Entrevista

João Botelho em entrevista
«Os Maias» são o espelho da «impossibilidade de um país»

joao 3.jpgA «impossibilidade de um país» é um dos conceitos que atestam a atualidade de «Os Maias», obra maior de Eça de Queirós que João Botelho adaptou ao cinema. Em entrevista ao Ensino Magazine, o cineasta reflete sobre as virtudes da inquietação e defende que "um país sem arte é um caixote do lixo".

A adaptação cinematográfica d'«Os Maias» tem originado comparações entre os males da sociedade descrita por Eça de Queirós e os problemas do Portugal contemporâneo. Continuamos próximos daquela sociedade de finais do século XIX?

Como é sabido, Eça de Queirós demorou quase sete anos a escrever «Os Maias». É um romance muito precioso na apreensão de uma ideia do ser português. Os personagens, mais do que simples personagens, são arquétipos. É uma reflexão sobre o modo de ser português e um destino meio cómico, meio trágico, que é a ideia da impossibilidade de um país. Há duas revoluções neste romance. Uma é a apreensão da sociedade portuguesa contemporânea do Eça, de um país a desfazer-se, de uma bancarrota que se aproxima, com semelhanças à situação que hoje vivemos. A outra revolução está no modo de narrar o romance.

Que esse retrato sociocultural do país mantenha ainda hoje a sua pertinência e atualidade, é mérito da obra ou demérito de Portugal?

Acho que acontecem as duas coisas. Há mérito do Eça de Queirós por perceber uma ideia de Portugal que se mantém atual, ou seja, há o génio de alguém que percebe que o país tem este tipo de comportamento. «Os Maias» é uma obra muita aberta, que permite muitas interpretações, e essa é uma evidência da sua grandeza. O final do filme é, aliás, uma das coisas mais engraçadas que fiz. Os portugueses não correm nem para a glória, nem para o poder, nem para o amor, mas sim para o jantar que se lembram que têm. Portanto, só se apressam para a comidinha.

Foi o filme português mais visto em 2014. Esperava essa resposta?

O sucesso do filme tem muito a ver com o desejo dos portugueses verem coisas de Portugal. É uma ideia de cinema que nos interessa. O filme já fez 115 mil espetadores, mas ainda tem mais de 30 sessões marcadas no país. Além disso, todos os anos o filme vai ser visto por alunos, no âmbito do ensino secundário. Não substitui a leitura da obra, mas pode ajudar os jovens a entusiasmarem-se com a ideia. Os jovens têm hoje muita informação, mas pouca capacidade de concentração. Ler um romance é para eles um exercício muito duro.

E o cinema ainda tem a capacidade de inquietar o público?

O cinema nunca foi uma arte pura. Tende a roubar às outras artes, é um negócio, uma coisa cara que é preciso vender. Nos últimos tempos transformou-se em algo infantojuvenil. As próprias salas de cinema admitem ganhar 1 ou 2 euros por bilhete, mas ganham 6 nas pipocas e na coca-cola. Portanto, desatou-se a fazer filmes onde se possa comer e beber, conversar e enviar sms. É um cinema diferente daquele onde fui formado. Aquela ideia da missa cinematográfica desapareceu um bocado.

Quem vai hoje ao cinema?

São sobretudo crianças com os pais, para ver desenhos animados, e os adolescentes. Depois deixam de ir e descarregam os filmes no computador. Uma das coisas mais engraçadas que vi acontecer com «Os Maias» foi o regresso dos adultos. Encontrei pessoas que já não iam ao cinema há cinco ou dez anos. Se calhar, hoje há cinema mais engraçado nas séries televisivas americanas do que nas salas de cinema. Nas salas são coisas para consumir e consumir. De vez em quando lá vai havendo uns malucos que tentam contrariar a tendência do cinema atual, que é um cinema do divertimento puro.

É o que o público quer.

É evidente que o cinema é um negócio de emoções, mas também é um bocadinho para o cérebro. Há uma imposição exagerada na questão do público. O que é importante num filme é que cada pessoa pense da sua maneira. O cinema é falso, é ilusão. É tudo a fingir. Ninguém morre. O que é verdade é o que as pessoas sentem quando vêm o filme: a alegria, as lágrimas ou mesmo o tédio. Todas as emoções são verdade, tudo o que está no ecrã é falso.

Para além do filme em si, não será importante que as pessoas se disponham a refletir?

Sim, não digo muito, mas um bocadinho, pelo menos. As pessoas só criam coisas novas quando pensam. Gosto muito da ideia de que as pessoas estão na terra para fazer coisas. Se alguém gosta do filme que vá para casa desenhar ou ouvir música; que fique inquieto ou alegre, eufórico ou triste. Mas que mude um bocadinho a sua rotina.

Com mais ou menos público, é conhecida a dependência que o cinema nacional tem de apoios estatais.

Não há outra hipótese, dada a dimensão do mercado em Portugal. O cinema é uma coisa cara. Também se não houver apoio estatal não há ópera; se não houver apoio estatal não há Teatro da Cornucópia; se não houver apoio estatal não há orquestras sinfónicas, ou bailado ou investigação histórica. O apoio estatal às artes e cultura portuguesas é ridículo quando comparado com outros países. Um país sem arte e sem cultura é um caixote do lixo. É a identidade nacional que está refletida nas obras de arte. Acho que deve haver investimento na cultura e na educação.

Esse apoio estatal oferece mais constrangimentos ou liberdades?

Não é constrangimento nenhum - é liberdade. Não há nenhum apoio estatal que me obrigue a filmar de determinada maneira. Nunca fiz um filme para agradar a ninguém, e a liberdade que tenho não tem preço. O constrangimento é apenas o dinheiro, mas como diz o Manoel de Oliveira "quando não há dinheiro para filmar a carruagem, filma-se a roda, mas filma-se muito bem a roda".

Que ligação existe entre o mercado de trabalho em Portugal e as escolas que ministram o ensino nas áreas do audiovisual e do cinema?

Existe pouca proximidade. O mercado de trabalho é um funil. É muito fechado. Na TV só há novelas, concursos e pouco mais, deixou de se exibir telefilmes e outra ficção televisiva. No cinema o número de filmes produzidos em Portugal é cada vez menor. Por isso, muita gente formada nas escolas de cinema acaba na publicidade ou no audiovisual menos interessante. Embora tenha havido uma certa democratização no cinema, uma vez que se tornou mais barato produzir filmes, o problema está em mostrá-los. Onde estão as salas para isso? O cinema americano ocupa 80% das salas do mundo inteiro. Muitos filmes só passam nos festivais.

Tiago Carvalho
Rui Aguiar/Vogue Portugal
 
 
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