João Maria Marçal Grilo, fundador da Unity in Health
Um português no mundo da saúde mental
João Maria Marçal Grilo, 45 anos, é
fundador da Organização Não Governamental Unity in Health, com sede
em Londres. Uma ONG que desenvolve a sua atividade, na área da
saúde mental no Nepal e no Sri Lanka. Formado em geografia,
com mestrado em Estudos de Desenvolvimento e formação em saúde
mental, João Marçal Grilo prefere ser ele próprio, sem títulos
académicos associados. Em entrevista ao Ensino Magazine, respondida
por email, explica o que o levou a criar a ONG e de intervir na
Ásia.
Como é que um geógrafo, com um mestrado em Estudos de
Desenvolvimento, se dedica ao voluntariado e cria a sua própria
ONG?
Sou geógrafo só de nome. Aliás, prefiro não me agarrar a qualquer
tipo de titulo profissional - num país de tantos doutores e
engenheiros como Portugal, precisamos de nos livrar de títulos ou
hierarquias e focar-nos nos nossos nomes, no conteúdo, nas pessoas.
Qualquer pessoa pode criar uma ONG. Mais do que uma formação ou
experiência de vida, o que me parece mais importante é ter uma
paixão, uma causa, um querer investir em algo que ache que vale a
pena. E interesses, paixões e motivação, todos podemos ter, devemos
ter - mas é preciso saber despertá-las. Eu tive a sorte de ser
encorajado e motivado, tanto na escola, como em casa. O papel
dos pais e dos professores - de bons professores, dum ensino que
estimule a reflexão e o sonhar - é fundamental.
Quando é que decidiu que esse seria o seu objetivo de vida?
E o porquê da aposta ser na área da saúde mental?
Não lhe chamaria o meu objetivo de vida. É um dos muitos planos que
sempre tive, uma das muitas ideias que quis tentar seguir. Vejo a
vida como algo demasiado rica e variada para termos um único
objetivo! Desde pequeno que quis sair de Portugal, viajar, estar
perto da terra, dos animais, das pessoas. Pouco a pouco fui
escolhendo caminhos que me levaram até à saúde e ao desenvolvimento
num contexto internacional. A saúde mental é uma das áreas
clínicas mais ignoradas e inclusivamente desprezadas tanto pelas
sociedades em geral, como por variados governos nacionais e
regionais - é uma tendência comum não só em países com menos
recursos, mas também no mundo ocidental. Juntamente com os meus
colegas - porque o projeto da Unity in Health não é um projeto a
sós. Decidimos focar-nos nesta área mais esquecida, por acharmos
que, precisamente por isso, merecia toda a nossa atenção. A nossa
contribuição é uma pequena gota de água num mar de necessidades
imenso, mas pouco a pouco e em colaboração com outras organizações
e indivíduos, acreditamos que podemos contribuir para alguma
mudança.
Está a desenvolver programas de voluntariado no Nepal e no
Sri Lanka. Que programas são esses e o que eles representam para a
população apoiada?
A Unity in Health é uma organização cuja missão se concentra em
ajudar enfermeiros, médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e
muitos outros que trabalham em países menos desenvolvidos, a
adquirirem mais conhecimentos e aptidões em saúde mental.
Pretendemos ajudar estes profissionais de saúde, bem como aqueles
que não têm formação mas que substituem os profissionais onde estes
não existem, a dar o melhor apoio possível a pessoas afetadas por
problemas mentais e emocionais. Em países como o Nepal e o Sri
Lanka, conta-se pelos dedos das mãos o numero de psiquiatras,
psicólogos e enfermeiros de saúde mental. As carências de pessoal
formado são gritantes. Temos um numero restrito de projetos em
ambos países, todos na área da formação: No Sri Lanka, por exemplo,
estamos a formar enfermeiros na prestação de serviços em comunidade
ao domicílio; no Nepal, treinamos profissionais que trabalham em
dois pequenos centros para sem abrigos com problemas mentais, bem
como com psicólogos que prestam ajuda a crianças Nepalesas
traficadas para a Índia, onde são submetidas a níveis inimagináveis
de abusos físicos, psicológicos e sexuais. Treinamos os psicólogos
e enfermeiros a oferecer terapias a estas crianças, adequadas ao
seu estado psicológico e necessidades emocionais - A maioria volta
para o Nepal com graves problemas de stress pós-traumatico.
Como é que no terreno o
vosso trabalho é desenvolvido e como é que é medida a sua
eficácia?
Grande parte do nosso trabalho é feito através de um programa de
voluntariado, que consiste em profissionais de saúde trabalharem
lado a lado, por períodos específicos de tempo, com os seus
congéneres tanto no Sri Lanka como no Nepal. Temos um processo de
seleção de voluntários bastante exaustivo - todo o interesse é bem
vindo, mas temos muito claro que a Unity in Health não promove o
turismo de voluntariado. Procuramos pessoas com conhecimentos e
aptidões muito
especificas, e acima de tudo com capacidade para trabalhar em
locais onde o conforto é escasso. A outra parte do nosso trabalho
concentra-se na distribuição de materiais de informação - livros e
outros instrumentos essências para a aprendizagem dos estudantes de
saúde - e esperamos também dentro de pouco entrar na área de
investigação - no mapeamento da saúde mental e dos serviços
existentes nas regiões onde já trabalhamos.
A eficácia nem sempre é fácil de medir. Mas ter um sistema de
avaliação é essencial para entendermos o impacto das nossas ações.
Para além de avaliarmos os estudantes e profissionais com quem
vamos trabalhando, produzimos relatórios semestrais sobre o avanço
de cada projeto, para tal recolhendo feedback e informação dos
parceiros com quem colaboramos - no fundo os que estão na melhor
posição para avaliar o nosso contributo, e identificar áreas onde
podemos trabalhar mais, e melhorar.
Normalmente a sociedade olha para as ONG como instituições
de voluntariado. Mas manter uma organização como a sua, não será
fácil. Tem conseguido apoios para a manter em funcionamento, para
fazer face aos custos inerentes à sua dinâmica?
Conseguir financiamento é de facto um dos nossos maiores desafios.
São muitas as ONGs em funcionamento no Reino Unido, e por isso a
competição é grande. Também temos a questão acrescida da saúde
mental não ser um tema que desperta a atenção de muitos.
Infelizmente continua a ser para muitos um tema a evitar, a
esconder, a ignorar, porque os preconceitos. O estigma em volta das
doenças psiquiátricas e emocionais continua a ser grande, mesmo em
países como Portugal ou Inglaterra. A ideia de que uma ONG é uma
instituição de voluntariado é contudo errada. É impossível esperar
ou desejar que uma ONG funcione à base do voluntariado. Qualquer
organização, com fins lucrativos ou não, precisa de ser gerida, bem
gerida, para ser sustentável e atingir os objetivos a que se
compromete. Também é importante que comecemos a ver o trabalho das
ONGs como uma peça importante no desenvolvimento não só social, mas
também económico de regiões e países mais desfavorecidos. O
trabalho de uma ONG não assenta na caridade - um termo com o qual
pessoalmente não tenho grande afinidade, visto que a meu ver
perpetua uma relação de dependência e de superioridade, do que dá
ao mais pobre, para se sentir bem consigo mesmo. Ao contrario, o
trabalho de qualquer ONG deve estar assento em conceitos mais sãos
e igualitários, como o da solidariedade, em que se trocam
conhecimentos e experiências, para o beneficio de todos.
Por agora temos contado com a ajuda de organizações ligadas ao
mundo da saúde em Inglaterra, bem como alguns privados. Mas
precisamos de trabalhar mais na nossa estratégia de angariação de
fundos, de forma a envolver mais pessoas, e a poder continuar a
apoiar quem mais precisa nas regiões onde trabalhamos - mulheres,
crianças e idosos com problemas de saúde mental e em situação de
pobreza, que tem poucas ou nenhumas oportunidades de aceder a
profissionais de saúde com as qualificações e experiência adequadas
para os apoiar.
E a relação com os governos/entidades desses países tem
sido frutífera, ou pelo contrário têm existido
dificuldades?
De uma forma geral, bastante positiva. A saúde mental esta no fundo
da lista de prioridades da maioria destas entidades. São países com
carências a variadíssimos níveis, onde a doença mental é muitas
vezes associada à bruxaria, à loucura e ao perigo, dai o desprezo e
negação. O trabalho de prevenção e sensibilização é por isso
fundamental. Há que mudar perceções entre os profissionais de
saúde, entre as populações, mas também entre quem governa. Nas
relações com entidades nacionais e locais temos, acima de tudo, que
manter sempre uma atitude de igualdade e não de superioridade
- algo que infelizmente acontece no trabalho de algumas ONGs
ocidentais.
E a relação com a população? A vossa intervenção é bem
aceite?
O trabalho em saúde mental desperta muitas emoções - positivas
naqueles que são ajudados diretamente, bem como nas suas famílias e
amigos. Como uma ONG relativamente nova, temos sorte em trabalhar
com parceiros locais de grande qualidade - organizações que
conhecem bem o terreno, e que estabelecem pontes de comunicação
fundamentais para o sucesso do nosso trabalho. É um longo trabalho
de sensibilização. A mudança é possível, mesmo acontecendo a um
ritmo lento e moroso. Mas há resistências, principalmente entre
comunidades onde a doença mental é vista como algo extremamente
negativo. Daí o trabalho de sensibilização ser tão
importante.
Neste processo de voluntariado certamente que houve
situações que o marcaram...
Sinto-me um sortudo. Tive muitas experiências inesquecíveis ao
longo da minha vida pessoal e laboral, que de uma forma ou outra
sempre se misturaram. A fazer trabalho de voluntario ou pago, todas
as boas experiências foram marcadas por pessoas - por conhecer uma
pessoa extraordinária, por me encontrar com alguém num local de uma
beleza memorável, por admirar o esforço que tanta gente põe na
ideia de tentar fazer este mundo um pouco melhor e mais justo para
todos. São muitas as situações, difícil de identificar uma
especifica. Talvez neste momento o que mais me fascina e admiro, é
a dedicação dos colegas com que trabalho no Nepal - enfermeiros e
enfermeiras que, por menos de 100 euros por mês, dedicam todo o seu
tempo e energia a apoiar indivíduos com doenças mentais profundas.
Colegas que gastam três horas por dia para chegar ao trabalho, e
voltar a casa, metidos em autocarros a cair de podre, que se
arrastam por estradas poeirentas no vale de Catmandu. Que quando
voltam para casa, voltam em muitos casos para uma casa feita de
lata, onde em duas divisões vivem 6 ou 7 pessoas. Que se deitam
tarde a cozinhar ou ajudar os filhos com os trabalhos de casa, para
no dia seguinte se terem de levantar novamente às 5 da manha, e
começar mais um dia de trabalho. E que mesmo assim conseguem fazer
tudo com um sorriso no rosto. Eles sim, são uns verdadeiros heróis.
A Unity en Health pode vir a alargar a sua intervenção a
outros países?
Sim, gostaríamos de expandir o nosso trabalho para outro países no
sul da Ásia - nomeadamente o Bangladesh, India e Paquistão. Mas
também gostaríamos de intervir Africa e no Médio Oriente. Tudo
depende de espaço de manobra financeira, bem como de recursos
humanos adequados. Mas passo a passo, acho que podemos lá
chegar.
Mudando de assunto, ainda jovem decidiu sair de Portugal e
ir para Londres. Esse foi o ponto de viragem na sua
vida?
Não sei se alguma vez tive algum ponto de viragem. Prefiro ver cada
passo que dou como algo natural, que faz parte de um processo de
crescimento, e de gosto pela vida. Nunca sabemos quanto tempo vamos
andar por cá, por isso gosto de arriscar, sem medo de cair e de me
magoar. É nesses momentos que tendemos a realmente crescer - quando
caímos, e nos apercebemos de que somos frágeis, mas também seres
adaptáveis e com uma capacidade de recuperação incrível. Mas
mudar-me para Inglaterra foi de facto um passo grande, pelo menos
para um adolescente que era na altura. Mas sempre o quis fazer, por
isso agarrei a oportunidade de pular para fora sem se quer
pestanejar uma vez.
Cara da
notícia
João Marçal Grilo deixou cedo
Portugal. Filho do arquiteto albicastrense Luís Marçal Grilo e de
Madalena Marçal Grilo que até há pouco tempo foi diretora executiva
da Unicef em Portugal, é licenciado em Geografia e Planeamento
Regional na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa (curso que termina em Aberdeen, Escócia, através do
programa Erasmus). Em 1995, João Marçal Grilo muda-se para Londres,
onde faz um mestrado em Estudos de Desenvolvimento (Third World
Development Studies). Trabalhou numa consultora e depois de dois
anos a viajar pela América do Sul e pela India, volta para a
faculdade em Londres, para concluir um curso de Enfermagem de
Psiquiatria. Esteve oito anos a trabalhar em diversos serviços de
saúde mental em Londres, participou, durante dois anos num projeto
de saúde mental no Sri Lanka, com a organização britânica VSO -
Voluntary Service Overseas. De regresso a Londres, em 2014, cria,
com amigos, a Unity in Health, da qual hoje é diretor.