“Pedagogia (a)crítica no Superior” (VIII)
O tempo das notas
«Avaliar e
classificar: o caminho conta mais que a chegada.»
(Santana Castilho, Inquietem-se!, 2015: 125)
O final do semestre era o tempo do
lufa-lufa avaliativo. Supostamente, a avaliação era contínua, mas o
pico da entrega dos trabalhos dava--se na última aula quando caíam
às resmas na secretária do Prof.S.. Nas UC de didáctica dos cursos
de formação de professores, os materiais - apresentados em caixas,
baús e maletas pedagógicas - implicavam uma logística de transporte
que não era despicienda. Mas tudo ele carregava para casa, onde se
refugiaria nos próximos dias. Apesar dos protestos familiares, a
sala era invadida por aquela tralha escolar: havia trabalhos
empilhados, de acordo com as UC leccionadas, na secretária, nas
prateleiras, em cima da mesa grande e até no chão. O uso daqueles
espaços domésticos ficava então profundamente alterado face a tal
'congestionamento académico'. O Prof.S. impunha sérias restrições à
circulação, limitava as entradas e saídas naquela divisão da casa,
muito em particular à sua benjamim, desejosa de brincar com os
jogos didácticos e fazer elucubrações gráficas nas capas dos
trabalhos, com as canetas de feltro. E tudo isso lhe exigia atenção
redobrada… e interrupções constantes; resultado: mau humor em
alta.
- Enquanto o teu pai não libertar a sala de estar, temos que jantar
na cozinha - informação dada, em tom azedo, pela mãe quando a filha
se preparava para pôr a mesa.
Por esses dias, o Prof.S. centrava-se numa única tarefa - avaliar
os trabalhos dos seus alunos. Todas as suas preocupações giravam em
torno da leitura criteriosa daquelas centenas de páginas. Aquilo
era uma tarefa deveras entediante (pior só a literatura cinzenta do
seu 'pequeno mundo académico': pareceres, actas, regulamentos,…). E
para mais, os estudantes usavam um mix AO90/antiga ortografia (uma
versão perversa não prevista pelos governantes que trataram deste
magno assunto linguístico com enorme ligeireza); como o Prof.S.
tinha uma (quase) obsessão correctiva (ficou-lhe do tempo em que
foi docente de Português), aquele tropeçar sistemático nos erros
ortográficos deixava-o piurço. Praguejava a torto e a direito.
Também as referências não iam além da webgrafia (os estudantes
fugiam da biblioteca como ratos do gato) mesmo quando ele impunha,
explicitamente, nas orientações para os trabalhos, o requisito
bibliográfico. Era a net generation no seu melhor. Contrariar
aquela tendência generalizada de pesquisa na 'fonte única'
revelava-se cada vez mais frustrante.
A pressão do tempo era grande e os dias escassos para ler com
minúcia todos aqueles trabalhos de grupo. As pilhas iam baixando
ainda que lentamente. O ambiente, lá por casa, ressentia-se disso:
não havia disponibilidade para miúdos ou graúdos.
- Estás cá com um feitio! Quando é que acabas isso? Ainda falta
muito para lançares as notas? - perguntas da sua esposa que ao
ficarem sem resposta acentuavam o clima de crispação.
Acabadas as anotações dos trabalhos, introduzia as classificações
na folha de Excel: 40% para o trabalho de campo, 45% para os três
trabalhos individuais e participação nas aulas, 15% para a
assiduidade. O equilíbrio entre estas três componentes custava a
estabilizar. Era um professor céptico: mesmo as (poucas) certezas
eram desafiadas, permanentemente, pela sua atitude de reflexivo
crítico empedernido. Os números daquela tabela eram analisados em
termos absolutos e relativos. Seguia-se a ponderação dos valores
finais, com base numa visão qualitativa e holística (forma inglória
de atenuar o atomismo tecnocrático da docimologia). O último dos
três dias úteis, que o calendário impunha para lançar as notas,
passava-o na persistente tentativa de encontrar justeza no acto de
classificar. Aquela nota, sabia-o bem, ficava-lhes para a vida
(raros eram os que recorriam à «melhoria»). Lançou as
classificações finais no portal (agora, também as pautas virtuais
fugiam à socialização e ao escrutínio, em nome de uma pretensa
privacidade dos resultados). Imprimiu o «livro de termos» e, já
aliviado, tomou uma decisão quanto ao futuro…
Este ano lectivo, todos os
trabalhos seriam alojados na moodle. O Prof.S. convenceu-se que a
sua entrega no formato virtual tinha, para si e para os estudantes,
uma quíntupla vantagem: ambiental (reduzia-se no papel, poupando as
florestas), computacional (treinava-se a informática, aperfeiçoando
as capacidades técnicas); partilha (atenuava-se a concorrência,
aumentando a transparência dos juízos de avaliação); arquivista
(ganhava-se espaço na arrecadação do departamento, dando-lhe outra
utilidade); e familiar (acabava-se com a desarrumação sazonal da
sala de estar, aliviando o agrume de sua mulher).