Rui Zink, escritor e professor universitário
«Existe um esvaziamento da função do professor»
Desconcertante, irónico e politicamente
incorreto. Em discurso direto, Rui Zink identifica demonstrações de
fascismo nas sociedades modernas, aborda o «caso Joacine» e traça o
diagnóstico do sistema de ensino, sem esquecer um regresso ao
passado para recordar "A noite da má língua."
É um grande estudioso do regime do Estado Novo e na badana
do seu mais recente livro, "Manual do bom fascista", define-se como
um «especialista em "fachologia"». Pode trocar por miúdos o que é a
«fachologia»?
Em primeiro lugar, eu aprendi com os meus poetas mestres, Alberto
Pimenta, e também com o José Vilhena, que até o paratexto é texto.
O mais pequeno elemento, mesmo constando apenas na badana de um
livro, já é parte do prazer. E neste caso, mudei a minha biografia,
que não interessa nem ao Menino Jesus, adequando-a a este livro. A
própria foto, que acompanha a badana, também é adequada. Estava a
passear com o meu amigo Amos Amitz e desafiei--o a tirar uma foto,
com a pior cara de mau possível, porque eu já estava a pensar nesta
ilustração. Respondendo em concreto à sua pergunta, a «fachologia»
é o estudo do fascismo, entendido de uma forma peculiar, que é a
minha. Eu considero--me, antes de mais, um especialista porque
nasci numa sociedade oficialmente patenteada como fascista. O
salazarismo tinha mesmo o selo de autenticação da história. Quem
nasceu, como eu, naquele regime, não sai dele. É a velha história
do podemos tirar o rapaz da ditadura, mas não tiramos a ditadura de
dentro do rapaz.
E qual é a tese que defende para explicar os comportamentos
fascistas?
A minha tese é a seguinte: todos nós temos todas as paletas do
humano. A conclusão de três mil anos de história da humanidade é
que todos nós somos capazes dos piores crimes. Repare que até
Heidegger, o maior filósofo do século XX, foi nazi. Isto, para mim,
entra em contraponto com os que dizem que o nazismo foi apenas um
momento histórico ou que os nazis são como os pretos, os judeus ou
os ciganos, notam-se por sinais exteriores. É uma grande estupidez
- que a própria esquerda comete - considerar que há os «outros» e
há os «eles». Eu considero que quando alguém aponta o dedo a outro
já está no bom caminho para ser fascista.
Todos nós temos telhados de vidro?
É verdade, e se os telhados se partem podem dar facas. Para mim é
muito mais didático dizer que o fascismo está dentro de mim, do que
dizer o fascismo está fora de mim.
A páginas tantas do livro desafia os leitores a fazerem um
teste de auto-avaliação, uma espécie de «fachómetro». Este livro é
um misto de provocação, humor e ironia?
Acima de tudo, acho que é um manual educativo e didático, como
aliás são todos os meus livros. Aprecio muito a expressão latina
«ridendo castigat mores» («é a rir que castigamos os costumes»). Eu
sou o único escritor português que se apresenta sempre como
professor e escritor, o que me dá grandes amargos de boca, porque
levo bala, quer da esquerda, quer da direita. Sou assumidamente um
desalinhado e se fosse um país socialista estou certo que seria a
Jugoslávia no tempo do Tito. O objetivo deste livro passa por
ajudar as pessoas a perceber que cada um de nós tem em si um
potencial grunho e que não é só vendo grunhos nos outros que
melhoramos o mundo. No fundo, todos nós somos monstros em potência.
Basta termos uma farda ou ter na mão um poder mais excessivo, para
sermos terríveis.
As caixas de comentários nas redes sociais são uma forma de
as pessoas terem palco e exibirem o seu lado mais terrível, sem se
exporem?
Eu não as critico. Elas, no fundo, trazem para o presente o que
sempre houve em Portugal, as caixas de denúncia anónima. Tenho
muita desconfiança dos intelectuais auto-satisfeitos, que estão no
castelo da crónica paga. E o que querem é o monopólio da voz - no
fundo, uma forma de fascismo nos dias de hoje.
Onde é que vê mais sinais de fascismo na nossa
sociedade?
A crispação na sociedade e no mundo leva a que fiquemos estúpidos.
Vejo isso, por exemplo, no humor. Certos humoristas, em vez de se
rirem dos que têm poder para apanhar, riem-se dos mais fracos. Acho
isso perigoso. Mesmo humoristas inteligentes começam a fazer coisas
muito estúpidas. É um fenómeno a que eu chamo a
«pacheco-pereirização» do mundo português. Cada um pensa que tem a
razão toda e não dá espaço para os outros.
Quer partilhar um caso
concreto?
O juiz Neto de Moura foi castigado pelos deuses da sátira e
humilhado publicamente, em concreto por Ricardo Araújo Pereira
(RAP), que recorreu ao abuso de poder para com o pobre magistrado,
que já estava na lama. RAP - talvez hoje em dia o homem mais
poderoso em Portugal - reclama para si o direito à crítica, mas não
aceita que o critiquem. O abuso de poder é um dos sinais do
fascismo. Isto é o princípio do ditadorzinho. RAP é brilhante e
genial no que faz, por isso, faço votos que isto seja uma fase
passageira.
Considera que o fascismo é só da direita, ou também existe
no espetro mais à esquerda?
Há fascistas de esquerda. Em França, por exemplo, vemos muitos
votos passarem, diretamente, da esquerda para o partido de Le Pen.
Há países onde já estão a ser eleitas figuras autoritárias: Orbán,
na Hungria, Salvini, em Itália, Duterte, nas Filipinas, este último
gabava-se mesmo de ter assassinado rivais. Há o caso do Vox em
Espanha e dos partidos nazis na Alemanha que conquistaram eleições
regionais. O mundo está a passar por um estrangulamento. Trump não
é uma causa, é um sintoma. O autoritarismo está de novo na moda e
com o apoio de muita gente.
Nas eleições legislativas de outubro emergiu o Chega de
André Ventura. Na sua opinião, deve-se ignorar ou responder à letra
às críticas do deputado?
Vou ignorar a pergunta.
Mas temos muito que falar sobre André Ventura…
Há pouco critiquei os humoristas, agora vou criticar os
jornalistas. Os jornalistas reclamam para si mesmo o monopólio do
interrogatório legítimo. E padecem, como todas as profissões, de um
defeito infantil que é o de não aceitar um «não» como resposta,
definindo unilateralmente o "timing" de uma conversa ou entrevista.
São abusadores sexuais em potência do pobre entrevistado. Isto
ultrapassa os limites da decência.
Vivemos num mundo onde os "ismos" imperam: são os
populismos, os fascismos, os extremismos e os racismos. «O mundo
está cada vez mais perigoso», como dizia Vítor Cunha
Rego?
O tempo atual lembra-me muito as viagens para Cacilhas no inverno
da minha infância, em que o barco metia muita água. O mar está
turbulento e os golpes de teatro sucedem-se. Quer um exemplo? O
Coronavírus é um golpe de teatro. A China estava economicamente "a
bombar" e, de um momento para o outro, "desbombou", com implicações
para a economia mundial. Isto acontece porque estamos todos
ligados.
É o lado mais perverso da globalização?
Aquilo que ia ser o paraíso da informação, acessível a toda a
gente, afinal revelou-se um inferno. Tenho mais conhecimento
acessível a partir do meu telemóvel, à distancia de um clique, do
que se me dirigir à Biblioteca Nacional. E o que se passa é que são
poucos os interessados em ir buscar conhecimento. Prefere-se a
informação ou…a pornografia. Pela primeira vez, o mundo é mais
inteligente do que nós. Estamos numa fase de descrença.
Em que período da história recente é que a humanidade emanou
uma ideia de felicidade e de esperança?
Para mim, as datas centrais são duas: 1918 e 1945. Têm em comum o
facto de as duas promessas de regime que dominaram o século XX
estarem a florescer. O comunismo e o capitalismo norte-americano
eram duas belas promessas de futuro. Existia uma euforia e um
otimismo generalizado. Até para Portugal. Neste momento, não
vivemos o pior momento do mundo, mas vivemos numa arrogância
estúpida e malcriada, sem respeito pelos mais velhos.
Ainda há não muito tempo Salazar foi eleito o português do
século XX. Existem muitos saudosos do regime?
Salazar ser eleito é para o lado que durmo melhor. Sabe porquê?
Porque ele está morto. E quem o venera ainda não percebeu isso. Mas
é muito mais fácil nos tornarmos estúpidos do que ficarmos
inteligentes. Ceder aos monstros que temos dentro de nós é fácil,
até porque há uma volúpia do mal, o mal é sexy. A frustração
precisa de uma figuração ou um símbolo onde se congregue, por isso
é que haverá sempre saudosos do regime. Não é por acaso que os
grandes populistas também são comentadores de futebol. E é também
no futebol que mais se congrega o bando punitivo parecido com as SA
nazis. A invasão da academia de Alcochete é um ato de fascismo de
uns indivíduos que iam dar o justo corretivo àqueles «judeus». Os
jogadores do Sporting, naquele momento, eram o «outro». Existiu uma
fratura de crise, que os fez deixarem de ser «nós», exatamente como
os judeus na Alemanha. Isto é um impulso fascista no seu estado
mais puro. Mas se tirarmos a máscara aos invasores, verá que são
apenas rapazes, que tiveram um momento de profunda estupidez.
Diz que Portugal é um «império de sonsos». Pode explicar
melhor?
Se me permite, eu respondo com uma pergunta: tem alguma questão
para mim sobre a Joacine?
Por acaso, não tinha previsto no alinhamento…
Joacine Katar Moreira é, tal como Alcochete, o exemplo de uma
amostra de laboratório do fascismo em marcha em Portugal. O caso
Joacine é o grande espelho do nosso potencial fascista e vai ficar
como um "case study". Sendo que o ataque a Joacine tem a
particularidade de ser muito mais coletivo. O sonso é a pessoa que
não se percebe qual é a posição que toma ou que a toma depois de
ver o que é que está a dar. Isto é uma atitude muito portuguesa,
treinada por séculos de fascismo e inquisição. Caiu sobre Joacine
uma orgia coletiva de ódio pelos terríveis pecados que ela cometeu.
E houve um sonso mor, chamado Rui Tavares, que insistiu para que
ela concorresse a deputada. Porque ela não queria concorrer. Estou
certo que daqui a uns anos, vai andar de boca em boca, a seguinte
pergunta: «onde é que tu estavas quando houve esta orgia coletiva
de ódio a Joacine Katar Moreira?»
Mas a tal «orgia coletiva de ódio» sobre a deputada acontece
por ela ser mulher e negra?
Sim, foi por ter uma série de traços que incomodavam o nosso
inconsciente e todos os erros que Joacine terá cometido ganharam um
empolamento inusitado. É uma neurose.
Foi professor de liceu e acumula muitos anos como professor
universitário. Como carateriza o sistema de ensino em Portugal, em
termos das suas principais debilidades?
Ao nível do liceu, tenho a perceção que há uma excessiva
burocratização e desautorização do professor. A ferida aberta pela
ex-ministra, Maria de Lurdes Rodrigues, ainda não foi fechada. Há
uma arrogância e uma petulância que contribuiu para o esvaziamento
do poder e bem estar dos professores. Fui professor de liceu
durante quatro anos e adotava estratégias didáticas que hoje seriam
inaceitáveis. Não sou saudoso do tempo em que o professor podia dar
reguadas nos alunos, mas convém que a figura do professor tenha
instrumentos de autoridade. O que eu vejo é que neste momento
existe um esvaziamento da função do professor.
O professor está desamparado na sua retaguarda?
É importante que exista um Conselho Diretivo forte, que esteja
entrosado e do lado dos professores. Se não houver, os professores
sentem-se abandonados, com uma sensação de medo e depressão. Se o
professor não estiver bem, a aula não funciona.
Os recentes casos de violência contra docentes são sinais do
mau estar?
A epidemia de violência contra os professores tem de acabar. E
para isso é preciso punir. Um pai que agrida um professor deve
passar dois dias no calabouço. E perante um professor abandonado e
um grupo de adolescentes com demasiado poder, não é de estranhar
que tenhamos comportamentos fascistas. Em bando, todos nós podemos
virar matilha.
A escola pública tem vindo a perder peso e prestígio para a
escola privada?
Eu parto desta premissa: «diz-me onde o ministro põe os seus
filhos a estudar e dir-te-ei quem és.» O esvaziamento do ensino
numa era democrática beneficia quem tem dinheiro para colocar os
filhos a estudar noutros estabelecimentos. Eu possibilitei aos meus
filhos estudarem no estrangeiro porque o maior benefício que lhes
podia dar era eles serem cosmopolitas e terem mundo. Custou
dinheiro? Sim, mas eu não sou ministro da educação. Não pense que
estou de má fé, mas em teoria já viu que a melhor forma de eu
facilitar a vida dos meus filhos é baixar a qualidade de ensino dos
seus futuros concorrentes, para os meus filhos serem os únicos a
ter 18 valores? Se eu puder ser ministro de um governo que tem
muito amor pela educação, então eu tenho a «arma» certa. Nos meus
momentos mais tristes, suspeito que há um complô interpartidário -
ou intercasta - para baixar o nível do ensino e para deprimir os
professores. E professores deprimidos não podem ser bons.
Quem é que protagoniza esse «complô
interpartidário»?
É uma espécie de Maçonaria ou Opus Dei secreta.
Foi um dos elementos do mítico programa da SIC, "A Noite da
má língua", em 1994. Que recordações guarda?
Quando entrei, eu senti-me como o Ringo Starr, dos Beatles, porque
o Lennon e o McCartney eram o Miguel Esteves Cardoso e o Manuel
Serrão. Sabia que não tinha o talento dos outros, mas percebi que
ou trabalhávamos em equipa ou morria. Antes de eu entrar havia
muita crispação e o ambiente - coincidência ou não - melhorou,
inclusive com a entrada da Rita Blanco.
Já não se fazem tertúlias como antigamente?
O que vejo é que muitos destes programas, em 2020, são autênticos
"Clube do Bolinha". Atualmente, o "Eixo do mal", o "Governo sombra"
ou "O último apaga a luz são", em termos de casca, o mesmo que nós
éramos na década de 90. Qual é a diferença? Nós somos de um tempo
pioneiro em que nunca tínhamos tido tanta liberdade e não
ambicionávamos ser profissionais da televisão. "A noite da má
língua" representou uma era de inocência, qual cavaleiro medieval
em que atacámos o dragão, porque éramos destemidos.
A profissionalização dos comentaristas tem sido
nociva?
O que acontece é que muito dos atuais participantes são pessoas
inteligentes, só que estão permanentemente a olhar-se ao espelho.
Não passaria pela cabeça de ninguém o Presidente da República
convidar os integrantes de "A noite da má língua" para participarem
nas cerimónias do 10 de Junho.
Está a referir-se a João Miguel Tavares, que presidiu às
comemorações do 10 de Junho, em 2019…
Sim, e a Pedro Mexia, que é assessor do Presidente, e a RAP, que
foi no "Falcon" com Marcelo para discursar em Nova Iorque. Estamos
num momento em que o tipo que critica o poder está mancomunado ou
mesmo a trabalhar para quem exerce cargos políticos. Pergunta-me se
estou com inveja, nomeadamente do Pedro Mexia? Estou, mas gostava
francamente de saber como é que se consegue estar, ao mesmo tempo,
contra o poder e do lado do poder. Ele representa o sistema e
satiriza o sistema. É o melhor de dois mundos, sem ter nenhum dos
males. Pedro Mexia, João Miguel Tavares, RAP e Carlos Vaz Marques,
todos eles acionistas em projetos editorais, são barões poderosos,
com tentáculos em vários lugares, que uma vez por semana fingem que
são provocadores.
Nuno Dias da Silva
Nuno Dias da Silva