Entrevista

José Milhazes, correspondente em Moscovo e historiador
O repórter que ficou no frio

milhazes5.JPGHá 34 anos trocou Portugal pela então União Soviética e nunca mais regressou ao seu país natal, excepto para curtos períodos de férias. Testemunha privilegiada de grandes momentos da história recente, que coincidiram com a queda da "cortina de ferro", José Milhazes é o "nosso" homem em Moscovo. Depois de Carlos Fino, Portugal continua a ter um carismático e conhecedor jornalista no leste europeu.

A Rússia tem sido notícia pela estranha dança de cadeiras entre Putin e Medvedev, revezando-se na presidência e na liderança do governo. O que une estes homens?

O controlo do poder e dos interesses a ele ligados.

Putin culpa os Estados Unidos pelos protestos massivos depois das eleições. As constantes acusações de fraude e falta de transparência não são um recuo para uma potência que parecia trilhar um rumo democrático?

milhazes4.JPGDesta vez, tratou-se de um avanço, porque as fraudes acordaram parte significativa da sociedade civil russa. Resta saber como se irão desenrolar os acontecimentos, no sentido da democratização ou da estagnação do sistema existente.

Pensa que a liderança bicéfala de Putin e Medvedev pretende recuperar o estatuto de império perdido após a independência das repúblicas soviéticas?

Na Rússia não há liderança bicéfala, pois é Vladimir Putin quem manda. Se o objectivo for recuperar o império perdido, a Rússia arrisca-se a perder-se a si própria. A Rússia poderá transformar-se num núcleo de integração na parte oriental da Europa e na Ásia Central, mas será um processo longo e sinuoso, pois trata-se da aproximação de regimes muito diferentes do ponto de vista político, económico e social.

 

Fez no passado dia 26 de Dezembro, 20 anos sobre o desmantelamento da URSS. Com o fim do mundo bipolar, entre Washington e Moscovo, que vigorou durante a guerra fria, pode dizer-se que a Rússia ainda vive uma crise de identidade e sente a falta de um inimigo externo definido?

Sim, o país vive uma crise de identidade, em grande parte devido à indefinição da elite russa. Os dirigentes russos tentam manter a imagem do inimigo externo: NATO, Estados Unidos, mas esta política não cativa toda a sociedade russa. Tendo em conta a globalização, a internet, etc., o poder na Rússia tem cada vez mais dificuldade em manipular os seus cidadãos e isso ficou visível durante as últimas eleições parlamentares de 4 de Dezembro, quando o poder não conseguiu esconder as falsificações e fraudes.

Foi testemunha privilegiada da queda da "cortina de ferro". Como viveu esse turbilhão de emoções?

milhazes3.JPGUma experiência única como pessoa e como jornalista. Participei na história.

Muitos cidadãos russos são notícia por esse mundo fora. É conhecida a proliferação de fortunas colossais de milionários originários da ex-URSS, alguns deles exilados em Londres para evitar as máfias russas, como é o caso do patrão do Chelsea FC, Roman Abramovitch, que enriqueceu alegadamente através do negócio do petróleo. Como se constroem estes autênticos contos de fadas?

Raramente de forma honesta. Essas fortunas nascem da promiscuidade entre o poder e os homens de negócios, da corrupção total existente no país. Abramovitch não está exilado em Londres, mas vive legalmente tanto na Grã-Bretanha como no seu país. Penso que ele não está entre os que fogem das máfias russas.

Está há 34 anos a residir na Rússia, quando em 1977 abandonou a sua terra natal, a Póvoa do Varzim, e rumou a leste. O que o levou a partir pouco depois da revolução de Abril?

Era um jovem militante da União dos Estudantes Comunistas e sonhava estudar num "país socialista". Além disso, a minha família não tinha possibilidades económicas de me permitir estudar na universidade.

Como se vê daí Portugal, a cerca de 5 mil quilómetros de distância? Os jornais russos veiculam notícias do nosso país?

Os jornais russos publicam notícias do nosso país e, infelizmente, pelas piores razões: crise, desemprego, etc. Portugal é um país que não provoca alergia entre os russos, pelo contrário, é olhado com muita simpatia.

Dois governantes, um deles o próprio primeiro-ministro, Passos Coelho, incentivaram os portugueses a emigrarem em busca de emprego e melhores condições de vida. Como emigrante há mais de três décadas, acha que a sua vida teria sido igualmente desafiante e preenchida se tivesse ficado em Portugal?

Não, mas eu saí de Portugal para estudar, e não para trabalhar. Quando se sai de Portugal, fica-se com uma visão do mundo mais ampla, mas não se deve confundir isso com emigração. Este fenómeno, actualmente, será favorável à economia portuguesa a curto prazo, pois diminui a pressão no mercado do trabalho, aumenta a transferência de dinheiro dos emigrantes para o país, mas terá consequências muito funestas a longo prazo. Hoje, emigram jovens; cultos, formados, e não mão de obra simples como no passado. Trata-se de uma autêntica fuga de cérebros, pois os mais qualificados vão à procura de melhores condições. Este processo também não contribuirá para o melhoramento da competência da nossa classe política, pelo contrário.

Como explica que os portugueses sejam, por norma, mais eficientes e disciplinados quando estão fora do seu país?

Porque fora do país há organização e disciplina, a justiça funciona, as "cunhas" não são omnipresentes, os salários são melhores, etc., etc.

Talvez desconhecida por muitos que o vêem como correspondente da Antena 1, da Lusa e da SIC em Moscovo, é a sua vertente de historiador, tendo editado vários livros. Um sobre os portugueses na Rússia, outro sobre a morte de Samora Machel, outro sobre Angola e a sua relação com o fim da União Soviética e, finalmente, outro sobre o fim da União Soviética. Gostava, um dia, de leccionar História numa universidade portuguesa?

Eu dou aulas no Instituto Piaget de Almada (Jornalismo e História Contemporânea), mas apenas durante os curtos períodos de estadia em Portugal. Não dou mais aulas, porque não recebi convites, nem "abriram, quando eu bati à porta", talvez porque no nosso país haja muitos "especialistas" em União Soviética e Rússia. Não sei como se pode ser especialista nestas áreas sem viver no país ou saber russo, mas em Portugal tudo é possível, pois não é o mérito o principal critério de avaliação.

Estudou em universidades russas e conviveu com o ensino em Portugal. Que principais semelhanças e diferenças encontra entre ambos os sistemas?

O ensino na Rússia é mais exigente e o ensino básico e médio mais sólidos. Isso era mais evidente na URSS, pois o ensino também se está a degradar na Rússia. Uma das causas da queda do comunismo foi o facto de as pessoas terem acesso à instrução, pois os cidadãos cultos e instruídos deixam de acreditar em utopias, principalmente quando vivem nelas.

Nuno Dias da Silva
 
 
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