Rui Vieira Nery, musicólogo
«Não assumir a cultura como prioridade é um sinal de ignorância»
Rui Vieira Nery é um crítico dos políticos e
especialmente das políticas que continuam a colocar a cultura num
plano subalterno. O recente vencedor do Prémio Universidade de
Coimbra (patrocinado pelo Santander Universidades) partilha ainda a
sua opinião sobre os novos métodos de ensino e a projeção alcançada
pelo Fado a nível internacional.
Foi distinguido no início do ano com o Prémio Universidade
de Coimbra. É o corolário de 40 anos de investigação
científica?
Sim, foi esse certamente o motivo que o júri tomou em conta para
me conceder o prémio. Não deixei de ficar surpreendido, até porque
trabalho num campo, a musicologia, que ainda não tem o pleno
reconhecimento no contexto universitário, apesar dos progressos.
Fiquei, naturalmente, orgulhoso e estimulado para o meu
trabalho.
Acredita que o facto de ter inovado na sua área pesou na
decisão do júri?
Não sou certamente o único a lutar por esta causa, mas penso que
tenho tido uma intervenção inovadora. Desde logo no sentido de
tentar mostrar que a musicologia permite fazer com que a história
passe de um filme mudo a um filme sonoro. Tentar integrar o
elemento sonoro e musical na evolução da história das ideias e da
cultura, mostrando que é um ângulo que faz tanta falta à construção
de uma imagem da história como as artes plásticas, a arquitetura, a
literatura, etc. Por outro lado, dentro da própria musicologia,
tenho lutado muito para a integrar nas problemáticas das ciências
históricas e sociais contemporâneas, passando para uma história da
música com uma visão mais problematizante e interdisciplinar.
Para além de ser quadro da Fundação Gulbenkian, está
ligado há décadas à Universidade Nova, onde, entre outras, leciona
a cadeira de História do Fado. Estes centros de saber ainda estão
muito fechados sobre si, cultivando o espírito da
capelinha?
Para começar, eu sou um defensor da Universidade. Acredito na
Universidade e acredito no ensino. Acho que todas as instituições,
não só em Portugal, mas também no mundo, tendem a formar
corporações e a criar barreiras de auto-defesa. Não me parece que a
Universidade portuguesa seja uma exceção, mas também não é pior do
que as outras. Está na moda esta crítica pós-moderna a tudo o que é
centro de ensino, esta valorização do papel absoluto da
auto-aprendizagem, etc. Eu dou graças a Deus por ter tido grandes
professores, tento ser um bom professor - de muitos deles oiço que
as minhas aulas foram úteis para o seu trabalho e, no fundo, é isso
que me faz continuar a ensinar.
Mas a Universidade ficaria a ganhar se se abrisse mais ao
exterior?
Há sempre o risco de a Universidade se fechar sobre si própria e
não o deve fazer. Há uma atenção, uma vigilância e uma auto-crítica
permanente que a Universidade e os universitários devem fazer a
esse respeito, mas entendo que não deve haver vergonha do facto de
ensinarmos.
Os métodos de ensino têm vindo gradualmente a ser
alterados. A aula magistral está a ser substituída pela nova
tendência em que o aluno deve aprender por si.
Concorda?
Não sou crítico destas tendências, mas acho que elas não podem ser
absolutas. Considero a aula magistral insubstituível, porque tem o
papel de um investigador mais experiente partilhar com os seus
alunos as conclusões a que chegou no seu trabalho - sobretudo se
não as apresentar num discurso autoritário, mas como um exemplo do
processo de construção no discurso científico. Mas não deve ser
única. Em paralelo, os alunos devem começar a experimentar, na
prática, o processo de construção no discurso científico. O acesso
alargado à informação que temos através da internet possibilita uma
acessibilidade dos dados e uma autonomia de navegação maior para os
alunos, mas mesmo neste caso, o papel do professor é essencial no
sentido de criticar, desconstruir e escolher nesse manancial de
informação que não é filtrado. Não raro aparecem-nos teorias da
conspiração ao lado de estudos científicos fundamentados, boatos e
textos amadores mal construídos a par de estudos sérios, etc. Por
isso, eu não posso opor a autonomia da aprendizagem ao papel do
ensino. São duas faces de uma mesma moeda e se um deles falhar algo
está errado.
Na Universidade, em particular, e no ensino, de uma forma
geral, também aqui se fazem omoletes sem ovos?
Constantemente. Apesar de tudo o desenvolvimento dos centros de
investigação e o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia
equipou melhor as universidades do ponto de vista bibliográfico e
do acesso a redes pagas de recursos bibliográficos, bases de dados,
etc. Nesse sentido, estamos melhor do que no meu tempo de aluno,
mas continua a haver uma grande escassez de meios, suportes
tecnológicos, excesso de alunos nas aulas, falta de professores,
uma falta de capacidade de renovação dos corpos docentes que hoje
em dia tendem a ser paleolíticos na maior parte dos departamentos.
Quando a minha geração se reformar, na próxima década, surgirão
muitos lugares para jovens, mas perdemos 20 ou 30 anos de
recrutamento sucessivo de novas gerações de investigadores e de
professores, por falta de meios. Isto é resultado de
sub-financiamento da Universidade e que se traduz em perda de
qualidade.
Presidiu à comissão científica da
candidatura do Fado a património imaterial da UNESCO. Que balanço
faz destes quase 7 anos?
Eu costumo dizer que este momento marcou uma reconciliação
nacional com o Fado. Como sabe o fado foi objeto de grandes
polémicas político-ideológicas, praticamente desde o início da sua
existência, no segundo terço do século XIX. Muito em particular no
período anterior ao 25 de Abril havia uma espécie de crença
generalizada na ideia de que o Fado seria um instrumento de
manipulação ao serviço do regime. O esforço de investigação e de
recuperação da memória histórica que a candidatura ajudou a fazer
permitiu ver o Fado no seu conjunto e não apenas no fenómeno de
tentativa de apropriação do Fado pelo regime de que resto está
longe de ser evidente. Até porque, importa recordar, que no início
do Estado Novo o regime desconfiava profundamente do Fado - por ter
estado ligado a movimentos operários e de contestação social -,
impondo regras de censura brutais, controlando-o com uma vigilância
policial terrível, etc. O regime democrático surgido do 25 de
Abril fez uma espécie de condenação implícita do Fado e, de alguma
maneira, esta candidatura ajudou a perceber que o Fado fazia parte
da cultura portuguesa e que não era necessariamente conotável com
nenhum regime em particular. O Fado faz parte da nossa
genética.
Afirmou que «toda a gente quer entrar no comboio do fado».
A canção nacional corre o risco de descaraterização?
Todas as práticas musicais, à semelhança de todas as práticas
artísticas, mudam ao longo do tempo. Tenho horror aos conceitos de
«autenticidade» aplicados a estas coisas. Contudo, nem tudo é Fado.
Porque se tudo é Fado, nada é Fado. Algumas tentativas de «cross
over» e de combinações com outras linguagens funcionam, outras não.
Eu acredito que há um bom senso natural da comunidade fadista para
ir incorporando o que deve incorporar e excluindo o que deve
excluir. A médio/longo prazo, as experiências falhadas cairão e as
experiências boas serão incluídas no «mainstream». Estou certo que
não terá de haver um mecanismo de autoridade a certificar o que é
Fado autêntico e o que deixou de ser.
Que vantagens e desvantagens aponta no seguimento desta
crescente projeção do Fado?
Em primeiro lugar, a vantagem de criar uma oferta de trabalho para
os fadistas e fazer entrar mais dinheiro no universo profissional
do fado. Por outro lado, considero negativo que o fado que é
oferecido aos turistas seja uma espécie de objeto artificial
fabricado para agradar às expetativas dos que nos visitam.
Portanto, isso pode levar a uma adulteração, que se pode traduzir
numa comercialização que reduz uma prática muita rica a fórmulas
estereotipadas. É um risco, mas creio que a dinâmica do Fado, no
seu conjunto é tão intensa, que ela própria «disciplina» essa
tendência.
O Fado já tem hoje o seu lugar na chamada World
Music?
Sim, sim. Depois dos grandes pioneiros, que foram Amália e Carlos
do Carmo, a partir do anos 90 o circuito da World Music incorporou
de forma crescente o número de concertos que os jovens fadistas
portugueses dão em todo o mundo. Tanto ao nível do topo de gama das
grandes salas, passando por festivais mais pequenos. O género tem
tido uma penetração muito intensa, especialmente em espaços que não
falam português, mas que são sensíveis à força expressiva do fado.
A curiosidade é, de facto, muito grande, mas com a particularidade
de ela existir mais para as fadistas do que para os fadistas.
Consegue arranjar explicação para isso?
Criou-se no plano internacional o arquétipo de que o Fado é uma
canção de mulher. E perdura muito o olhar exterior e a lembrança
história de Amália.
Foi secretário de Estado da Cultura, entre 1995 e 1997,
quando o ministro era Manuel Maria Carrilho. Que memórias guarda
desses anos no Palácio da Ajuda?
São boas memórias, no conjunto. Eu costumo dizer que nas mesmas
circunstâncias teria voltado a aceitar o cargo, e nas mesmas
circunstâncias teria voltado a sair. Foi uma oportunidade
importante para conhecer as políticas culturais por dentro e na
minha área específica, que era Artes e Espetáculos, ajudei a
racionalizar e a tornar mais transparentes as políticas públicas,
com a introdução de regulamentos para a concessão de subsídios mais
claros, pensar no sistema de Artes e Espetáculos articulado entre
organismos públicos e a contratualização com investidores privados,
percebendo melhor o papel do Estado e do mercado e o espaço de
negociação entre ambos. Foram dados passos importantes, mas quero
destacar a recriação do setor público da cultura que tinha sido
destruído pelo Dr. Santana Lopes, durante o governo do Prof. Cavaco
Silva. Privatizou-se e transferiu-se para fundações muito do que
era público.
Já é uma frase batida dizer que a cultura é o parente
pobre do Orçamento do Estado. Tem sido uma tónica transversal a
governos PS e PSD?
Tenho pena de que mesmo nos governos socialistas tenha
manifestamente havido um decréscimo no investimento na cultura e um
decréscimo no reconhecimento da prioridade política da cultura.
Espero que esse movimento se possa inverter, porque é dramático.
Não há vontade política de assumir a cultura como prioridade.
Estamos a falar de preconceito?
Não assumir a cultura como prioridade é, sobretudo, um sinal de
ignorância. Está mais do que demonstrado o papel da cultura, por um
lado, no desenvolvimento económico, como fator de originalidade,
inovação e com repercussões no emprego, nas mais valias para os
produtos, etc. Mas também, sobretudo, como algo fundamental para a
democracia, a convivência democrática, a harmonia intercultural, o
diálogo entre posições políticas e ideológicas diferentes, etc.
Isto sem esquecer o impacto social da cultura. Em qualquer modelo
sustentável de desenvolvimento político e económico a cultura
deveria ter um protagonismo muitíssimo maior. É justo dizer que a
pouco e pouco vai-se compreendendo melhor esse protagonismo a nível
autárquico. Em termos locais, as pessoas começam a perceber que
querem o seu museu, a sua galeria, o seu auditório, a sua
biblioteca. Estas exigências já fazem parte das reivindicações de
um autarca, mas ainda não chegaram ao poder político central e é
urgente que cheguem.
Em que pilares de devia estruturar uma política cultural
de futuro e com futuro?
Para começar, atualmente o que existe é um ministro da cultura,
mas não existe um ministério. O ministro está integrado numa
estrutura da Presidência do Conselho de Ministros que não controla
e que antes o controla a ele. Para além disso, o ministro depende
de financiamentos que são regateados e geridos, em grande parte,
pelo Ministério das Finanças e não pelo próprio Ministério da
Cultura. O ministro tem muito pouco a dizer sobre as politicas
culturais internacionais porque são geridas, fundamentalmente, pelo
Ministério dos Negócios Estrangeiros. Portanto, há uma menorização
evidente da pasta no contexto do Conselho de Ministros, o que me
parece uma situação muito negativa.
Um ministro da cultura sem peso político pouco ou nada
pode fazer?
Absolutamente. O atual ministro da cultura, Luís Castro Mendes, é
um poeta e conhece bem o setor, mas não tem nem peso político, nem
meios orçamentais para cumprir sequer o programa aprovado pelo
governo. Não lhe invejo a situação. Faço votos para que o governo
no seu conjunto, e em particular o Primeiro-Ministro, compreendam a
necessidade de dar a um bom ministro instrumentos para fazer
uma boa política.
Que outros equívocos contribuem para esse papel subalterno
da Cultura?
É preciso ultrapassar uma série de ilusões que derivam da
informação sobre o papel do Estado, da sociedade civil e do
mercado no tecido cultural. Em nenhum país do mundo - nos ditos
países do primeiro mundo - a cultura se paga a si própria. Ela só
se paga a si própria pelo efeito social que tem. Mas é esta
arrumação de princípio que é fundamental para que se possa avançar
com políticas sólidas, estruturais e estruturantes para a cultura.
Nos últimos 20 anos tivemos pouca clareza e muita hesitação no
papel do Estado, da sociedade civil e do mercado. Ou tivemos
excesso de financiamento público ou a sua absoluta falta, a ideia
de ver os criadores e os produtores como subsídio-dependentes e não
como parceiros na prestação de um serviço cultural, de que o Estado
é constitucionalmente responsável.
A difusão planetária da cultura portuguesa, tanto ao nível
do cinema, literatura e música, é um veículo de afirmação nacional.
Podíamos ser uma potência mundial com meios e
estratégia?
Potência mundial é uma expressão que não se aplica neste caso
concreto. Utilizando um termo tecnocrático - a marca Portugal já
tem um reconhecimento cultural e internacional muito grande, tendo
em conta a dimensão do país. O cinema português ganha prémios em
festivais, os artistas plásticos expõem nas principais galerias, os
escritores portugueses são traduzidos em todo o mundo, alguns
compositores começam a ser tocados e editados no estrangeiro, etc.
A difusão é muito grande pelo mérito individual destes criadores.
Não há uma estrutura institucional que apoie de forme sistemática e
organizada este esforço de difusão. É isto que nos falta. Não que
queiramos concorrer com as grandes indústrias culturais, mas
podemos concorrer num espaço de criação de autor reconhecido e
aplaudido internacionalmente. E isso confere ao país uma imagem de
civilização, progresso, clarividência e inovação, com consequências
no tecido económico. O exemplo que eu dou sempre é dos sapatos
portugueses e do design de moda.
O que é que os sapatos portugueses têm?
Portugal tinha uma gama de produtos que tradicionalmente vendia
num patamar de produto de massa não qualificado e derivado da
intervenção de designers e criadores que pensam a forma e a
originalidade do produto estes subiram para um nível de luxo. Isso
é uma extensão natural do investimento na formação artística e nas
artes mais experimentais, que acabam por se espalhar e contaminar o
tecido comercial. Para ter bom design é preciso ter boa criação
artística e de vanguarda, da mesma maneira que para ter boas
patentes de tecnologia é preciso ter boa investigação
científica.
Mostrou-se especialmente crítico no seu Facebook após a
entrevista dada há semanas pela ex-ministra, Constança Urbana de
Sousa, tendo salientado que «os mais competentes são afastados do
serviço público». A profissionalização da política está a
contribuir para matá-la?
O atual panorama político mostra o seguinte: há uma obsessão
política pelo curto prazo, um universo mediático descontrolado e a
lógica aparelhística domina as máquinas partidárias. Faço-lhe um
desafio: atente numa fotografia da Assembleia Constituinte de 1976.
Veja as caras dessa altura e compare com os rostos que compõem o
hemiciclo português, na atualidade, e a deceção é tremenda. A
capacidade de atrair os melhores e com os melhores projetos para a
ação política diminuiu exponencialmente. A cena política tende a
ser ocupada por elementos provenientes das juventudes partidárias e
que aprenderam na escola do vício os truques da sobrevivência
política. Felizmente, há muitas excecções, mas são os profissionais
do aparelho é que dominam, ainda para mais a democracia
participativa por parte da sociedade civil tem pouca intervenção
nas decisões. A classe política e a elite do poder registam um
empobrecimento muito preocupante. E, voltando à questão que me
colocou, quando surgem pessoas com boa vontade e alguma dose de
idealismo o aparelho tende a esmagá-las e a fazer delas bodes
expiatórias, como aconteceu com a ex-ministra da Administração
Interna. Constança Urbano de Sousa pagou, em termos mediáticos, a
fatura de uma incapacidade estrutural do Estado português e que não
pode ser atribuída a nenhum ministro em particular.
A elite política que nos
governa é dominada por tecnocratas com pouca sensibilidade para
temas, como por exemplo, a cultura?
É, de um modo geral, uma elite impreparada, com falta de reflexão,
que ocupa muito do seu tempo a urdir estratégias políticas de
sobrevivência. Sobra pouco tempo para ler, estudar e pensar. Não
admira que o nível do debate seja, globalmente, baixo. Seria, por
isso, muito importante uma renovação da classe política e a
introdução de novos mecanismos de democracia participativa de forma
a que a classe política ouvisse mais as vozes da sociedade
civil.
A comunicação social é o espelho da sociedade e a TV é a
grande janela da maior parte dos portugueses para o mundo. É
possível que um dia os reality shows e o futebol abandonem o «prime
time» televisivo?
Preocupa-me o mercantilismo demagógico em que o critério da venda
é o único a considerar. Deixe-me louvar a RTP, que durante o
período em que Nuno Artur Silva esteve no conselho de administração
fez um esforço sério para equilibrar a resposta aos gostos do
público com propostas mais alargadas. Este estado deriva do
falhanço educativo e também pelo facto de as nossas elites
culturais estarem muito fechadas sobre si próprias e tendem a não
se empenhar na partilha do seu trabalho e da sua experiência.
Metade da minha atividade de musicólogo é de divulgação. Faço
conferências, programas de rádio, vou a escolas, etc. E esse tempo
é retirado da minha investigação direta, mas eu creio que esse é um
dever ético do qual não abdico. Por isso entendo que os artistas,
os inteletuais e os académicos têm uma responsabilidade individual
de partilhar os resultados do seu trabalho com as pessoas. Se não o
fizerem, a sociedade não beneficiará de um trabalho que, no fundo,
está a pagar. As pessoas da cultura devem combater a
estupidificação e a tentativa de manipulação permanente. E é
fundamental que se criem espaços de debate e de diálogo. A
feudalização e a balcanização do universo da comunicação está bem
visível nos Estados Unidos em que os apoiantes de Trump só
sintonizam a Fox News, enquanto os seus detratores só veem a
CNN.
Dirige o programa de Língua e Cultura da Fundação Calouste
Gulbenkian. Esta fundação tem sido um ministério da Cultura
informal durante décadas?
A Gulbenkian foi o ministério de tudo. Foi da cultura, da saúde e
até da educação. Já não é, felizmente. Primeiro porque a sociedade
civil se desenvolveu, o Estado assumiu responsabilidades que
tradicionalmente não assumia e também porque os meios da Fundação
já não lhe permitem ter a banda larga de intervenção do passado. A
Fundação, hoje em dia, age de maneira cirúrgica e em campos onde
entende que pode fazer a diferença, no sentido da inovação e do
conhecimento. E é precisamente isso que fazemos no programa de
Língua e Cultura. Procuramos apoiar a difusão internacional dos
artistas e criadores portugueses, na literatura, nas artes
performativas, no cinema, etc.
Para concluir abordemos a Língua Portuguesa. Acha que tem
sido um ativo desaproveitado e que, nomeadamente, ao nível da CPLP,
os interesses económicos têm contaminado a estratégia
conjunta?
A CPLP tem sido muito ineficaz no âmbito da língua e da cultura,
funcionando sobretudo na área das relações económicas - que é
importante - mas dinamiza pouca reflexão sobre questões culturais.
A Língua Portuguesa tem uma difusão gigantesca, em especial no
hemisfério sul, e tem um potencial muito maior do que representa
neste momento, por exemplo, em termos de língua de atividade
profissional.
Os portugueses são sempre muito solícitos em falar a
língua dos estrangeiros que nos visitam. Isso é uma forma velada de
subserviência?
Acaba por ser. É uma situação típica de países que foram em termos
políticos e económicos periféricos em relação aos grandes poderes e
que se habituaram à ideia de que têm de falar a língua do senhor.
Interiorizámos que temos de falar bem a língua do patrão. Não quero
com isto dizer que não devemos aprender línguas estrangeiras, mas
deve haver um esforço para equilibrar o uso da nossa língua e o uso
das outras línguas.
Cara da
Notícia
Um Profundo Conhecedor da
Canção Nacional
Rui Vieira Nery nasceu em Lisboa,
em 1957. Musicólogo e historiador musical, é professor da
Universidade Nova de Lisboa e diretor do Programa Gulbenkian de
Língua e Cultura Portuguesas - na Fundação foi também
diretor-adjunto do Serviço de Música e diretor do programa Educação
para a Cultura. Licenciado em História pela Faculdade de Letras de
Lisboa, doutorou-se em Musicologia pela Universidade do Texas, em
Austin. Rui Vieira Nery desempenhou, entre diversos outros cargos,
o de secretário de Estado da Cultura (1995-1997), comissário das
Comemorações do Centenário da República Portuguesa e de presidente
da Comissão Científica da candidatura do Fado à Lista
Representativa do Património Cultural imaterial da Humanidade
(UNESCO). Pela obra que tem publicada, é seguramente, o português
que melhor conhece a história e a evolução do Fado, das raízes até
à atualidade. No início de 2018 foi distinguido com o Prémio
Universidade de Coimbra, que irá receber no próximo dia 1 de março,
durante a sessão solene comemorativa do 728.º
Nuno Dias da Silva
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