Bocas do Galinheiro
Andrei Tarkovsky: um poeta no cinema
Ao longo de 2016, a Leopardo Filmes e a Medeia
Filmes levam a cabo um extraordinário lançamento da filmografia de
vários cineastas russos, percorrendo quase um século de uma das
mais importantes e influentes cinematografias na história do
cinema. A começar um dos cineastas cuja obra, apesar de exígua,
rodou apenas sete longas-metragens, não deixa ninguém indiferente,
sendo ainda hoje, 30 anos após a sua morte, alvo de posições
antagónicas. Falamos de Andrei Tarkovsky, um dos expoentes máximos
do cinema da então União Soviética, um poeta no cinema, como o
titulou Donatella Baglivo no filme com o mesmo nome que realizou e
lhe dedicou em 1982. Pena foi que neste ciclo não se tenha exibido
este trabalho. Mas o importante também não seria este mas sim os
sete filmes do realizador que Castelo Branco teve oportunidade de
ver na semana de 15 a 19 de fevereiro, no Cine Teatro Avenida.
Cineasta independente, na
verdadeira acepção do termo, porque não se lhe reconhece nenhuma
escola, porque se manteve intransigentemente à margem dos ditames
do regime soviético, que sentiu nas dificuldades que se lhe foram
sistematicamente colocando à divulgação da sua obra, inclusive a
proibição de algumas, de que "Andrei Rublev" é o caso mais
gritante, esteve interdito até 1971, sob a acusação de "falta de
verdade histórica". Andrei Tarkovsky (1932-1986), "um dos
realizadores mais poéticos e espirituais da história do cinema,
acreditava que o cinema era algo que não entretenimento, mas sim
arte, no sentido mais profundo e exacto da palavra, e que os filmes
não eram apenas reflexos da realidade, mas sim poemas oníricos.
Criou a sua própria linguagem e o seu próprio mundo, queria
esculpir o tempo e alcançar a verdade intrínseca da existência
humana, procurando criar um impacto no espírito de cada
espectador."
Foi com "Andrei Rublev (1966), que
se iniciou este memorável ciclo na sala albicastrense. Um conto
medieval arrebatador sobre a vida do maior pintor russo de ícones,
um génio, segundo Tarkovski, um fresco sobre um período turbulento
do século XV na Rússia, marcado por lutas intermináveis entre
príncipes rivais e invasores. Um filme, por episódios, sobre o
poder das imagens, a pintura, a fundição do sino, e a solidão, em
que a natureza e a água, sempre a água a percorrer os filmes deste
genial director, acentuam a pequenez do ser humano e as
interrogações sobre a sua existência.
Entre 1956 e 1960, Tarkovski
frequenta a VGIK, a Escola Estatal de Cinema de Moscovo (sabe-se da
importância do cinema para o regime), anos em que no âmbito do
curso realiza duas curtas-metragens, "Assassinos" (Ubitysty, 1958)
e "Hoje não haverá saída livre" (Segodnya uvolneniya ne budet,
1959), juntamente com Aleksandr Gordon, seu colega de curso. "O
Rolo Compressor e o Violino" (1960), é o seu trabalho de fim de
curso, uma média metragem, sobre um rapaz, um violino e um cilindro
e o seu condutor, que um dia defende o rapaz dos miúdos da rua que
escarnecem a sua condição de "músico" e a amizade que se cria entre
ambos. "A Infância de Ivan" (1962), a sua primeira longa-metragem,
longe de ser um filme de propaganda soviético sobre a guerra, é
antes uma reflexão sobre a infância, o sonho e a perda, filme que
reflete já o cinema emocional, onde não há pressa e que vai marcar
a obra de Tarkovski. "Solaris" (1972), e "Stalker (1979) marcam a
visitação do realizar ao universo da ficção científica, sem negar a
sua espiritualidade, o confronto da fé com a razão, o primeiro
adaptando a obra homónima do polaco Stanislav Lem, e o segundo
pouco mais que a ideia da obra dos irmãos Arkadi e Boris Strugatski
"Piquenique Junto da Estrada" (Piknic na obotchine). Filmado na
Estónia, na altura uma das repúblicas soviéticas, a atmosfera
contaminada por resíduos radiactivos terá sido a causa de, tanto
Tarkovski como outros intervenientes no filme, terem morrido anos
depois de cancro. Pelo meio realizou "O Espelho" (1974), filme
sobre memória, reflexão, mistério e sonho, a sua infância, a mãe, a
Guerra, trazendo para o filme documentos da época de vários
conflitos, combinados com momentos pessoais e quotidianos, filme a
que os censores colocaram enormes entraves de exibição e
distribuição na Rússia. Não admira pois que anos depois o
realizador se exile na Europa Ocidental onde vai dirigir as suas
duas últimas obras. "Nostalgia", de 1983, em que Andrei Gorchakov,
um poeta russo, parte à procura do seu passado cultural em Itália,
personificado em Beryozovski, um compositor russo sobre o qual
pretende reunir para escrever um libreto sobre a sua vida, ao lado
de Eugenia, a sua intérprete italiana, que não o consegue
separar da nostalgia russa, uma clara referência pessoal ao exílio,
que o encontro com Domenico, através do qual e do seu apelo à
espiritualidade em resposta ao materialismo, permitir ao
escritor compreender o porquê da sua própria nostalgia. Em "O
Sacrifício" (1986), Alexander, jornalista e intelectual, com uma
criança pequena pela mão, percorrem uma e outra vez o seu caminho,
sem uma aparente cronologia temporal, pleno de estranhos incidentes
e de despojamento material. Numa altura em que Tarkovski tinha
liberdade para filmar, o filme foi rodado na Suécia, terra de um
dos seus confessados realizadores de referência, Ingmar Bergman, a
morte interrompeu-lhe abruptamente um caminho que, livre do
labirinto que é, nesta filme, a escada em caracol da casa por onde
sobe e desce para tornar a subir, quase que sem saída, ou solução,
como o regime soviético que o manietava. Por isso, ou por causa
disso, Alexander a tudo renuncia, pelo fogo. Último filme do
cineasta russo, um testamento para memória futura, de um cinema que
já não se faz.
Até à próxima e bons filmes!
Luís Dinis da Rosa
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico