Entrevista

Patrícia Reis
A Interrogação dos Bons Romances

Patrícia Reis2.jpgPatrícia Reis é escritora, editora da revista Egoísta e jornalista há 24 anos. Autora, entre outros, dos romances Antes de Ser Feliz, No Silêncio de Deus e Por Este Mundo Acima, todos com a chancela da D. Quixote, e de uma colecção juvenil, que faz parte do Plano Nacional de Leitura, defende que "Um grande romance é sempre uma interrogação". Em Por Este Mundo Acima, o seu romance mais recente, coloca Lisboa a viver uma situação de catástrofe, para contar uma história que retoma a ideia do bem e do mal. Em ano de crise, Portugal pode encontrar inspiração numa obra que é também sobre a importância da amizade e da superação dos obstáculos.

A entrevista, recebida por e-mail, aqui fica.

O seu mais recente romance Por Este Mundo Acima (D. Quixote) decorre após um desastre que deixa os habitantes de Lisboa sem água, electricidade ou tecnologia. Porque escolheu um cenário de catástrofe para contar a história?

O cenário de catástrofe permitiu-me voltar às coisas básicas e ao exercício da memória que o personagem principal, sobrevivente deste acidente de dimensões devastadoras, tece sobre o que foi a vida antes, a vida que conhecemos hoje com a vertigem dos telemóveis, emails, internet e outras plataformas tecnológicas. É um livro sobre a ideia de bem e do mal, como todos os que escrevi, como aqueles de que gosto desde miúda, mas é também um livro sobre a importância extrema da amizade e da superação dos obstáculos, sejam eles o que forem.

Na tragédia que se abate Por Este Mundo Acima os livros sobrevivem. Os livros são sobreviventes mas também salvadores?

Como dito anteriormente, os livros são uma bóia maravilhosa, não tem buracos, não nos levam ao fundo. Melhor: quando levam ao fundo é por mexerem connosco, por nos interrogarem, por nos fazerem pensar. Esses são os melhores. Um grande romance é sempre uma interrogação. No livro que escrevi os livros são redentores, cristalizam a memória de um tempo que foi, dando um sentido à ideia de Humanidade antes do acidente, ao mesmo tempo que reflectem a consciência de diferentes épocas. Os livros são excelentes bilhetes de viagem: sem sair do mesmo sítio podemos saber tudo sobre o século XIX lendo Dickens. Não é preciso mais que isto. David Lodge, escritor e ensaísta britânico, escreveu um ensaio muito interessante sobre esta ideia de que o escritor é quem, na época em que vive, reflecte melhor a consciência do seu tempo. Eu acredito nesta ideia, faz-me sentido. No livro que escrevi, os diferentes livros são retratos de um mundo que se perdeu e que se pode reconstruir.

Quais são as lições que poderemos tirar da crise que o país atravessa?

Desde que nasci, em 1970, que a palavra "crise" faz parte das conversas de casa. Esta crise que vivemos não é exclusivamente nossa e tão-pouco começou agora, mas sim em 2008. É um ciclo. As pessoas terão de aprender a viver com menos, saber distinguir o prioritário do acessório e, em simultâneo, batalhar por aquilo em que acreditam. Não podem deixar de participar na vida do país. Têm de se manifestar, de intervir. A nossa taxa de abstenção nas eleições - sejam elas o que forem, legislativas, presidenciais... - é uma afronta. De qualquer forma, votando ou não, manifestando-se ou não, apresentando queixas e soluções, o povo queixa-se com enorme à-vontade. A queixa faz parte da nossa vida tal como a crise. São palavras que andam de braço dado. Para as gerações mais novas, esta crise tem um impacto de que só teremos uma noção exacta daqui a algum tempo, no entanto, observando os mais novos, vejo uma pressão terrível, uma ideia triste de futuro, de não terem caminho. Costumo dizer que não temos uma bola de cristal e, por isso, não vale a pena fazer futurologia, é preciso que os miúdos escolham o que querem, o que os faz mais feliz. A ideia de que serão os licenciados do ordenado mínimo nacional, como está a acontecer neste momento, pode ser errada: os tempos mudam. Por outro lado, as novas gerações, ao contrário da minha, foram bombardeadas por esta onda de consumo e possuir, ganhar, conquistar algo - um carro, uma boneca, uma consola, um livro - como um dado adquirido, não um desejo, algo que implica um objectivo a cumprir. Talvez isso mude. O consumismo é uma doença terrível. E a facilidade com que as pessoas tiveram acesso ao crédito e ao endividamento não contribuiu minimamente para uma certa razoabilidade de vida.

A infância teve um papel importante para se ter tornado escritora?

Tudo começou com o meu fascínio pelas teclas da máquina de escrever e pela colecção de livros do meu tio-avô. A oferta de livros era, então, muito menor. Lia os mesmos livros duas e três vezes. Cansada dessa rotina comecei, de forma algo envergonhada no início, a inventar as minhas histórias que, de certa forma, reflectiam a minha vida, o que estava à volta. A infância pode ser um período muito marcante pela positiva ou pela negativa. Tive os dois lados da moeda, mas o primeiro salvou-me de tudo o resto e, nesse contexto feliz de "positivo", os livros foram uma bóia extraordinária. Assim, pelos sete ou oito anos não dizia que queria ser escritora, mas já o pensava.

O Diário de Micas foi escrito para ser um presente para os seus filhos, mas acabou por fazer parte do Plano Nacional de Leitura. Que tipo de desafio é escrever para crianças?

É um desafio grande por causa do discurso, do tipo de vocabulário, do enredo que tem de se manter sempre com algum suspense, de forma a que não percam o interesse. Ao mesmo tempo, no caso de O Diário do Micas, é um pretexto maravilhoso para escrever sobre os espaços museológicos do país e escrever sobre a História sem a chatice dos manuais que, ainda hoje, são uma compilação de datas e de outras coisas que considero pouco cativantes para os mais novos. Claro que o gosto pela História fica nas mãos do professor e, no meu caso, tive a sorte de ter uma professora fora de série.

O que é que romance tem de ser para a arrebatar?

Depende. Somos leitores diferentes todos os dias. Posso ficar feliz por ler um ensaio, um livro de viagens, um romance, uma biografia, um livro de poesia. Qualquer coisa que me conte uma história bem contada é apelativo. Ao mesmo tempo, como dito anteriormente, os romances que nos interrogam, que nos fazem pensar, são sempre os mais interessantes. O mesmo sucede com a poesia. Procuro não ter preconceitos quanto aos livros e à música - uma parte essencial da minha vida já que não faço nada sem música. Sair da nossa zona de conforto leva-nos, muitas vezes, a encontros felizes. Um exemplo? Sugeriram que lê-se um ensaio que, nas livrarias portuguesas, está catalogado e arrumado como um livro de auto ajuda. É de uma norte americana, Susan Jeffers, chama-se "Apesar do Medo". A autora tem uma série de estudos na área da psicologia cognitiva e na forma como as relações inter-pessoais se desenvolvem. À partida não o compraria. Li e gostei muito.

Tem favoritos entre os seus livros?

Não. Os livros são como os filhos. Todos diferentes, todos igualmente amados. O favoritismo, no meu caso, não se aplica.

O escritor António Lobo Antunes diz que andamos todos no mundo à procura de ser amados. Falamos muito de amor, mesmo quando não se fala dele?

Só falamos e procuramos amor mesmo que o possamos disfarçar com outras palavras. Nesse aspecto o português é um idioma muito feliz, permite variantes múltiplas. Portanto, quando procurámos aprovação o que queremos é aceitação e isso significa que desejamos que gostem de nós ou de algo que fizemos e tudo isto, em termos de uma equação não matemática, leva ao amor. É uma inevitabilidade. Não nascemos, não estamos formatados, para passar de nível na vida sem a ajuda dos outros, sem o amor dos outros. A solidão é o acto mais desumano que conheço, por ser de uma crueldade infinita. O amor implica reciprocidade e esta é uma das minhas palavras preferidas: dar e receber.

Qual é a análise que faz dos anos como editora da revista Egoísta?

Fazer a Egoísta, propriedade do Grupo Estoril-Sol, é um privilégio por ser uma publicação que dá primazia às curtas ficções e aos portfolios de artistas que, de outra forma, não tinham como os publicar. Na Egoísta, ao longo destes 11 anos, escreveram nomes conhecidos e desconhecidos, alguns que agora são considerados como promessas ou como garantias futuras de qualidade literária. É, por isso, algo de que me orgulho, sem qualquer arrogância. Há uma noção de serviço à cultura na Egoísta e na equipa que a faz, o atelier 004, que não vejo muito por aí. Ao contrário de outros, considero que o conceito da revista não está esgotado, está em plena transformação a cada edição e, mesmo que seja em papel e não um suporte multimédia cheio de coisas que mexem, posso garantir, pela correspondência diversa que recebemos, que chegamos às pessoas de uma forma única.

Está de "acordo" com o novo acordo ortográfico?

Não estou de acordo, existem vários erros e o princípio que levou a este acordo, e ao dinheiro que se gastou para chegarmos aqui, é algo que me faz muita impressão. Dito isto, sei que a língua tem uma evolução natural e que teremos de viver com a incorporação de algumas mudanças. Fernando Pessoa, quando escreveu O Livro do Desassossego, fê-lo com «c» cedilhado. Hoje, tal não nos ocorre, pois não?

A escrita é para si uma necessidade ou um prazer?

A escrita faz parte da minha vida, sempre fez, como a leitura. Acresce que tenho carteira profissional de jornalista há 24 anos, logo não me imagino sem escrever. O lado ficcional da escrita é uma necessidade e também uma forma de terapia, de certa forma, já que vou conseguindo transpor para os livros os meus receios, as minhas dúvidas, as minhas interrogações.

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