Aura Miguel, jornalista
A vaticanista
É a única jornalista portuguesa que acompanha o Papa
em todas as suas viagens. Aura Miguel privou de perto com João
Paulo II, Bento XVI e o Papa Francisco e revela como é trabalhar na
Santa Sé.
Para que os leitores percebam, defina o que
é ser jornalista vaticanista?
Basicamente é ser uma jornalista acreditada na
Santa Sé. Contudo, não é fácil obter esta acreditação permanente.
Inicialmente, obtém-se uma acreditação temporária, que obedece ao
cumprimento de vários requisitos, como o envio do currículo e uma
carta do próprio órgão de comunicação social para onde o jornalista
trabalha. Mesmo para ter esse estatuto não se pode ser um
profissional iniciado, é preciso possuir alguma experiência, e já
ter feito, no passado, a cobertura de uma viagem papal, de um
consistório, um conclave ou um sínodo.
Significa isto que é necessário vencer várias
etapas para chegar à sala de imprensa do
Vaticano?
É um processo muito exigente. Quem se candidata
passa por um exaustivo período de avaliação. O mais curioso é que
as decisões favoráveis ou desfavoráveis pura e simplesmente não são
explicadas. É um estilo muito próprio que se cultiva no
Vaticano. São regras que há que interiorizar, mas que não
devem estar muito longe do que por exemplo se pratica noutras sedes
de poder, como é o caso da Casa Branca.
Que
portas é que se abrem a um jornalista que recebe a acreditação
permanente?
Poder viajar no avião nas deslocações do sumo
pontífice, aceder à sala de imprensa do Vaticano mediante a
atribuição de um cartão especial e obter documentos oficiais, como
discursos do Papa, com antecedência e mediante embargo
noticioso.
Quantas viagens oficiais acompanhando os papas
tem no seu currículo?
No total, 76. Foram 51 com João Paulo II, 24 com
Bento XVI e apenas uma com Francisco, a única realizada pelo papa
argentino, ao Brasil. Tive ainda oportunidade de cobrir dois
conclaves.
Quando
é que começou esta sua aventura?
Em 1986. Só quatro anos depois recebi a
acreditação permanente da Santa Sé e pouco depois embarquei com
João Paulo II para a minha primeira viagem, que incluiu diversos
países africanos, entre os quais, Cabo
Verde.
A
última década foi especialmente frenética. João Paulo II faleceu em
2005, Bento XVI resignou em 2013 e pouco meses depois Francisco foi
eleito. Como é que viveu esses momentos?
Foram momentos muito intensos, vertiginosos e, já
agora, raros. São acontecimentos altamente desgastantes, mesmo para
um jornalista especializado nestas matérias, como é o meu caso. A
morte de um Papa é um momento onde se joga tudo. Há muita tensão
acumulada e o trabalho nunca acaba. É preciso manter o
discernimento. Lembro-me que estive mais de um mês em Roma, sem
parar.
Como é
acompanhar um conclave papal?
Exige mais de um mês em Roma para acompanhar o
antes, o durante e o depois. É uma cobertura particularmente
difícil, porque nada transpira para o exterior. Ninguém sabe
antecipadamente quem foi eleito, até que o novo Papa aparece na
varanda da praça de São Pedro. Atinge-se um pico de adrenalina sem
paralelo. Exerce um fascínio inexplicável que na era das novas
tecnologias os cardeais estejam encerrados na Capela Sistina a
comunicar com o exterior por…sinais de fumo. É um paradoxo nos
tempos modernos.
Não há
fuga de informação possível sobre uma eventual tendência de
voto?
Impossível. Tudo o que possa ser dito é
especulação. Os cardeais fazem um juramento de reserva sob pena de
excomunhão e, para além disso, há um sistema que bloqueia toda e
qualquer comunicação com o exterior, para evitar uma eventual
tentação tecnológica que surja por parte de algum cardeal
eleitor.
A
resignação de Bento XVI surpreendeu meio mundo. O papa alemão foi
vencido, como ele próprio designou, pelo «rosto sujo da
Igreja»?
Creio que sim. Foi vítima desse «rosto sujo da
igreja». Ele reconheceu que lhe faltava energia para governar uma
Igreja a braços com tantos problemas. Era necessário um
sucessor mais determinado. Penso que a atitude dele foi, de
uma forma geral, elogiada. Ele podia ter liderado os destinos da
Santa Sé até morrer e teve a coragem de se retirar. Quem lhe sucede
é Bergoglio, um outsider, por assim dizer, que raramente vinha até
à Europa, mas que mantém uma relação próxima com o Papa emérito. É
público que os dois trocam impressões
frequentemente.
Quais
são os desafios que Francisco tem pela
frente?
A Igreja tem rotinas, alguma passividade e
aburguesou-se, assemelhando-se em tudo a uma velha Europa cansada e
sem reação. É precisamente neste continente que o número de
católicos está em queda, na razão inversa ao que se passa noutras
latitudes, como é o caso da América Latina, de onde este Papa é
originário, onde a adesão dos fiéis não está em decadência. Pelo
contrário.
O Papa
argentino vai conseguir arrumar a casa?
Para o Papa, que segundo o próprio «veio do fim
do mundo», esse é um desafio primordial. Reformar a Cúria e
governar a Igreja universal. Ele já disse que quer que a Igreja
saia para o exterior e não pretende casas a cheirar a mofo.
Francisco disse que «Cristo está a bater à porta da Igreja, mas é
para sair, não é para entrar».
Parece ser um sumo pontífice interventivo, para
já, pelo menos na oratória…
Este Papa tem intuições fortes para perceber a
urgência das coisas. Mas se a passada do Papa parece rápida, a
movimentação da Igreja é mais lenta e
pesada.
Será
Francisco o Papa do Vaticano III?
Não creio. Ainda há muita coisa para implementar no
Vaticano II.
É
legítimo comparar a empatia que o mundo nutre por este Papa com a
reação global à eleição do presidente americano, Barack
Obama?
Acho que sim. A empatia natural e o entusiasmo e
a energia que trouxeram são comuns a ambos. A diferença é que Obama
é um líder político e Bergoglio um líder religioso. Na
perspetiva do Papa esta simpatia dos fiéis pode revelar-se
enganadora e superficial, no caso de estes não aplicarem na sua
vida quotidiana o que diz Sua Santidade. E Francisco, é preciso
dizê-lo, tem sido muito exigente para com os
cristãos.
O seu
carisma cativou também os americanos. A revista «Time» elegeu-o
personalidade do ano 2013…
Francisco tem um estilo pouco comum no mundo
ocidental: é muito afetivo. É isso que o torna cativante. Um Papa
ao mesmo tempo terno e forte não é habitual. Faz lembrar a Madre
Teresa de Calcutá, a quem eram atribuídas igualmente estas
características. Basicamente é isto que os torna tão
atrativos.
Por
este ritmo, o comunicador nato João Paulo II corre o risco de ser
esquecido?
Não acho. O Papa polaco foi o precursor de uma
época e de um modelo e foi o primeiro a entender a necessidade de
comunicar. Foi mesmo considerado por alguns um «Papa superstar». Ao
contrário do que se diz, ele concedia entrevistas e convidava os
jornalistas que o acompanhavam nas viagens para almoçar. Era muito
afável. Há dezenas de histórias sobre ele que comprovam o que eu
digo. Wojtyla adorava fazer passeios na montanha e quando era mais
jovem chegava mesmo a deixar os guarda-costas para trás. Há
um dia em que se depara com um lenhador e pede um copo de água. O
lenhador pergunta-lhe: «Não o conheço? A sua cara não me é
estranha».
O que
é que muda com Francisco?
O Papa Francisco beneficia, de alguma forma, da
era planetária da comunicação, em paralelo com a evolução
tecnológica e mediática que vivemos e de um maior interesse pelos
assuntos relacionados com a Igreja. Ele concedeu uma entrevista de
1h20 a bordo do avião que nos transportou de Roma até ao Rio de
Janeiro. Houve colegas meus que chegaram mesmo a esgotar as pilhas
do gravador devido à duração da
entrevista…
O seu
estilo pouco protocolar, já suscitou alguns sustos, como aconteceu
no Rio de Janeiro, em que viu o carro utilitário em que se fazia
transportar, rodeado por uma multidão. Há motivos para temer pela
segurança do sumo pontífice?
O próprio Papa chegou a confidenciar aos
jornalistas que o acompanhavam a preocupação dos homens da
segurança. Por vontade dele sairia à rua todos os dias como fazia
na sua Buenos Aires natal. Ele negoceia com os seguranças até onde
pode ir. Mas riscos há sempre. Recordo-me que depois do atentado
sobre João Paulo II, na praça de São Pedro, a 13 de maio de 1981, a
segurança queria que o Papa passasse a usar um colete à prova de
bala, ao que ele recusou.
Tem
alguma história curiosa com algum dos papas que queira partilhar
com os nossos leitores?
Devido à duração do seu pontificado, João Paulo
II foi o Papa com quem privei mais de perto. Entrevistei-o em
exclusivo sobre Timor e estive no encontro que manteve a sós com a
Irmã Lúcia. Ele dizia sempre que tinha sobrevivido ao atentado de
1981 devido a um milagre de Fátima. Eu, sabendo disso, sempre que
se proporcionava aproximar-me dele falava de Fátima para atrair a
sua atenção. «Quando é que vem a Portugal?», perguntava eu. Ao que
ele respondia, no seu estilo desarmante, «todos os dias venho
espiritualmente a Fátima».
Bento
XVI esteve em Portugal no ano de 2010. Quando é que podemos ter o
Papa argentino a pisar, pela primeira vez, solo
nacional?
Ele foi convidado para os 100 anos das aparições
de Fátima, em 2017. A expectativa sobre a resposta é grande, mas é
provável que venha.
Espera
um pontificado longo?
Ele tem 77 anos e apenas um
pulmão, mas aparenta uma boa forma. Em maio, entre os dias 24 e 26,
vou acompanhá-lo na viagem à Terra Santa, onde já estive com João
Paulo II, em 2000 e Bento XVI, em 2009.