Entrevista

José Manuel Castanheira assinala 40 anos de carreira
Tradição e vanguarda na arte de criar cenários
IMG_7326.jpgÉ um dos mais reconhecidos arquitetos e cenógrafos portugueses, com um percurso internacional que o torna numa das principais figuras mundiais das artes cenográficas. José Manuel Castanheira acaba de apresentar o projeto Academia Internacional de Cenografia e de editar uma obra monográfica que passa em revista 40 anos de atividade.
Em entrevista ao Ensino Magazine, o cenógrafo fala da dificuldade em eleger momentos altos numa carreira cheia de sucessos, nas artes e no ensino, e defende um compromisso entre tradição e vanguarda na missão de fazer do palco um lugar mais mágico.
O livro "Castanheira - Cenografia"  é uma retrospetiva dos seus 40 anos de carreira (1973 - 2013), uma seleção de cerca de uma centena de cenografias das mais de 200 que já fez. Quem era o jovem que enveredou pelo caminho das artes cenográficas?
Não sei definir em rigor quem era o jovem que começou estas coisas. Mas recordo algumas situações que acabaram por sedimentar aquilo que terá sido a génese da minha carreira na cenografia, independentemente de acreditarmos que existe essa coisa da vocação. Nasci em Castelo Branco e vivi a minha infância entre essa cidade, Escalos de Cima, onde estudei e a minha mãe era professora, e outras aldeias da região. Nessa primeira fase, praticamente desde que nasci, mergulhei num mundo imaginário porque os meu pais organizavam parte das festas populares da aldeia, que aconteciam na minha rua ou até na minha pequena quinta. Eu nasci nesse ambiente. Por outro lado, a minha mãe, como professora primária, também fazia eventos escolares festivos. Outra coisa que recordo é o facto do meu pai ser amigo de um grande pirotécnico de Alpedrinha, que todo os anos montava na nossa quinta peças fabulosas de pirotecnia, cheias de cor e fantasia. Fascinavam-me pela simples força do fogo. Mais tarde veio o liceu na cidade de Castelo Branco e um conjunto de movimentos por onde passei.
Foi um somatório de experiências...
Tudo isso foi um somatório de experiências que, mesmo de modo inconsciente, poderão ter sido potencializadas mais tarde na minha carreira. Depois é a história que costumo contar, o facto de ter conhecido na Costa da Caparica aquela que é hoje a minha mulher, que fazia teatro. Isto em 1970, mais ou menos. De repente mergulho num grupo de teatro amador, e, numa sucessão de acasos, começo a fazer cenografia já com carácter quase profissional. O primeiro cenário mais oficial que assinei foi em 1973, na peça "Os Pequenos Burgueses" [de Máximo Gorki, encenada por Fernanda Lapa]. Tinha fascínio pelo espetáculo - pelo palco - e fui evoluindo apoiado no autodidatismo. Mais tarde tirei o curso de Arquitetura.
Quais são as cenografias que mais o marcaram ao longo da sua carreira?
É sempre muito difícil responder a essa pergunta. Confrontei-me com o problema ao fazer uma retrospetiva para a edição do livro. Fiz mais de 200 cenografias para teatro, fora as que fiz para cinema, ópera, dança e outro tipo de eventos. Todas - sem exceção - foram marcantes, de um modo ou de outro. Ou porque foram muito bem recebidas pelo público, ou porque foram mal recebidas pelo público; ou porque há uma particularidade qualquer no processo criativo que me emociona muito e que me transporta para outras coisas. Há múltiplos aspetos, até mesmo o lugar onde o trabalho foi feito. Por exemplo, jamais irei esquecer o dia em que pela primeira vez aterrei no Rio de Janeiro para fazer um espetáculo. Ou quando o Ballet Nacional de Espanha me convidou para participar naquele que é um dos grandes baluartes da cultura espanhola, a Carmen. Mas houve tantas outras coisas, também aqui em Portugal. Essa pergunta nunca terá resposta.
Nem sempre terá sido muito clara a definição das fronteiras e possibilidades da cenografia. Essa situação dificultou a afirmação dos profissionais que se dedicam a esta arte?
Dificultou. A situação foi evoluindo, mas ainda agora, com a trajetória que tem a minha carreira, há coisas que me preocupam. Uma delas é a definição da carreira profissional de cenógrafo, sobretudo por causa do futuro dos jovens que se dedicam a essa atividade. Olhando para 40 anos de carreira numa profissão praticada em todo o mundo, com amigos em todos os continentes, considero que o problema é generalizado, mas com enfoque em alguns países mais débeis. É o caso de Portugal. A cenografia é uma profissão, mas não tem uma definição estatutária, não tem proteção de qualquer tipo - nem social nem nada - porque ela apenas existe como uma figura. Se a quiser registar, não existe essa categoria em lado nenhum. Nós estamos nessa luta. Faz dois anos em maio que foi criada a Associação Portuguesa de Cenografia, a que atualmente presido. Entre várias tarefas prioritárias, está a criação de um estatuto que, o mais breve possível, nos possa conduzir à credibilização da profissão de cenógrafo e à sua classificação definitiva. É uma profissão muito abrangente, que emana do teatro mas hoje se estende a um leque variadíssimo de veículos: cinema, dança, vários tipos de televisão, diversas fórmulas teatrais, publicidade, eventos, todo o universo digital, exposições, museus...
Lutou para que houvesse uma Licenciatura em Cenografia em Portugal, na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, onde leciona.
E continuo a lutar. A licenciatura foi criada há quatro anos e é única na Europa, no âmbito de uma faculdade de arquitetura. Há dificuldade no entendimento da necessidade de criação desta área de conhecimento. O que tivemos até então foi formação em arquitetura. Bom, a arquitetura pressupostamente é uma área cientifica artística - embora também essa questão se discuta -, no sentido da criação de espaços para a vida real. Mas hoje há uma falência da arquitetura pura e dura, de construção, e haverá forçosamente menos trabalho nos próximos anos. Por outro lado, a representação ficcional e o lugar onde ela acontece é extremamente útil para, por exemplo, analisarmos com frieza e com distanciamento aquilo que tem sido a nossa vida. E daí podermos tirar ilações para dias futuros.
E qual tem sido a resposta à licenciatura? Os jovens terão oportunidades profissionais em Portugal?
Bem, uma coisa é certa. Alguns cursos, tradicionalmente muito procurados pelos jovens, estão em retrocesso; outros estão em sentido contrário. Penso que a tarefa mais urgente é perceber, no futuro imediato, a médio e longo prazo, o que seria mais útil para o país em termos de formação. E aí a cenografia iria aparecer com relevo, de certeza absoluta.
Tem tido uma carreira no ensino em paralelo com a produção cenográfica. O que o motiva nessa vertente pedagógica?
Dei aulas em 13 países, de modo diverso. É uma realidade que conheço bastante bem. Motiva-me sobretudo o combate ao imediatismo. A cenografia é uma coisa extremamente complexa. Exige que uma pessoa mergulhe num determinado tipo de saberes que remete para as heranças da tradição. Isto porque muitas vezes confundimos evolução do conhecimento com mera evolução de ferramentas. As ferramentas são importantes, mas não são o fundamental. Refiro-me aqui à questão do mundo digital, da computorização gráfica, que é algo extraordinário, mas não passa de uma ferramenta. O fundamental não é isso, é a estrutura do pensamento, a imaginação, e portanto a formação tem de se centrar num conjunto de saberes mais humanistas e mais universalizantes. Nesta fase, é isso que mais me preocupa, porque acho que é aquilo que devo exigir de mim próprio; após quase uma vida inteira a fazer, agora é a altura de partilhar a minha experiência com os mais jovens.
É esse o grande desafio da cenografia atual, conciliar tradição e novas ferramentas?
É um dos desafios. Porque existe esse perigo latente, que não é específico da cenografia, da ferramenta ultrapassar o essencial. Isso é um problema da civilização propriamente dita. É o confronto entre o homem e a máquina. Temos de ter a capacidade de colocar a máquina no seu devido lugar. No dia em que esta ordem se inverter - e começamos a ver alguns sinais nesse sentido -, esta civilização, a mim, não me interessa.
Foi este mês apresentada a Academia Internacional de Cenografia, a instalar na aldeia histórica de Idanha-a-Velha (concelho de Idanha-a-Nova). Qual o potencial  deste projeto?
A Academia vai ficar instalada num lugar tranquilo, por excelência propício a colocar os cenógrafos de todo o mundo em diálogo; ou seja, a potenciar a investigação e partilha de conhecimentos. Já começámos a fazê-lo no ano passado, ainda sem a Academia [referência ao SCENA 2013 - Encontros Internacionais de Cenografia, que decorreu em Idanha-a-Velha com direção artística de José Manuel Castanheira]. Simbolicamente, esse lugar representa a partilha permanente - e só assim entendo a evolução - entre tradição e vanguarda. Os valores tradicionais, seja no domínio da arte popular ou patrimonial, estão bem conservados em Idanha. Tudo isso são aspetos proporcionados pelo território que favorecem a instalação da Academia Internacional de Cenografia e o desenvolvimento dos seus projetos.
Isto numa altura em que as áreas da ciência, arte e cultura atravessam momentos difíceis. É um problema de má cenografia ou de maus dramaturgos?
É um problema cultural de base. É um problema de não entendimento de quais são os verdadeiros valores que devem estar na base de um real desenvolvimento. Ou seja, é um não entendimento do que é essencial para que as pessoas sejam felizes.
Teatro, cinema, televisão, exposições... qual destes palcos prefere habitar?
É uma resposta fácil: o teatro. Cerca de 80% da minha atividade na cenografia foi para teatro.
Está a trabalhar em novas produções que possa, desde já, revelar?
Neste momento estamos a preparar no Teatro Municipal de Almada a peça "Tartufo", de Molière. Estreia no dia 7 de março.



Tiago Carvalho
Tiago Carvalho
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
 
Unesco.jpg LogoIPCB.png

logo_ipl.jpg

IPG_B.jpg logo_ipportalegre.jpg logo_ubi_vprincipal.jpg evora-final.jpg ipseutubal IPC-PRETO