Entrevista

José Jorge Letria, escritor e jornalista
«Quanto mais lemos, mais livres somos»

0_2438627_4466.JPGHomem dos sete instrumentos, José Jorge Letria esteve por «dentro da história», no coração da revolução de Abril e na criação de histórias que insuflaram os sonhos de crianças e jovens. O atual presidente da Sociedade Portuguesa de Autores afirma que a liberdade e a democracia estão cercadas e ameaçadas.

 

Aos 65 anos, já foi ou é, jornalista, cantor, poeta, escritor, dramaturgo, professor e…político. Em qual destes papéis se sentiu mais realizado?

A minha profissão base durante quase 30 anos foi a de jornalista. Eu era estudante da Faculdade de Direito de Lisboa e precisava de lutar pela minha subsistência, até porque o meu pai morreu muito novo, quando eu tinha 16 anos. O jornalismo foi a via que escolhi, primeiro comecei a colaborar no suplemento «A Mosca», que saía com o «Diário de Lisboa» (DL), ao sábado, coordenado pelo Luís de Sttau Monteiro. Sete meses depois passei para a redação do "velho" DL e foi aí que iniciei uma atividade que só viria a interromper em janeiro de 1994 quando iniciei o meu primeiro mandato como vereador a tempo inteiro na Câmara Municipal de Cascais.

O «DL» foi a primeira de várias experiências…

Sim, depois estive no «República», no «Diário de Notícias», no «Diário», depois como editor no «Jornal de Letras», fui chefe de redação do «Musicalíssimo», e também colaborei na rádio, etc. Depois incorporei a minha experiência autárquica em Cascais, no fundo um reencontro com a terra onde nasci, para encontrar soluções para a vida dos munícipes. Mas de facto, o jornalismo é a profissão que melhor se aplica à minha atividade, até porque escrevi livros sobre jornalismo, dei aulas sobre estas matérias e continuo a olhar esta atividade com muita atenção e com um sentido muito crítico. E confesso que ser jornalista tem sido muito útil na gestão na casa que agora dirijo, a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA).

Segundo sei, está a tirar um doutoramento em Ciências da Comunicação no ISCTE. Qual o tema da sua tese?

É verdade, estou a aguardar que me marquem a data da defesa da tese. O tema da tese é sobre «A gratuitidade do consumo de bens culturais», um fenómeno extremamente complexo, especialmente num grave contexto de crise e de mudança profunda dos hábitos sociais e culturais.

Pensa dar aulas na faculdade ou desenvolver esta área no âmbito da investigação?

Não faz parte dos meus projetos e objetivos desenvolver uma atividade docente ou de investigação, o que desejo é dar seguimento à minha atividade académica que começou em 1968, na altura em que convivi com Marcelo Rebelo de Sousa, Miguel Sousa Tavares, o atual ministro da Cultura, Castro Mendes, e muitos outros notáveis, que foram meus colegas de turma.

Também foi correspondente de um jornal espanhol em Lisboa, no período revolucionário, a convite do Manuel Vázquez Montalbán. Conte-nos esse episódio…

Fui correspondente de um jornal catalão de Barcelona chamado «Tele/eXprés» que foi dirigido pelo Vázquez Montalbán. Ele no dia 27 de abril de 1974 veio a Lisboa, até à redação do «República» - eu já o conhecia de ele ter escrito sobre mim, o Zeca Afonso e os outros cantores de intervenção. Dirigiu-me o convite e eu aceitei. Desempenhei essa tarefa durante dois anos.

Relatou o período pós-revolucionário?

Apanhei o chamado PREC no auge. Foi um período muito intenso. Em Portugal, acompanhei para o «República» e o «Diário Notícias», onde era editor de política nacional e do setor militar. Imagine o que eu vi, vivi e contei.

Como recorda os tempos do 25 de Abril, em que juntamente com Adriano Correia Oliveira, José Afonso e Manuel Freire, fez da canção uma forma de resistência?

Vivi com intensidade, com paixão e amor, numa dinâmica de entrega total o período revolucionário. Eu estive por dentro da história como cantor, como autor, como jornalista, como jovem escritor. Recordo esse tempo com nostalgia, como nós encaramos tudo aquilo que vivemos e nos fez felizes. Mas sei que aquele tempo não volta mais. ;

0_2438628_4466.JPGA canção ainda pode ser uma arma?

Se me pergunta se a canção ainda pode ter um espaço político para intervir, digo-lhe que tem sempre a capacidade de intervir política e socialmente na criação de uma dinâmica de cidadania ativa e transformadora. O problema é saber quais os meios que a canção tem para se perpetuar no tempo, ser registada e chegar a outros ouvidos, resistir e ir mais longe. Neste ponto, tenho muitas dúvidas porque a indústria discográfica entrou em colapso e o que correspondia há 5 ou 10 anos a 200 mil cópias hoje traduz-se em 2/3 mil cópias. Praticamente já não se editam discos e os que se editam servem apenas para circulação e promoção dos repertórios na própria internet.

Hoje um «Grândola, vila morena» teria o alcance de há 40 anos?

Eu vi praticamente nascer o «Grândola, vila morena», a senha do movimento libertador, que foi uma canção poderosa para mobilizar e transformar a sociedade. Mas repare que o impacto desta canção mantém-se. Há 5 ou 6 anos, no início do Governo Passos Coelho, o «Grândola» foi um instrumento poderoso de mobilização, ecoando um pouco por todo o país e serviu de hino para milhares de pessoas. Em suma, creio que a canção terá sempre força, mas é importante que a oiçam. O tempo dos megafones em cima dos tratores acabou.

O período revolucionário foi das «experiências mais emocionantes da sua vida». O que é que ficou dos valores de Abril?

A liberdade e a democracia foram o principal legado, valores esses que hoje estão cercados por fenómenos invasivos e profundos dos nossos tempos. Sabe, eu faço um exercício permanente da memória, porque com esta pratica fazemos sobreviver muito do que é essencial. Porque fui companheiro, amigo e camarada de canções e de sonhos do Zeca Afonso, vou reeditar em breve um livro com novos depoimentos chamado «Zeca Afonso, o que faz falta». Será uma forma de colocar pessoas contemporâneas dele, como o Luís Góis, Francisco Fanhais ou o José Barata Moura, a falar sobre a importância que teve o Zeca. E o objetivo é convergir na ideia fundamental: o Zeca faz-nos falta, porque continua a fazer-nos falta, por tudo aquilo que representou. O Zeca, para além de um grande cantor, poeta e agitador cívico, era ainda um homem da consciência, da moral transformadora, da utopia e do sonho. Ele foi a alma do nosso combate pela liberdade e foi, seguramente, o melhor de todos nós.

Regressando ao tema do jornalismo que abordámos no início da nossa conversa. Como vê o momento atual do setor, que esteve reunido em Congresso no início de janeiro?

O jornalismo atual, mais do que à procura de um caminho, persegue objetivamente o seu lugar específico na sociedade e a sua função, contrariando as ideias perigosas que se instalam sempre que falamos de jornalismo e de jornalistas. É uma classe que tem muito poder e ao mesmo tempo não tem poder. Ou seja, tem o poder de construir e de destruir popularidades, prestígios, nomes, carreiras, famas, mas ao mesmo tempo os jornalistas estão cada vez mais pobres, mais isolados, mais confinados a espaços mais laterais em relação ao verdadeiro exercício dos poderes.

Os jornalistas estão numa encruzilhada?

Os jornalistas estão à procura do seu rosto e da sua identidade, no meio de um labirinto que é dificilmente sustentável. Estou verdadeiramente preocupado, até porque há cada vez mais gente saída do jornalismo ativo, diário, que vem inscrever-se à SPA, depois de terem sido dispensados de vários títulos, de modo a criar condições de sustentabilidade que lhes permitam continuar a colaborar em jornais ou com outras entidades. Ou seja, recebem o seu cachet via SPA, por via dessa ligação, mas sabem que a sua profissão, tal como a viveram, já não é sustentável. Neste processo de mudança, os jornalistas estão sujeitos a um progressivo empobrecimento e debilitação desta atividade profissional. Os jornalistas estão cada vez mais agredidos, cercados e assediados. Dou-lhe um exemplo: a primeira conferência de imprensa de Donald Trump, ainda na condição de presidente eleito, a destratar vários jornalistas, é um péssimo sinal para o que nos espera e põe em causa a dignidade de uma profissão.

É um cenário que deve inquietar os jovens que todos os anos saem das faculdades?

Completamente. Aquilo para que milhares de jovens estudam anualmente, desde o Porto, ao Algarve, passando pelas regiões autónomas, depois não conseguem exercer no terreno, apesar da expetativa pressionante dos pais e dos próprios jovens que sonham vir a ser jornalistas a tempo inteiro num lugar que os dignifique e engrandeça, acaba por se esfumar. A alternativa é optar por saídas profissionais como o turismo, a comunicação autárquica, as empresas, etc. Sinceramente, não sei o que vai ser a vida dos jornalistas e especialmente a dos jovens jornalistas, perante um contexto global tão adverso. Hoje em dia, sem comunicação, nada se conquista ou se mantém. E a tendencial instrumentalização da escrita jornalística para a obtenção, manutenção ou salvaguarda de poderes vai intensificar-se. ;

«Muros» é a sua mais recente proposta literária. Os muros físicos, de cimento, estão a dar lugar a novos muros invisíveis, a formas subreptícias de censura e limitação da liberdade?

Sem dúvida que sim. Escrevi este livro por impulso da minha cidadania dinâmica e ativa. Olhei para o mundo em que hoje habitamos e percebi que existem dois aspetos que ajudam a perceber a identidade, o presente e o futuro: uma é a presença crescente e invasiva de muros e a outra é a mochila. Qual a ligação da mochila com os muros? A mochila, na sua extrema vulnerabilidade, é um símbolo poderoso da imensa mobilidade, tantas vezes contrariada e indesejada, dos seres humanos numa gare de caminho de ferro ou doca à espera de um barco que muitas vezes acaba por levar à morte no Mediterrâneo. É o caso dos refugiados. E é esta ligação entre estes dois objetos que representam a instabilidade e a mudança profunda que se está a operar no mundo.

Esteve fisicamente em vários desses muros. Que impressões e memórias reteve?

Eu no livro falo primeiro dos muros antigos, começo pela muralha da China, pela muralha de Adriano e pela muralha de Antonino, e sigo ate aos muros da nossa conturbada contemporaneidade, começando pelo muro da Cisjordânia, construído por Israel, que vi presencialmente. Estava aliás, na Faixa de Gaza, quando Ariel Sharon ordenou a invasão da Esplanada das Mesquitas, desencadeando a segunda intifada. Vi em funcionamento pleno durante anos o muro de Berlim. Em 1975, atravessei essa divisão de Berlim através do Checkpoint Charlie, para ir atuar com o Carlos Paredes a Berlim Leste, a dois programas de televisão. Recordo-me que de forma propagandística nos mostraram o muro, argumentando que este era seguro e confortável e dava tranquilidade. Também estive, há poucos anos, na Hungria, onde agora está a ser construído um muro assustador que vai ter à volta de 150 quilómetros de extensão. É esta Europa que me inquieta, uma Europa que não tinha poder e agora tem, uma Europa que ameaça as outras Europas, uma Europa de divisão com equilíbrios perversos e constato esta realidade com muita apreensão. E vem-me à memória que foi nesta Europa que foram desencadeadas as duas guerras mundiais…

Os muros vieram para ficar?

Seja a pretexto dos refugiados, seja a pretexto das divisões políticas ou dos interesses geoestratégicos, os muros vão expandir-se e vão ser um retrato poderoso e assustador do presente e do futuro da humanidade. Onde há tensões, suspeições e se pretende semear o medo e o terror, constrói-se um muro. A história diz-nos que os muros não serviram apenas para impedir que se entrasse, serviram também e quase sempre como instrumentos de defesa e de ataque.

Os populismos e os nacionalismos são ingredientes explosivos?

Sem dúvida. Morreu há poucas semanas um grande ideólogo chamado Sygmunt Bauman que deixa uma obra extensa e que teoriza sobre a «Sociedade líquida». Ele caraterizou o nosso mundo, a nossa civilização e a nossa cultura, ao nível europeu, se foi desagregando devido à febre de um consumismo, incentivado e estimulado pelo neoliberalismo, que levou as pessoas a acreditarem que a promoção da sua imagem nas plataformas de popularidade ia fazer delas seres duráveis, com poder e capacidade para mudarem o mundo. Este teórico polaco disse coisas muito certeiras e que o tempo veio a dar-lhe razão. A eleição de Donald Trump é, por assim dizer, a confirmação máxima desta teoria. Na Europa assistimos a uma fragmentação, ao empobrecimento da liberdade e à contaminação da própria vivencia democrática. Estando a democracia fragilizada e a liberdade cercada, já me pergunto se perante uma democracia superficial e vulgarizada, já se estará a encobrir uma ditadura que se constrói à custa do nosso desinteresse e da nossa apatia perante o que são os verdadeiros perigos e ameaças do nosso tempo. Isto preocupa-me como cidadão, como jornalista, como escritor e como presidente da SPA, que representa mais de 26  mil autores em Portugal.

No âmbito das suas responsabilidades na SPA manteve recentemente uma reunião com vários eurodeputados portugueses, em Bruxelas. Sensibilizou-os para estas novas questões?

Tivemos reuniões com cinco eurodeputados portugueses, a saber: Carlos Zorrinho, Ana Gomes, Carlos Coelho, Marisa Matias e António Marinho e Pinto. Todos eles demonstraram interesse, sensibilidade e empenhamento relativamente à defesa dos direitos de autor e ao nível do plenário do Parlamento Europeu, em Bruxelas ou Estrasburgo, e comprometeram-se em defender as posições justas. Todos eles me disseram que reconhecem a oportunidade e conveniência da luta da SPA na defesa dos interesses dos autores, por todo o lado, em particular na Europa.

Até 2018 preside ao Comité Europeu de Sociedades de Autor da Confederação Mundial de Sociedades de Autor, com sede em Paris. A atividade criativa e cultural dos autores é defendida pelas altas esferas do poder em Bruxelas?

Esta Comissão Europeia não é a mesma de há uma década. A batalha pela sustentabilidade económica da criação e pela capacidade que a criação cultural tem para gerar riqueza está cada vez mais isolada e acossada. E há uma força que ameaça todos os criadores, que é a pirataria, que defende a utilização livre e plena da obra criada, porque é de todos. Nesse sentido, fui sensibilizar os nossos políticos em Bruxelas para que votem a proposta da direção do grupo europeu de sociedades de autores. Este foi outro motivo porque considero tão importante a conversa mantida com os nossos eurodeputados.

Este caso é eloquente que as decisões que influenciam os autores já não passam por São Bento, mas sim por Bruxelas?

Aquilo que hoje se decide, é votado e se transforma em suporte legislativo, e que diz respeito aos autores e às suas obras, já não é decidido em Bruxelas ou em Estrasburgo, mas em Londres (que com o «brexit» está cada vez mais distante do nosso interesse comum e coletivo), em Washington, em Seul ou em Sydney. O conceito de globalização é muito perigoso para os direitos dos autores, porque se baseia no negócio, no comércio e no business, que aliás parece ser a linha de ação de Donald Trump, que vai tratar de desmantelar a política. Estou em crer que os próximos anos serão caracterizados por uma intensa e perigosíssima guerra comercial. E as várias lições da história dizem-nos que quando a guerra comercial se instala é muito difícil não evoluir para a beligerância e para o confronto bélico.

Está muito pessimista?

Vejo o mundo à beira de um profundo abismo, do qual todos sabemos como se entra e ninguém sabe como se sai ou se é possível sair.

Pela escrita, pela voz, ou pelo cinema a língua portuguesa é o traço comum aos autores da SPA. Qual a importância do ativo da língua portuguesa no mundo?

Infelizmente, a língua portuguesa tem sido um ativo parcialmente esquecido. Veja as dificuldades que a CPLP tem tido em afirmar interna e externamente a vitalidade e oportunidade das posições que defende, desde logo porque não tem uma base militar e geoestratégica. A lusofonia só terá sustentabilidade se Portugal, Angola e o Brasil se entenderem nestes domínios, devido à sua expressão demográfica - o Brasil com 206 milhões de habitantes e Angola;  com 40 milhões, são essenciais para garantir o projeto linguístico. E a partir daqui é preciso inspirar e cativar outras comunidades, como Cabo Verde. Recentemente, fiquei muito preocupado que Cabo Verde tenha adotado o criolo como língua nacional e ter definido o português como segunda língua. Vejo isto com inquietação e enfraquece o peso da lusofonia no mundo.

E que papel tem a periférica nação portuguesa numa Europa a lutar para não ser irrelevante?

Não sei o que vai acontecer à Europa e ao mundo. Vivemos um momento de grande ebulição e efervescência. Os próximos 4/5 anos serão decisivos. A Europa, com 500 milhões de habitantes, está cada vez mais fragilizada, nomeadamente ao nível das suas instituições, como é a caso da União e da Comissão Europeia. E cada vez mais irrelevante, como disse. Estará cada vez mais entregue ao seu destino e ao seu espaço, que é de antiguidade, perdendo força na contemporaneidade e consequentemente a força no presente e no futuro. Com os eixos de criação, decisão, intervenção e mudança cultural a mudarem-se para os Estados Unidos e para a Ásia-Pacífico.

Há quem defenda a saída de Portugal da Europa. Seria uma solução ou um suicídio?

Há hoje uma política discriminatória, injusta e de segregação de países como Portugal. A Europa do norte é cada vez mais elitista e segregacionista, a Europa do Leste é cada vez mais reacionária, enquanto a Europa do Sul, onde se insere Portugal, está cada vez mais isolada e contaminada pelo que acontece em todo o velho continente. Apesar de todos estes problemas, nós não podemos sair desta Europa. No período dos «descobrimentos» tivemos a ilusão que podíamos sair. Aparelhando as naus e as caravelas e partindo «para os mares nunca dantes navegados», para chegar a outros cais, a outras praias e a outras civilizações e culturas. Hoje não temos essa capacidade, por muita importância estratégica que atribuamos ao mar.

Resta-nos, então, permanecer neste projeto…

Repito que não podemos sair da Europa, mas também aprendemos com D. Afonso Henriques, com D. Dinis, com D. João II, o Marquês de Pombal e com tantos outros que estando aqui isolados e sem possibilidade de crescer, e sair para o mar, nós ficamos isolados e podemos estar mortos dentro da própria Europa. Não podemos desistir de ser nós, de ser únicos. Por isso, temos de voltar a viajar, não para emigrar, mas para redescobrir o mundo com a dimensão global, desafiadora e perturbadora  que tem hoje.  Se olhar para o mapa mundi verá que Portugal tem hoje as mesmas qualidades e virtudes que tinha no período dos «descobrimentos», que são uma centralidade geográfica em relação aos continentes e ao mundo, que permitiu aos reis e aos navegadores dessa época contrariar essa aparente periferia. Portugal precisa de reinventar o seu lugar no mundo para, ao mesmo tempo, reinventarmos a nossa própria sobrevivência, usando como instrumento fundamental a língua portuguesa.

Foi um dos primeiros que esteve na iniciativa «Escritores no Palácio de Belém», promovida pelo Presidente da República. Atualmente, lê-se mais em Portugal?

Hoje, tecnicamente, lê-se mais em Portugal, mas lê-se muito menos. O que é que eu quero dizer com isto? Há menos analfabetos, há mais crianças a ler, há mais camadas de público a ler, mas os livros como são caros tornam a sua aquisição proibitiva e não se pode estranhar que muitos prefiram despender esse dinheiro para uma semana de refeições numa cantina. Para além disso, há um drama que está a afetar profundamente a leitura e que é a inexistência de hábitos de leitura em casa, na escola, no associativismo, etc. Muitas crianças querem ler, mas estão perdidas, sem referências e dominam mal a língua portuguesa. E já agora, a talhe de foice, ainda não sabemos o que vai acontecer com o Acordo Ortográfico, que é um instrumento que deixa as pessoas cada vez mais confusas, desnorteadas e divididas.

Quem pode ser agente promotor de leitura?

Todos, sejam os pais, a escola ou o próprio Presidente da República numa sala do Palácio de Belém. As câmaras, as bibliotecas e as próprias editoras também podem ter o seu papel importante nessa dinamização, desde que seja com criatividade, com imaginação e com persistência. E não esquecer o papel da comunicação social que pode transmitir a seguinte mensagem junto dos jovens e adolescentes: ler não nos empobrece, só nos enriquece, só multiplica o nosso interesse pelo mundo e a nossa curiosidade por saber e aprender mais. E ler só nos dá a capacidade de sermos mais livres interiormente para escolhermos bem os caminhos que queremos trilhar.

Uma pessoa com mais leitura torna-se mais inconformada?

Quanto mais lemos, mais livres somos. A leitura, seja ela qual for, mas predominantemente se for de livros que tenham ideias e nos desafiem pelo bicho desafiador da sua estética e da sua linguagem, torna-nos mais livres, mesmo que nos faça ficar mais inquietos e desassossegados. Sabemos que uma boa leitura tanto nos pode levar à liberdade ou ao suicídio, tanto nos pode levar ao Espaço e à descoberta de novos planetas, como nos pode conduzir à depressão, à tristeza e à auto-marginalização. Com a leitura podemos perceber melhor o mundo e, no fundo, o que nos rodeia. E também ajuda-nos a percebermo-nos melhor a nós próprios. Porque o livro é uma janela para a descoberta e essencialmente da descoberta de nós.

Foi e é referência de crianças e adolescentes nas últimas décadas. Foi um dos autores da mítica série juvenil, «Rua Sésamo», na sua versão portuguesa. Como é povoar o imaginário dos mais jovens e que mensagens procura passar nos livros que escreve?

Se me perguntar como sintetizo a minha relação com a escrita, não há duvida que usando a minha estética, e o meu modelo de linguagem, de acordo com as minhas opções, escrevi sempre para educar para os valores, ou seja, a sensibilidade, o gosto e a inteligência. Quanto à «Rua Sésamo», foi de facto uma grande experiência da minha vida e posso dizer que a versão portuguesa deste programa esteve vários anos entre as dez mais famosas e competentes do mundo, considerando o ponto de vista estético, de escrita, musical e das personagens.

Nuno Dias da Silva
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