas salariais,
políticas laborais, políticas de habitação para atrair os jovens,
políticas de mobilidade, etc. Só com este trabalho é que a matriz
de desenvolvimento do país se pode alterar.
Como se cria emprego de
qualidade em Portugal?
É preciso criar emprego de qualidade ou dar qualidade ao emprego
que temos. No plano nacional e mundial o que se constata é que a
indústria, no conjunto dos setores de atividade, continua a ser o
que mais puxa positivamente pela qualidade do emprego. E quanto
mais se afirmar o Estado social de direito democrático mais obriga
a criar emprego de qualidade na sociedade. O Estado é e será,
inquestionavelmente, um dos grandes impulsionadores do emprego de
qualidade.
O sistema de ensino,
nomeadamente ao nível do superior, está direcionado para satisfazer
as necessidades das empresas em termos de recursos
humanos?
Primeiro ponto: no que diz respeito ao ensino, Portugal avançou
muito em democracia. O nível de atraso em 1974 era absolutamente
chocante no contexto europeu e em certo período com muito
sacrifício das famílias. Lembro-me que o aumento do número de
licenciados em Portugal acontece na década de 90, coincidindo com o
"boom" das faculdades privadas. As camadas intermédias, que
conseguiram colocar os seus filhos nas universidades, pagaram e bem
esse esforço.
Apesar dos progressos educativos, as fragilidades continuam à
vista…
O nível de formação pré-escolar apresenta muitos défices, o ensino
secundário tem um grande nível de retenção e a percentagem dos que
transitam para o superior ainda é muito mais baixa do que devia
ser. As universidades apresentam um nível de reprovação nos
primeiros anos que também é indicador de debilidades. Por seu
turno, o incremento do ensino profissional foi uma boa aposta, mas
isso tem de ser acompanhado por uma mudança de formações e perfis.
E há outro problema que queria destacar: assiste-se a uma
secundarização das ciências sociais e humanas na formação das
pessoas e a sociedade do futuro vai exigir muito mais do que se
poderia imaginar neste campo. As ciências sociais e humanas vão
integrar-se no campo das formações mais especializadas e
diversificadas ao longo da vida, articulando o que é mais tecno com
o que é mais social.
O ensino superior e as
empresas têm encurtado o fosso que os separava?
As universidades e os politécnicos estão mais atentos às
necessidades das empresas. Mas a cooperação e a articulação deve
ser ainda mais ampliada. O que acontece é que a maior parte dos
pedidos feitos pelas empresas são para hoje ou para ontem e as
universidades não podem funcionar como oficinas de produção em
série. As universidades têm a preparação de gerações projetando o
futuro. É fundamental o mapeamento das grandes tendências e
contra-tendências da trajetória da inovação tecnológica à escala
mundial, da observação do que é a realidade tecnológica do país,
etc.
A economia portuguesa está
em arrefecimento, apesar do desemprego ter
estabilizado…
Sim, mas a taxa oficial de desemprego esconde muitas debilidades
do ponto de vista da qualidade do emprego. São as precariedades e
as inseguranças múltiplas. São os recibos verdes, os trabalhos
temporários, as subcontratações em situações de sobre-exploração
injustificadas, etc.
Foi sindicalista durante 25
anos. Como seria o emprego em Portugal, e no mundo, já agora, sem
os sindicatos?
O último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
sobre o trabalho digno em Portugal, apresentado há poucas semanas é
claro. O tripé que sustentou a dignidade no trabalho foi este: a
liberdade sindical, a negociação coletiva e o direito de trabalho.
Isso hoje está profundamente posto em causa. A outra sustentação
foi a luta das sociedades contra a exploração desmedida e pela
justiça social, que levou à não aceitação do trabalho escravo e do
trabalho infantil, os salários mínimos, etc. Isto tudo para dizer
que o caminho da dignidade do trabalho não existia sem sindicatos.
E o que assistimos hoje, e também nos países desenvolvidos, é a
tentativas de retrocesso enorme que passa, nomeadamente, pela
tentativa de eliminar o direito do trabalho. Dizer que na lógica da
"uberização" da sociedade são todos colaboradores de plataformas é
uma completa fraude. Isto é a consequência da onda neoliberal que
varre o mundo e faz lembrar os desequilíbrios verificados no século
XIX.
Fala-se muito do «direito a
desligar» e inclusive muitas empresas já adotaram essa medida. Como
equilibrar as obrigações profissionais e o usufruir da vida fora do
local de trabalho?
Estamos a caminhar para um permanente caos entre tempos de
trabalho e não trabalho. A vida tem dois pilares fundamentais: a
saúde e o tempo. Nós só temos um corpo e a saúde do nosso corpo
depende do que fazemos com ele durante todo o tempo. Não podemos
permitir que o trabalho seja organizado de forma a subverter o
princípio do direito a proteger a nossa saúde. Segundo ponto: o
tempo é das pessoas. O tempo do trabalho é cedido pela pessoa à
entidade patronal a troco de uma compensação, mas ele não pode
perder controlo sobre esse tempo, senão baralha-lhe o resto da
vida. Dele e dos que o rodeiam. Não se pode aceitar este rolo
compressor que quase obriga as pessoas a estarem 24 sobre 24 horas
disponíveis ao serviço da empresa. É um absurdo. Ou como alguns
tecnólogos fundamentalistas defendem, o facto de se poder trabalhar
em vários períodos do dia e de formas diversas deixou de se poder
definir o tempo do trabalho e do não trabalho. Não pode ser
assim!
Pensa que iremos
legislar este tema num futuro próximo?
Isto tem de ser regulado. Mas há outros aspetos, diretamente ou
indiretamente relacionados, que também devem merecer a atenção de
todos e ter reflexos na legislação do trabalho. Trabalhar de dia ou
de noite não é a mesma coisa. Trabalhar num horário normal ou
extraordinário não é a mesma coisa. Trabalhar aos soluços ou em
contínuo não é a mesma coisa. O trabalho por turnos ou
extraordinário não é o mesmo que o trabalho das 9 às 5 ou em
horário normal.
As gerações atuais estão
completamente seduzidas pelos aparelhos tecnológicos. Como
evitá-los?
Por isso eu digo que as próximas gerações vão ter um combate muito
intenso. Vão ter de encontrar formas de evitar que os tornem
escravos. Muitas das teorias em torno das novas tecnologias e dos
impactos do digital, da robotização ou da inteligência artificial,
induzem-nos para lógicas de nos porem a trabalhar como máquinas e
no prolongamento das máquinas. As gerações de hoje estão em modo de
sujeição à dinâmica do tecnológico. E vão ter de fazer uma
inversão, fazendo prevalecer o direito do ser humano, nomeadamente
o direito à cidadania, à participação cívica e política, direito ao
lazer, à cultura, etc. O próprio direito ao não trabalho. Estou
convicto que as próximas gerações vão travar uma luta intensa para
salvaguardar a sua dimensão social e humana.
Está em curso o debate
sobre a definição do salário mínimo para 2019. Patrões e sindicatos
continuam a não entender-se…
Antes de falar do salário mínimo, é preciso falar do estado da
economia e dos salários praticados. Considero que o problema mais
grave surgido na sociedade portuguesa nos últimos 12 anos foi a
emigração. Perdemos parte de uma geração, ainda por cima com muitas
formações de base, e isso é a maior tragédia do governo PSD/CDS e
da "troika" que foram criminosos contra os interesses dos
portugueses. Precisamos de travar essa sangria que ainda se
regista, atraindo os que saíram e outros - jovens - que queiram cá
ficar. É preciso romper com a cultura de baixos salários. A lógica
miserabilista de salários que se criou na sociedade portuguesa não
se compadece com um quadro de jovens qualificados e que serão
quadros altamente competentes do futuro em áreas cruciais como a
tecnologia, a inovação e o conhecimento. O impulso recente dado ao
nosso salário mínimo foi positivo, mas a nossa vizinha Espanha fez
agora, de uma só vez, um impulso maior do que o somatório das
nossas atualizações em vários anos (NDR: Dos 735 euros para os 900
euros).
CARA DA NOTÍCIA
De sindicalista a investigador
Manuel Carvalho da Silva nasceu na
freguesia de Viatodos, em Barcelos, a 2 de novembro de 1948. Foi
líder da CGTP-IN durante 25 anos, entre 1986 e 2011. Em
representação da central sindical foi membro do Comité Executivo da
Confederação Europeia de Sindicatos e do Conselho Económico e
Social, onde dirigiu a Comissão Especializada Permanente da
Política Económica e Social. Foi ainda membro do conselho
consultivo da Universidade Aberta e do Instituto da Educação e
Psicologia da Universidade do Minho, e presidente da
Assembleia-Geral do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias
Elétricas do Norte e Centro. Após ter retomado os estudos, Carvalho
da Silva licenciou-se em Sociologia no Instituto Superior de
Ciências do Trabalho e da Empresa da Universidade de Lisboa (2000),
apresentando uma dissertação com o título "Ação social -
transformação e desenvolvimento", abordando problemas laborais
vividos no complexo industrial da Grundig, em Braga e no Vale do
Ave. Dando continuidade à sua formação académica, defendeu em 2007,
também no ISCTE-IUL, a sua dissertação de doutoramento, com o
título "A centralidade do trabalho e ação coletiva - Sindicalismo
em tempo de globalização". Atualmente é investigador do Centro de
Estudos Sociais, sendo coordenador do seu polo de Lisboa. Foi ainda
professor catedrático convidado, durante seis anos, da licenciatura
em Sociologia da Universidade Lusófona.
Nuno Dias da Silva
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