David Justino, presidente do Conselho Nacional de Educação, ex-ministro da Educação
“Está na hora de sacrificar cursos para salvar instituições”
O
ex-ministro da Educação e atual presidente do Conselho Nacional de
Educação, David Justino, considera que as escolas na atualidade
estão muito mais orientadas para obter melhores resultados das
aprendizagens do que estavam há dez anos atrás. Em entrevista ao
Ensino Magazine, respondida por e-mail, fala também das provas de
ingresso à profissão docente, dos resultados obtidos por Portugal
no PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos - OCDE) e de
se encontrarem soluções para que nenhum aluno se veja obrigado a
abandonar os seus estudos por razões estritamente
económicas.
David Justino aborda ainda a reorganização da
rede de ensino superior. Na sua perspetiva está na hora de
sacrificar alguns cursos para salvar algumas instituições. Mas
lembra que devem também existir "medidas de discriminação positiva,
permitindo que instituições que desempenham um papel fundamental no
desenvolvimento das regiões periféricas, não sejam «varridas» do
sistema".
Concorda com a ideia de que um dos maiores
desafios da educação em Portugal é a efetivação da escolaridade
obrigatória até ao 12º, com resultados positivos (mais sucesso
escolar e menos abandono)?
De uma maneira geral e como princípio concordo. O
recurso a uma medida coerciva como é a escolaridade obrigatória é
sempre um derradeiro passo que deverá ser devidamente ponderado. Se
a universalização do ensino secundário fosse possível sem esse
recurso seria bem melhor. Porém, a história da evolução do sistema
de ensino em Portugal revela-nos o efeito positivo da ação do
Estado na definição de metas de escolarização. Cada passo dado tem
conduzido a níveis de escolarização mais avançados e tem
contribuído para uma indução da qualificação da população que de
outra forma não teria sido atingida. O argumento do abandono e do
insucesso escolares, resultante de obrigar os alunos a frequentarem
a escola contra a sua vontade, é um mau argumento, porque em
alternativa continuaríamos a ter alguns sectores da população que
nem sequer concluiriam o primeiro ciclo.
A
escola pública está a viver momentos difíceis. O acesso ao ensino
para todos, como hoje o conhecemos, pode estar em
risco?
Não creio! Tal como deveremos sempre evitar os
momentos difíceis, teremos primeiro de evitar os momentos de
euforia e deslumbramento, para que não voltemos a ter momentos
difíceis. A ideia de que toda a despesa em educação é investimento
não é verdadeira. Para futuro, sempre que quisermos tomar uma
medida de qualificação do sistema de ensino deveremos pensar muito
a sério sobre qual é a relação entre custos e retornos. Não chega
ter boas ideias e boa vontade, é necessário planear com grande
rigor a evolução do sistema de ensino e saber até que ponto os
investimentos realizados se estão a traduzir em melhor ensino e
melhores aprendizagens. Porque, se não for com esse objectivo, nem
sempre valerá a pena fazer alguns
investimentos.
O
Ministério da Educação obrigou os professores com menos de 5 anos
de serviço a realizarem um exame de admissão à profissão. Faz
sentido esta prova na sua opinião?
Tudo depende do contexto de profissionalização em
que se enquadre essa prova e dos objectivos que se queiram atingir.
Por exemplo, se o principal objectivo da prova é de seriação dos
candidatos a professores, poderá ser aceitável, se é de exclusão,
talvez não o seja. Se o objectivo é privilegiar o mérito e a
qualidade da formação inicial, poderei estar de acordo, se é um
mero ritual de despiste dos candidatos, talvez não tanto. Uma coisa
é certa, o Estado tem o direito e o dever de escolher os melhores
professores para as escolas públicas. A escola pública, se quer ser
valorizada e reconhecida como uma escola de qualidade tem de ter os
melhores professores. Enquanto esse objectivo não for conseguido
ficaremos sempre aquém do que possível fazer. Se queremos defender
uma escola pública de qualidade alguma coisa teremos de fazer no
recrutamento e seleção de professores, com prova ou sem
prova.
Os
resultados do PISA foram muito positivos para Portugal e refletem
todo um trabalho realizado num passado recente. Como é que os
analisa?
O
problema é saber o que entende por "passado recente". Quão recente?
Aquilo que sabemos da evidência proporcionada pela investigação é
que os resultados em educação demoram muito tempo a ser
construídos. Por outro lado, julgo que estamos demasiado centrados
nas políticas públicas, quando há variáveis estruturais que são bem
mais importantes. Dou-lhe um exemplo: não tenho grandes dúvidas que
o principal contributo para a melhoria de resultados tem a ver com
os níveis de escolarização dos pais. Hoje a geração dos pais das
crianças que estão no sistema de ensino é muito mais escolarizada
que a geração anterior. Só esse facto explica uma boa proporção da
melhoria dos resultados. Segundo exemplo: muito provavelmente,
temos professores melhor preparados (em média ...) do que tínhamos
há 15 ou 20 anos atrás. As escolas na atualidade estão muito mais
orientadas para obter melhores resultados das aprendizagens do que
estavam há dez anos atrás. Hoje nota-se que emerge uma outra
cultura escolar que olha para os resultados como um indicador
fundamental para qualificar as aprendizagens. Por isso, se
considerarmos estes três factores, veremos que há alterações que
marcam os últimos 10 anos que são fundamentais para percebermos os
resultados obtidos.
Um
pouco por todo o país, foram criados os chamados mega agrupamentos
de escolas. Em que medida é que estas estruturas podem melhorar, ou
não, o ensino em Portugal?
Os agrupamentos de escolas existem desde finais
dos anos 90. Generalizaram-se a partir de 2003 e alargaram-se às
escolas secundárias a partir de 2008. Mais do que ganhos de
eficiência na gestão administrativa ou de racionalidade financeira,
o maior potencial dos agrupamentos será, a prazo, de natureza
pedagógica. Nesta perspectiva a dimensão dos agrupamentos por si só
pouco me diz. Julgo que é mais importante o que eles representam de
articulação dos diferentes níveis de ensino, de superação de
barreiras entre culturas profissionais que vivem de costas viradas,
de reorientação do focus da ação educativa para os trajetos
escolares dos alunos e não uma segmentação correspondente aos
diferentes ciclos de ensino. Temos de "desconfinar" as diferentes
lógicas de ciclo e integrar a ação educativa em torno do aluno, da
sua progressão, do seu ; acompanhamento e
do seu sucesso. Os agrupamentos potenciam essa verticalização
pedagógica que é bem mais importante que os eventuais ganhos de
racionalização dos recursos.
No
último concurso nacional de acesso ao ensino superior mais de 40%
dos alunos que concluíram o secundário não se candidataram. Na sua
perspetiva isto reflete o quê: desmotivação quanto ao futuro? falta
de dinheiro das famílias?
Não tenho informação privilegiada sobre o
problema real que descreve. Julgo que com base num inquérito bem
elaborado poderíamos ter ideias mais claras e uma melhor
identificação das causas. Sem isso só poderemos especular e alinhar
nas explicações mais fáceis. De certo, sabemos que as razões que
apontou terão alguma importância, a dificuldade está em conhecermos
outras razões e qual a hierarquia da importância de cada uma delas.
Eu prefiro ser comedido nessas interpretações imediatas, não
deixando de reconhecer que as dificuldades crescentes das famílias,
em especial em alguns sectores da classe média, são um factor
considerável para explicar o fenómeno. Teremos de encontrar
soluções que nos garantam que nenhum aluno se veja obrigado a
abandonar os seus estudos por razões estritamente económicas. Não
nos podemos dar ao luxo de desperdiçar tão elevado potencial de
capital humano, mas, por outro lado, também importa criar
oportunidades de integração desses jovens na vida ativa. Se ao
aumento da escolarização superior não corresponder um aumento das
oportunidades de inserção no mercado de trabalho então estamos a
provocar uma frustração generalizada como a que sentimos em muitos
jovens que depois de terminados os seus cursos são obrigados a
emigrar para conseguirem aceder a um emprego ajustado às suas
qualificações.
De que
modo se pode inverter esta tendência?
Só
há uma forma: mais investimento privado, mais crescimento económico
para podermos criar mais postos de trabalho qualificado de forma a
absorver esse capital humano. Duvido que a administração pública e
o sector público tenham condições, nos próximos anos, de poder
suprir esse esforço de investimento. Se voltarmos a cair nessa
política, daqui a alguns anos voltaremos a enfrentar as
dificuldades por que passamos atualmente. É fundamental atrair
investimento para atividades de elevado valor acrescentado que
exijam níveis de qualificação do trabalho mais elevados. Se
voltarmos a um modelo em que a maior procura incide sobre
mão-de-obra desqualificada, então será bem pior. Temos de escolher
entre formar licenciados para serem caixas de supermercado - por
mais respeitosa que seja a atividade - ou especialistas em
empresas rentáveis e orientadas para a produção de bens e serviços
transacionáveis.
O
atual Ministério da Educação quer redefinir a rede de ensino
superior, falando em fusões e agregações entre instituições,
nalguns casos de sistemas diferentes. Faz sentido extinguir
instituições, por exemplo no interior do
país?
Temos de ser ponderados sobre as eventuais
soluções conducentes ao reordenamento da rede de oferta de ensino
superior. Andamos há mais de dez anos a falar sobre o problema, mas
por uma ou outra razão, pouco ou nada se fez. A situação está a
tornar-se insustentável. Esse tipo de soluções, feitas com tempo e
em concertação com as diferentes instituições, são sempre mais
sustentáveis do que quando realizadas à pressa e sob a pressão da
"austeridade". Os responsáveis dos estabelecimentos de ensino
superior têm de se sentar à mesa e acordarem as melhores soluções
para o seu desenvolvimento. Caso não o façam, a solução virá de
cima e, na maior parte dos casos, não será necessariamente a
melhor. Este estratagema de adiar indefinidamente as soluções não
creio que seja o melhor.
Ainda estamos a tempo, mas já bem perto do "prazo
de validade", de sacrificar alguns cursos para salvar algumas
instituições. Se não o fizerem, a muito curto prazo, terão de
fechar algumas das instituições. O país não suporta o financiamento
da atual estrutura de oferta de ensino superior e não poderá
suportar que uma parte dos cursos, irresponsavelmente, estejam a
encaminhar os seus licenciados diretamente para o desemprego. Este
é que é o problema.
A
reorganização da rede da oferta formativa e dos números clausus não
poderia ser uma solução?
Poderemos começar por aí, mas não podemos ficar
por aí. Teremos de avançar, mais tarde ou mais cedo, para um modelo
de financiamento competitivo, de forma a diferenciar a qualidade e
o desempenho dos diferentes cursos e das diferentes
instituições.
No atual modelo estamos a
sacrificar as instituições com maior potencial de crescimento e
competitividade, para mantermos os níveis de ineficiência das
instituições mais obsoletas. Porém, há um princípio que nunca
poderá ser esquecido: o da solidariedade territorial. Têm de
existir medidas de discriminação positiva, permitindo que
instituições que desempenham um papel fundamental no
desenvolvimento das regiões periféricas, não sejam "varridas" do
sistema. Não podemos ser insensíveis a esse princípio, mas também
não poderemos deixar de exigir maior racionalidade na rede de
ofertas. É para isso que serve a política: encontrar soluções
concertadas e compromissos que permitam manter a coesão territorial
e ao mesmo tempo valorizar os nichos de competência que ainda
existem nessas regiões.