José Manuel Castanheira assinala 40 anos de carreira
Tradição e vanguarda na arte de criar cenários
É um dos mais reconhecidos arquitetos e cenógrafos
portugueses, com um percurso internacional que o torna numa das
principais figuras mundiais das artes cenográficas. José Manuel
Castanheira acaba de apresentar o projeto Academia Internacional de
Cenografia e de editar uma obra monográfica que passa em revista 40
anos de atividade.
Em entrevista ao Ensino Magazine,
o cenógrafo fala da dificuldade em eleger momentos altos numa
carreira cheia de sucessos, nas artes e no ensino, e defende um
compromisso entre tradição e vanguarda na missão de fazer do palco
um lugar mais mágico.
O livro
"Castanheira - Cenografia" é uma retrospetiva dos seus 40
anos de carreira (1973 - 2013), uma seleção de cerca de uma centena
de cenografias das mais de 200 que já fez. Quem era o jovem que
enveredou pelo caminho das artes cenográficas?
Não sei definir em rigor quem era
o jovem que começou estas coisas. Mas recordo algumas situações que
acabaram por sedimentar aquilo que terá sido a génese da minha
carreira na cenografia, independentemente de acreditarmos que
existe essa coisa da vocação. Nasci em Castelo Branco e vivi a
minha infância entre essa cidade, Escalos de Cima, onde estudei e a
minha mãe era professora, e outras aldeias da região. Nessa
primeira fase, praticamente desde que nasci, mergulhei num mundo
imaginário porque os meu pais organizavam parte das festas
populares da aldeia, que aconteciam na minha rua ou até na minha
pequena quinta. Eu nasci nesse ambiente. Por outro lado, a minha
mãe, como professora primária, também fazia eventos escolares
festivos. Outra coisa que recordo é o facto do meu pai ser amigo de
um grande pirotécnico de Alpedrinha, que todo os anos montava na
nossa quinta peças fabulosas de pirotecnia, cheias de cor e
fantasia. Fascinavam-me pela simples força do fogo. Mais tarde veio
o liceu na cidade de Castelo Branco e um conjunto de movimentos por
onde passei.
Foi um
somatório de experiências...
Tudo isso foi um somatório de
experiências que, mesmo de modo inconsciente, poderão ter sido
potencializadas mais tarde na minha carreira. Depois é a história
que costumo contar, o facto de ter conhecido na Costa da Caparica
aquela que é hoje a minha mulher, que fazia teatro. Isto em 1970,
mais ou menos. De repente mergulho num grupo de teatro amador, e,
numa sucessão de acasos, começo a fazer cenografia já com carácter
quase profissional. O primeiro cenário mais oficial que assinei foi
em 1973, na peça "Os Pequenos Burgueses" [de Máximo Gorki, encenada
por Fernanda Lapa]. Tinha fascínio pelo espetáculo - pelo palco - e
fui evoluindo apoiado no autodidatismo. Mais tarde tirei o curso de
Arquitetura.
Quais são
as cenografias que mais o marcaram ao longo da sua carreira?
É sempre muito difícil responder
a essa pergunta. Confrontei-me com o problema ao fazer uma
retrospetiva para a edição do livro. Fiz mais de 200 cenografias
para teatro, fora as que fiz para cinema, ópera, dança e outro tipo
de eventos. Todas - sem exceção - foram marcantes, de um modo ou de
outro. Ou porque foram muito bem recebidas pelo público, ou porque
foram mal recebidas pelo público; ou porque há uma particularidade
qualquer no processo criativo que me emociona muito e que me
transporta para outras coisas. Há múltiplos aspetos, até mesmo o
lugar onde o trabalho foi feito. Por exemplo, jamais irei esquecer
o dia em que pela primeira vez aterrei no Rio de Janeiro para fazer
um espetáculo. Ou quando o Ballet Nacional de Espanha me convidou
para participar naquele que é um dos grandes baluartes da cultura
espanhola, a Carmen. Mas houve tantas outras coisas, também aqui em
Portugal. Essa pergunta nunca terá resposta.
Nem
sempre terá sido muito clara a definição das fronteiras e
possibilidades da cenografia. Essa situação dificultou a afirmação
dos profissionais que se dedicam a esta arte?
Dificultou. A situação foi
evoluindo, mas ainda agora, com a trajetória que tem a minha
carreira, há coisas que me preocupam. Uma delas é a definição da
carreira profissional de cenógrafo, sobretudo por causa do futuro
dos jovens que se dedicam a essa atividade. Olhando para 40 anos de
carreira numa profissão praticada em todo o mundo, com amigos em
todos os continentes, considero que o problema é generalizado, mas
com enfoque em alguns países mais débeis. É o caso de Portugal. A
cenografia é uma profissão, mas não tem uma definição estatutária,
não tem proteção de qualquer tipo - nem social nem nada - porque
ela apenas existe como uma figura. Se a quiser registar, não existe
essa categoria em lado nenhum. Nós estamos nessa luta. Faz dois
anos em maio que foi criada a Associação Portuguesa de Cenografia,
a que atualmente presido. Entre várias tarefas prioritárias, está a
criação de um estatuto que, o mais breve possível, nos possa
conduzir à credibilização da profissão de cenógrafo e à sua
classificação definitiva. É uma profissão muito abrangente, que
emana do teatro mas hoje se estende a um leque variadíssimo de
veículos: cinema, dança, vários tipos de televisão, diversas
fórmulas teatrais, publicidade, eventos, todo o universo digital,
exposições, museus...
Lutou
para que houvesse uma Licenciatura em Cenografia em Portugal, na
Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, onde
leciona.
E continuo a lutar. A
licenciatura foi criada há quatro anos e é única na Europa, no
âmbito de uma faculdade de arquitetura. Há dificuldade no
entendimento da necessidade de criação desta área de conhecimento.
O que tivemos até então foi formação em arquitetura. Bom, a
arquitetura pressupostamente é uma área cientifica artística -
embora também essa questão se discuta -, no sentido da criação de
espaços para a vida real. Mas hoje há uma falência da arquitetura
pura e dura, de construção, e haverá forçosamente menos trabalho
nos próximos anos. Por outro lado, a representação ficcional e o
lugar onde ela acontece é extremamente útil para, por exemplo,
analisarmos com frieza e com distanciamento aquilo que tem sido a
nossa vida. E daí podermos tirar ilações para dias futuros.
E qual
tem sido a resposta à licenciatura? Os jovens terão oportunidades
profissionais em Portugal?
Bem, uma coisa é certa. Alguns
cursos, tradicionalmente muito procurados pelos jovens, estão em
retrocesso; outros estão em sentido contrário. Penso que a tarefa
mais urgente é perceber, no futuro imediato, a médio e longo prazo,
o que seria mais útil para o país em termos de formação. E aí a
cenografia iria aparecer com relevo, de certeza absoluta.
Tem tido uma carreira no ensino
em paralelo com a produção cenográfica. O que o motiva nessa
vertente pedagógica?
Dei aulas em 13 países, de modo
diverso. É uma realidade que conheço bastante bem. Motiva-me
sobretudo o combate ao imediatismo. A cenografia é uma coisa
extremamente complexa. Exige que uma pessoa mergulhe num
determinado tipo de saberes que remete para as heranças da
tradição. Isto porque muitas vezes confundimos evolução do
conhecimento com mera evolução de ferramentas. As ferramentas são
importantes, mas não são o fundamental. Refiro-me aqui à questão do
mundo digital, da computorização gráfica, que é algo
extraordinário, mas não passa de uma ferramenta. O fundamental não
é isso, é a estrutura do pensamento, a imaginação, e portanto a
formação tem de se centrar num conjunto de saberes mais humanistas
e mais universalizantes. Nesta fase, é isso que mais me preocupa,
porque acho que é aquilo que devo exigir de mim próprio; após quase
uma vida inteira a fazer, agora é a altura de partilhar a minha
experiência com os mais jovens.
É esse o
grande desafio da cenografia atual, conciliar tradição e novas
ferramentas?
É um dos desafios. Porque existe
esse perigo latente, que não é específico da cenografia, da
ferramenta ultrapassar o essencial. Isso é um problema da
civilização propriamente dita. É o confronto entre o homem e a
máquina. Temos de ter a capacidade de colocar a máquina no seu
devido lugar. No dia em que esta ordem se inverter - e começamos a
ver alguns sinais nesse sentido -, esta civilização, a mim, não me
interessa.
Foi este
mês apresentada a Academia Internacional de Cenografia, a instalar
na aldeia histórica de Idanha-a-Velha (concelho de Idanha-a-Nova).
Qual o potencial deste projeto?
A Academia vai ficar instalada
num lugar tranquilo, por excelência propício a colocar os
cenógrafos de todo o mundo em diálogo; ou seja, a potenciar a
investigação e partilha de conhecimentos. Já começámos a fazê-lo no
ano passado, ainda sem a Academia [referência ao SCENA 2013 -
Encontros Internacionais de Cenografia, que decorreu em
Idanha-a-Velha com direção artística de José Manuel Castanheira].
Simbolicamente, esse lugar representa a partilha permanente - e só
assim entendo a evolução - entre tradição e vanguarda. Os valores
tradicionais, seja no domínio da arte popular ou patrimonial, estão
bem conservados em Idanha. Tudo isso são aspetos proporcionados
pelo território que favorecem a instalação da Academia
Internacional de Cenografia e o desenvolvimento dos seus
projetos.
Isto numa
altura em que as áreas da ciência, arte e cultura atravessam
momentos difíceis. É um problema de má cenografia ou de maus
dramaturgos?
É um problema cultural de base. É
um problema de não entendimento de quais são os verdadeiros valores
que devem estar na base de um real desenvolvimento. Ou seja, é um
não entendimento do que é essencial para que as pessoas sejam
felizes.
Teatro,
cinema, televisão, exposições... qual destes palcos prefere
habitar?
É uma resposta fácil: o teatro.
Cerca de 80% da minha atividade na cenografia foi para
teatro.
Está a
trabalhar em novas produções que possa, desde já, revelar?
Neste momento estamos a preparar
no Teatro Municipal de Almada a peça "Tartufo", de Molière. Estreia
no dia 7 de março.
Tiago Carvalho
Tiago Carvalho