José Manuel Silva, Bastonário da Ordem dos Médicos
«Cortes só vão aumentar gastos com saúde no futuro»
O Bastonário da Ordem dos Médicos afirma que a
austeridade está a fazer mossa no SNS e a cavar ainda mais a
diferenciação entre uma saúde para ricos e para pobres. José Manuel
Silva considera urgente rever os "numerus clausus" dos cursos de
Medicina, caso contrário, dentro de uma década cerca de 9 mil
profissionais estarão no desemprego.
Escreve
na mensagem de boas vindas do sítio da Ordem que os problemas que
assolam a classe são imensos, elencando «o desemprego médico, a
desestruturação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), as dificuldades
de acesso aos medicamentos, a pressão burocrática e administrativa
sobre a Medicina de proximidade». Pela descrição parece um trabalho
hercúleo e um setor submerso em problemas. É assim?
Os desafios que se colocam são,
de facto, muitos e reforçam a obrigação de a Ordem estar do lado
dos cidadãos na defesa do SNS e no cumprimento dos seus preceitos
constitucionais.
Iniciou o
seu segundo mandato como Bastonário há poucos meses. No tempo que
leva no cargo, em que medida se tem degradado a qualidade do SNS e
a prestação de cuidados de saúde?
A degradação ocorreu na mesma
proporção dos cortes verificados e é resultado da redução de
investimento no SNS. É certo que existiram poupanças
significativas, como foi o caso do preço dos medicamentos
(sendo uma medida que elogio, porque tornou mais acessível os
medicamentos não inovadores aos utentes e ao SNS), a redução dos
vencimentos dos profissionais e os custos operacionais no
funcionamento de instituições de saúde, mas as consequências têm
sido terríveis. Desqualificou-se o trabalho médico, são diárias as
falhas com o material de uso corrente e todos os dias são adiadas
cirurgias por falta de material. Aos que contestam estas
afirmações com estatísticas, eu respondo com uma questão: e
quem audita essas estatísticas?
Está a
tentar dizer que os números são manipulados?
As estatísticas são facilmente
manipuláveis com o objetivo de transmitir uma visão sempre
positiva, mas a perceção que a população tem é que a realidade não
é assim. Veja o exemplo de uma patologia benigna recorrente: a
excisão de quistos sebáceos que passou a ser feita em ambulatório e
que mostra um aumento de produtividade no setor ao nível dos atos
cirúrgicos.
No fundo, são estatísticas
grosseiras que parecem indiciar uma melhoria no SNS, quando não é o
que se verifica. O governo trabalha para as estatísticas,
aumentando os registos, através de atos médicos mais simples.
Diz-se
que os serviços de urgência recuaram 20 anos em termos de
capacidade de resposta, tendo os picos de gripe agudizado o
problema, com situações de 10 horas de espera. A falta de meios e o
desinvestimento explicam tudo?
De uma forma geral, tornou-se
mais difícil a acessibilidade da população ao SNS, com o
progressivo empobrecimento dos portugueses, traduzido na retirada
de comparticipação do Estado no transporte dos pacientes até às
unidades hospitalares. Os exemplos sucedem-se: há grávidas de alto
risco que prescindem de irem às consultas e nas urgências do
hospital de Aveiro vi com os meus olhos 39 doentes internados que
se encontravam há 3 dias em macas, numa unidade hospitalar com uma
ocupação de 200 por cento. Esta é a imagem do SNS que o Ministério
da Saúde esconde e que a Ordem tem procurado denunciar no périplo
que tenho feito pelo país.
Denunciou
recentemente que há pessoas sem acesso a medicamentos para doentes
com cancro ou HIV, com diferenciação regional de hospital para
hospital. O artigo 64.º da Constituição, que diz que «todos têm
direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover»,
está a ser cumprido?
Há casos dramáticos em termos de
saúde pública e que são anticonstitucionais. No caso dos pacientes
com HIV eles levam a medicação para curtos período de aplicação, o
que os obriga a deslocações frequentes até aos hospitais. Esse
facto, acaba por impedir que muitos adiram e cumpram integralmente
a terapia por não suportarem as despesas das deslocações para
levantar a terapêutica prescrita. No fundo, a prática que este
governo tem aplicado gera pequenas poupanças no curto prazo, mas só
vai é contribuir para aumentar os gastos com cuidados de saúde no
futuro. Deixe-me dar-lhe mais um exemplo: há doentes com hepatite C
a serem condenados à morte.
Quer
concretizar?
Aprovou-se medicação tardia que
já não é inovadora e quando surgem complicações acontece a doença
evoluir ou para hepatoma ou cirrose, tornando a progressão da
doença inexorável, o que torna uma enfermidade crónica curável em
algo irrecuperável e fatal.
A
austeridade aumentou a sensação de que há uma saúde para ricos e
uma saúde para pobres?
Sem dúvida, as assimetrias
aumentaram. Temos uma saúde a duas velocidades. Pior: perdeu-se o
conceito de solidariedade social associada à prestação de saúde, o
que fere o meu humanismo e a minha ética médica. Eu entendo que os
mais desfavorecidos, ou seja, aqueles que nasceram virados para a
sombra, têm o direito de receber a solidariedade dos que tiveram a
felicidade de nascer virados para o sol. E não é isto que
acontece. Os mais desfavorecidos não estão a ter a mesma
acessibilidade aos serviços de que carecem, nem mesmo à medicação
inovadora de que precisam.
O elo
mais fraco são os de sempre…
Três Institutos
Portugueses de Oncologia (IPO's) reclamaram que a falta de meios
estava a afetar a sua capacidade de resposta, mas a autorização
da tutela para contratar pessoal não chegou. E quem recorre
aos institutos de oncologia? A população que não tem possibilidades
económicas, já que a franja mais favorecida sempre pode escapar
para a medicina privada.
Diz que
temos médicos especialistas acima das necessidades. Fazem falta
mais clínicos gerais?
Um estudo da Universidade de
Coimbra aponta que em 2025 teremos excesso de especialistas e cerca
de 9 mil desempregados na profissão. Temos carência de médicos de
família e geral, mas essa carência vai ser suprida em breve pelos
400 jovens que são formados todos os anos. É da maior urgência
definir os "numerus clausus" rapidamente, porque estes estão acima
das necessidades, já que os seus efeitos práticos só surtem efeito
dentro de 10 anos.
O que é
possível fazer no imediato?
Para já, defendo a suspensão de
15% das vagas dos cursos de medicina destinados a já licenciados,
como medida para travar o excesso de profissionais que se prevê
virá a existir no país. Tal representaria menos 300 vagas por ano
nas faculdades.
Já
sensibilizou a tutela para essa situação?
Aguardamos ser recebidos pelo
ministro Nuno Crato e na ocasião vamos procurar sensibilizá-lo para
esta questão com argumentos concretos e inequívocos. A
começar pela formação excedentária. Cada médico custa 500 mil euros
ao Estado em formação. Se multiplicarmos pelos 9 mil que vamos ter
a mais na próxima década, vamos gastar 4,5 milhões de euros em
médicos para o desemprego ou para exportação. Não faz sentido, para
mais num país na bancarrota.
Há
mercado no estrangeiro para os médicos portugueses?
Um médico português tem sempre
mercado na Europa, até porque a formação portuguesa, apesar de ser
caríssima para os cofres do Estado, é de qualidade, por isso, é
reconhecida além-fronteiras.
Teme com
isto que a profissão perca prestígio?
A medicina já não é um curso de
elite. Os jovens estão a escolher menos este curso. As médias
baixaram e o desemprego médico já existe, pontualmente.
A
profissão deixou de ser bem remunerada e o emprego garantido. Isso
explica a fuga de médicos do público para o privado?
Os cortes nos complementos
explicam em parte isso, mas há muitos médicos que saíram para o
privado e querem voltar para o público. As remunerações já não são
aquilo que eram. Muitos preferem fazer as malas e tentar a sua
sorte no estrangeiro para resolver dificuldades financeiras que
surgem. O panorama remuneratório no setor da saúde atingiu um
patamar que o comum cidadão nem imagina.
Diz que
esta é a profissão mais escrutinada e considera o sistema de
prescrição eletrónica um verdadeiro "Big Brother". A transparência
não acaba por expor a privacidade dos profissionais?
Não é a perda de privacidade que
nos faz recear. Nós apoiamos o processo de informatização.
Reconhecemos que tem sido útil no combate à fraude na saúde, mas
que, no máximo, apanhou 30 ou 40 médicos, o que é cerca de 000,1%
da classe, algo pouco relevante e sem expressão. Eu regozijo-me por
esta ser, provavelmente, a profissão mais escrutinada do país para
que não restem dúvidas nenhumas do ponto de vista da ética, da
legalidade e da qualidade. A população deve confiar totalmente na
prescrição médica e a informática confere transparência a todo o
processo, dissipando qualquer dúvida que ainda possa subsistir num
alegado relacionamento promíscuo entre os médicos e a indústria
farmacêutica. Bem sei que criminosos há em todas as
profissões…
Portanto,
a informática não é uma força de bloqueio, pelo contrário…
A minha única razão de queixa
prende-se com os bloqueios na utilização da rede informática. O
centro de saúde de Beja suspendeu a sua atividade durante uma
semana e só passado esse período retomou o seu trabalho, mas com
registos manuais. Isto é o sinal da esquizofrenia informática no
Ministério da Saúde que está a tornar a vida dos médicos num
inferno.
Os
doentes queixam-se que a tecnologia distanciou médico e doente.
Concorda?
Sim. Os médicos são uma espécie
de burocratas informáticos, em que o centro da consulta passou a
ser o computador e não o doente.
A
imprensa anuncia que o ministério vai anunciar mais medidas para
controlar os médicos, nomeadamente a avaliação do desempenho. Como
reage?
Sem alarmismos, estamos
disponíveis para dialogar tranquilamente com o Ministério da Saúde,
mas custa-me a crer que a tutela ponha em casa a idoneidade da
Ordem na formação médica. O ministério não sabe o que é formação
médica.
Um
gestor, como Paulo Macedo, pode ser um bom ministro da saúde ou
defende um médico na cadeira do poder da Avenida João
Crisóstomo?
Não é possível ter-se
sensibilidade para o setor da saúde se não se for um profissional
da área. Falta a vivência de lidar com os doentes todos os dias.
Sem desprimor para o "core business" de Paulo Macedo, sou da
opinião que um médico tem outra sensibilidade.
Recebeu
muitas críticas por ter defendido um imposto sobre o "fast food".
Sentiu-se vencido pela indústria alimentar?
Está cientificamente provado que
é possível modelar o comportamento das pessoas através da política
fiscal, como já sucede com o tabaco. Acontece que estas restrições
ao tabaco já fazem parte da nossa cultura. O princípio que se
aplicaria ao "fast food" seria o mesmo. Só que enquanto no tabaco
foi a indústria tabaqueira a manifestar-se, neste caso foi a
indústria agro-alimentar a movimentar os seus interesses. O lóbi da
indústria agro-alimentar é ainda mais poderoso do que o da
indústria farmacêutica.
Acha que
o debate que lançou não foi em vão?
Acho que foi oportuno. É preciso
lançar impostos inteligentes para suscitar ganhos em saúde e
finanças, reduzindo despesas nesta área. O problema é que o debate
foi inquinado por um erro de avaliação. Avançaram a teoria que o
"fast food", por ser mais barato, permitiria aos pobres ter mais
facilidade para consumir estes produtos. O que é uma falácia.
Cozinhar em casa é que é o mais barato e as refeições podem ser de
grande qualidade, a baixo preço. É possível almoçar ou jantar por 1
euro.
O imposto
sobre o "fast food" devia ser extensível a outros produtos nocivos
para a saúde?
Sim. Vários produtos, como o sal,
a gordura saturada, o açúcar ou os refrigerantes, deviam ser
taxados com um imposto próprio, por serem prejudiciais à saúde e
sem valor alimentar. Penso que o debate está lançado e a cultura
vai evoluir nesse sentido.
É irmão
do reitor da Universidade Coimbra, João Gabriel Silva. Para além
disso, os outros seus três irmãos são todos doutorados. É o
espírito e a cultura inconformista e de exigência na sua educação
que transmitiu aos seus filhos? Uma delas quer seguir medicina,
segundo sei…
É esta a cultura que procurei e
procuro incutir nos meus filhos, questionando dogmas aparentes. A
educação e a cultura começam em casa. Os valores do rigor, da
exigência e da qualidade são um bom ponto de partida e meio caminho
andado para ter estudantes com bom aproveitamento.
As
vocações não devem ser condicionadas pelas saídas
profissionais?
O mercado de trabalho está
difícil em todas as profissões, eventualmente com a exceção da
informática, onde o caminho está algo mais facilitado.
A vocação deve prevalecer, sob pena de suscitar frustrações ainda
maiores. Se um estudante sente vocação para seguir Medicina, deve
fazê-lo, sem hesitações. Até porque, eu acredito, que os bons têm
lugar, em qualquer lado.
Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados