Entrevista

Eduardo Paz Ferreira, professor catedrático
«O ensino é decisivo para transmitir uma imagem de seriedade e decência»

entpaz2.jpgEduardo Paz Ferreira, uma voz ouvida e respeitada nos tempos que correm, faz a radiografia das várias faces da sociedade desigual, injusta e à procura da decência perdida, onde impera o «salve-se quem puder».

«Por uma sociedade decente» é o seu último contributo cívico para uma sociedade melhor. Que manifestações é que o afligem mais na nossa sociedade?

Antes de mais, deixe-me agradecer a oportunidade que tenho em falar para um jornal com estas características, como as do «Ensino Magazine». Considero que a educação e o ensino são vias fundamentais para a construção de uma sociedade decente. Sobre a pergunta concreta que me faz, confesso que é difícil apontar uma, porque as manifestações dessa decadência e falta de decência são imensas. Mas peguemos, em primeiro lugar, no problema da desigualdade. Dou-lhe um exemplo, a senhora Christine Lagarde, presidente do FMI, declarava numa entrevista que as 85 pessoas mais ricas do mundo têm uma riqueza igual a metade da população mundial. Trata-se de uma verdadeira monstruosidade que nos deixa sem palavras.

São as desigualdades que mais o impressionam?

As desigualdades são uma face bem visível da sociedade não decente. Se admitirmos que em grande medida a crise que se desencadeou em 2007/2008 teve a ver com a desigualdade e com a forma como pessoas com poucos recursos foram induzidas a consumir mais do que podiam e particularmente, nos Estados Unidos, com o subprime, em que foram aliciadas a comprar casas que não tinham possibilidades de pagar, pensaríamos que teriam sido tomadas as medidas necessárias para corrigir ou atenuar as desigualdades. Pelo contrário, o que se tem verificado é que a desigualdade tende a crescer e é hoje maior do que era antes da crise. Os programas de austeridade em Portugal e noutros países, assistidos pela chamada troika, tiveram efeitos francamente negativos quanto ao sacrifício que foi exigido. Um estudo recente do professor Farinha Rodrigues demonstra, claramente, que o maior sacrifício foi exigido às classes mais pobres. Mas a desigualdade não é a única face da sociedade pouco decente…

Que outros aspetos realça?

A falta de mobilidade social é outra face da sociedade pouco decente. Vivemos numa sociedade muito estratificada, assim foi tradicionalmente, mas com o 25 de abril julgava-se aberto o caminho para o chamado «elevador social» que permitiria que as pessoas tivessem acesso a oportunidades, independentemente das suas origens, mais ou menos humildes. Infelizmente, o que temos assistido é um recompor das estruturas tradicionais e um fechar desta sociedade que se tinha aberto.

entpaz5.jpgE qual o papel do Estado perante esta situação?

O Estado está confinado a uma certa inação, parecendo ter-se demitido de procurar corrigir os aspetos mais flagrantes da falta de decência, procurando reduzir ao mínimo o seu papel, e mesmo áreas onde tradicionalmente o seu papel era forte, têm sido cedidas a privados.  Ao nível das relações humanas vivemos uma situação bastante penosa. Eu costumo dizer que o Direito está em crise, mas vivemos, essencialmente, uma crise das boas maneiras. E não estamos a falar de qualquer trivialidade, mas em algo mais amplo, ou seja, um código de conduta ético entre as várias pessoas numa sociedade, uma espécie de rede de afinidades que é garantida sem sequer ser necessária a intervenção do Direito. Passamos a viver de um modo completamente individualista, passamos à frente das pessoas, não agradecemos a quem nos dá passagem, etc. São pequenos gestos do quotidiano que tornam a vida bastante mais desagradável. Mas bem mais desagradável é o tratamento; impiedoso dado aos refugiados, por exemplo.

Esta crise de decência é política, moral ou de ânimo?

É uma crise essencialmente de política, partindo da premissa que todos os comportamentos e gestos que se praticam nas sociedades quotidianas são políticos. Não são só os políticos a fazerem política, os cidadãos comuns também a fazem, designadamente quando escolhemos os políticos que mais tarde acabam por ser o alvo das nossas queixas.

Uma sociedade reconstrói-se com novos valores e novos atores?

Essa é a grande questão: como tornar democratas quando não os há, como criar cidadãos decentes quando não existem. Insisto que, porventura, o ensino é decisivo para transmitir uma imagem de seriedade e decência para aqueles que vão chegar à idade adulta. É que chegamos a um ponto em que já se chegou à conclusão que ou passamos a conduzir-nos por regras diferentes ou as coisas vão correr muito mal. A vitória de Trump é apenas um sinal do desapego que os cidadãos vão sentido pela classe política. Os políticos afastaram-se das preocupações e anseios dos cidadãos. Creio que o socialismo democrático tem fortes responsabilidades nesta viragem, ao fazer uma evolução completamente incompreensível depois da queda do muro de Berlim, quase de culpa pelos crimes dos regimes totalitários soviéticos, procurando distanciar-se de qualquer solução próxima do socialismo ou coletivas.

E emerge com vigor a vertente neoliberalista…

Sim, especialmente a partir de Tony Blair e da sua Terceira Via. Ficou disponível um terreno vazio que está a ser aproveitado de forma muito inteligente pela extrema direita e pelas forças xenófobas e nacionalistas. É preciso exigir dos políticos uma nova atitude e da própria sociedade civil que se constitua, cada vez, mais como uma força de opinião. Os problemas são muito grandes: por exemplo, o controlo da informação. A comunicação social está nas mãos de poucos grupos que obedecem a orientações políticas muito semelhantes e que são detidos por capitais, por vezes, de origem duvidosa. É claro que a elite que está no poder segue uma ideia que o ditador Oliveira Salazar expressou quando criou o Secretariado Nacional de Propaganda que é: aquilo que não for publicado, não existe. Por isso é que muito do noticiário que devia ser transmitido para as pessoas, não aparece.

Abundam os programas para distrair o povo, o chamado pão e circo?

A programação da televisiva generalista está repleta de reality shows, concursos mais ou menos estúpidos e debates sobre futebol, um fenómeno que atingiu uma dimensão insuportável. Pelo menos às segundas-feiras à noite os três canais de notícias, ditos de elite, estão preenchidos com esta última temática. Deve ser um caso raro no mundo.

Este caldo cultural anestesia o cidadão comum?

Entendo que sim. As televisões justificam que esta é a programação que o povo quer. É um argumento fácil e recorrente. Mas o povo tem alternativas para escolher outros modelos? Não sou contra a TV com componente recreativa e ligeira, mas é preciso conjugar com o apelo ao debate, à inteligência, etc… Quando se abriu a TV à iniciativa privada a programação iniciou uma corrida desenfreada rumo ao grau zero, ao lixo. Os canais passaram a imitar-se uns aos outros. A própria RTP1 também anda  num nível muito baixo. Com grande mágoa minha, digo que a televisão em Portugal antes do 25 de abril era melhor do que a atual. O controlo político era fortíssimo, mas era possível encontrar intelectuais como Vitorino Nemésio, David Mourão Ferreira, Natália Correia, havia transmissões de ópera, teatro, as próprias séries eram de excelência. Hoje temos telenovelas em catadupa, todas orientadas para as pessoas não pensarem e assimilarem umas histórias mais ou menos inverosímeis.

Fala-se dos poderes fáticos ou não eleitos que mandam no mundo, como é o caso da Maçonaria, Opus Dei ou da Goldman Sachs, só para dar alguns exemplos. Os poderes ocultos põem e dispõem?

Eu tenho a ideia que, por vezes, há algum exagero sobre o debate em torno do Opus Dei e da Maçonaria, relativamente aos poderes que lhes são atribuídos. Há uma tendência um pouco conspirativa das pessoas para encontrar forças ocultas. É algo que «vende» bem. Agora que a riqueza financeira atua de forma articulada e global, ditando as suas próprias regras, parece-me evidente. E há outro poder que tem sido subestimado, que é o poder dos economistas e dos técnicos. Antes quem tomava as decisões eram os políticos, com base nos seus assessores económicos ou jurídicos. Hoje em dia temos uma série de cargos que são reservados para economistas, técnicos - que se considera terem a pureza dos anjos e estarem isentos de vícios - e outras entidades independentes (como por exemplo, o nosso Conselho Nacional das Finanças, que é  um organismo motivadíssimo ideologicamente). Os economistas na primeira campanha de Bill Clinton lançaram um slogan que ficou célere («É a economia, estúpido») que parece ter sido decisivo para a sua eleição, mas deixou um rasto terrível na sociedade. A economia, por si só, não pode mandar.

A economia manda mais do que devia?

Há uma ordenação definida por regras económicas irrefutáveis e não por decisões políticas, como deveria ser. A economia comanda a política. Há uma mensagem fantástica do Papa Francisco que quando foi convidado para ir à reunião da alta finança, em Davos, na Suiça, mandou uma carta a desejar uma boa semana de trabalho e que aproveitassem para discutir como pôr as finanças ao serviço da política e não o contrário.

Este ano foi reposto o feriado do 1º de dezembro, o Dia da Restauração. Os interesses nacionais cada vez mais na mão de estrangeiros, sobretudo na banca, na energia e noutros setores, deviam relançar o debate sobre a soberania?

Vejo com o maior desgosto e perplexidade este estado de coisas. Estou muito longe de ser um nacionalista e sempre achei que a abertura internacional era um aspeto positivo, mas o país tem de ter várias áreas de atividade em mãos nacionais, estatais ou privadas, mas com possibilidade de controlo dos portugueses. Quando passamos o sistema financeiro na sua quase totalidade para o exterior estamos a criar uma enorme vulnerabilidade e a deixar a economia nacional extremamente indefesa. Acontece que muitos dos adquirentes do sistema financeiro português são entidades um pouco estranhas. A experiência de um grupo chinês na Fidelidade está longe de ser boa. Há candidatos à compra do Novo Banco que são um fundo de investimento norte-americano.

Creio, por outro lado, que se devia acabar com uma das regras absurdas que a União Económica e Monetária comporta, que é a regra da independência do Banco Central e da proibição do Banco Central de funcionar como emprestador do último recurso.

A banca portuguesa chegou a este ponto devido à falta de supervisão do banco central?

Sim. Chegamos a esta situação devido à completa falha de supervisão. O Banco de Portugal, a certa altura, passou a preocupar-se somente com as políticas macroeconómicas, tornou-se uma espécie de grande gabinete de estudos e descurou os problemas da supervisão. Isto não se passou apenas em Portugal, mas em muitos outros países. Mais uma vez, o que é que andaram os economistas a fazer e como saíram impunes disto?

Foi até 31 de julho administrador não executivo da Caixa Geral de Depósitos (CGD). Os últimos meses abalaram a imagem no banco público?

O que me impressiona mais na CGD, para além dos deploráveis episódios em torno das entregas das declarações de rendimentos, é que aquilo que parece querer fazer-se com a CGD é transformá-la num banco privado de titularidade pública, Ou seja, afastar a Caixa das funções de banco de serviço público, passando a reger-se por uma lógica puramente financeira que vai contribuir ainda mais para a desertificação do país, com o anunciado encerramento de agências, etc. Um banco não pode dar prejuízo, mas um banco público existe, justamente, para defender os mais desfavorecidos. Nesse sentido, uma CGD que se orienta apenas para a disputa de nichos de mercado com outros bancos, esquecendo os seus clientes, não me interessa como banco público. Eu quero um banco público ao serviço dos interesses da economia nacional e particularmente dos pequenos empresários, etc.

A CGD tem sido feudo dos dois maiores partidos que vão revezando os seus homens confiança na cúpula administrativa?

Há muitas pessoas ligadas aos partidos, mas deve-se procurar uma explicação mais ampla e geral, que é a grande promiscuidade entre a política e os meios económicos. Se atentar no caso das privatizações vai reparar que a generalidade dos gestores públicos continuaram nos bancos ou noutras empresas públicas quando estes foram privatizados. O que sucedeu? Empresas que davam grandes prejuízos enquanto eram públicas, passaram a dar grande lucro quando passaram a privadas. Gostaria que me explicassem como é que os mesmos senhores conseguiram resultados tão diferentes em situações que não eram fundamentalmente distintas? E também gostaria de saber porque é que o Banco CTT - uma antiquíssima aspiração dos Correios, empresa pública, que nunca foi aceite - assim que é feita a privatização da empresa é dada autorização para a abertura do banco. Este é apenas mais um exemplo de favorecimento do setor privado e de desvalorização do setor público, que considero extremamente perigoso.

Política e negócios continuam a manter relações perigosas?

A questão central é que é preciso separar a política dos negócios. Durante a ditadura uma das críticas típicas da oposição democrática ao regime era que os ministros saíam todos para empresas quando abandonavam o governo. Era verdade, mas hoje em dia ainda saem mais.

Uma das especialidades do seu escritório de advogados é o Direito Fiscal. Como avalia o ato da empresa Jerónimo Martins, que mudou a sua sede fiscal para a Holanda?

Bem sei que business is business, mas é preciso ressalvar que os lucros são gerados em Portugal e à custa do dinheiro dos consumidores portugueses. Considero um ato que é o desmentido da existência de uma União Económica e Monetária. Se esta existisse verdadeiramente é lógico que os impostos seriam iguais em todos os estados. Não se compreende como se permite que certos estados mantenham sistemas fiscais especialmente atraentes e que muitas vezes são objeto de negociações que os tornam ainda mais atraentes, como sucedeu no Luxemburgo, mais recentemente com a condenação da Apple por causa da Irlanda, etc.  Mas há mais casos em Portugal. A EDP, enquanto empresa pública, pagava impostos muito importantes ao Estado e uma vez privatizada deixou praticamente de pagar impostos em Portugal, passando a fazê-lo na Holanda. Isto significa que a poupança fiscal que a EDP consegue por esta via provavelmente já pagou o preço da compra.

Apoiou Sampaio da Nóvoa nas últimas presidenciais. Recentemente acusou Marcelo Rebelo de Sousa de «extravasar os poderes constitucionais». Como está a ver esta nova forma de fazer política do inquilino de Belém?

Quero lembrar que quando foi candidato à Câmara de Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa fez de taxista, mergulhou no Tejo, etc. Na altura todos se riram e acharam caricatural. Mas então ele não tinha os anos de televisão que o tornaram numa figura consensual. Hoje em dia se ele mergulhar no Tejo é um fenómeno de popularidade, se andar de táxi Lisboa pára para ver o taxista Marcelo, etc. O que se passou é que a opinião pública claudicou perante a política espetáculo. Sobre a forma como ele exerce o mandato creio que está a fazer uma interpretação muito própria do que são os poderes presidenciais, intervindo claramente em áreas do governo, pronunciando-se sobre todos os assuntos.

Preocupa-o que os últimos líderes políticos tenham vindo praticamente todos da televisão?

Isso não se passa apenas na política. Na minha própria Ordem, a dos advogados, vários bastonários foram eleitos porque iam muito à televisão. Relembro  os nomes de José Miguel Júdice, Marinho e Pinto, Rogério Alves. Quem não tem essa proteção, explícita ou implícita, da televisão tem mais dificuldades em chegar mais longe. Esta ideia começou no Brasil quando o dono da TV Globo, Roberto Marinho, garantiu que podia fazer e desfazer presidentes. Em Portugal, lamentavelmente temos uma Entidade Reguladora da Comunicação Social que pouco ou nada faz e que tinha por obrigação impor um espaço de equilíbrio.

Falemos agora da educação. A vaga ; de jovens que emigraram para trabalhar no estrangeiro é consequência da falta de  oportunidades no seu país?

É uma geração que é vítima da fraqueza do poder político, da dificuldade de criação de alternativas, etc. Penso totalmente ao contrário do anterior governo, que funcionou numa lógica de separar gerações e de pôr todo contra todos, público contra privado, interior contra litoral, etc. É preciso inverter esta situação, mas o facto de estes jovens irem para o estrangeiro também apresenta o reverso da medalha de lhes permitir ter uma abertura exterior e uma mundivisão muito ampla, o que é positivo.

Os que regressarem virão mais fortes?

Os que vierem sim, mas creio que muito dificilmente regressarão porque vão encontrar melhores condições, a todos os níveis, lá fora. Eles saíram de Portugal muito preparados, por isso puderam sair. Não esqueça que Portugal tem um conjunto de instituições de ensino superior de elevadíssima qualidade. Por exemplo, dou-lhe o exemplo do Instituto Superior Técnico que forma dos melhores engenheiros em vários cursos de ponta. Ou de Medicina e Enfermagem. Não é por acaso que os estrangeiros veem buscar estes jovens. Com a vantagem que passam a ter uma mão de obra super qualificada que lhes saiu de graça, porque o investimento na educação foi todo feito pelo Estado português. Enquanto não existir um franco desenvolvimento em Portugal não estou a ver qual será o apelo em termos de carreiras para estes jovens regressarem ao país que os viu nascer.

Diz que esta geração perdeu as referências da geração de 45. A que se refere?

Da ideia básica de solidariedade, que todos estamos por todos. Hoje em dia impera o salve-se quem puder.

A vitória de Trump foi para si um murro no estômago?

Significou para mim o acontecimento mais dramático e mais traumático a que assisti. Pode levar-nos a uma situação semelhante aos anos 30 do século passado, com a certeza de uma coisa: no século passado a Europa tinha uma esperança exterior que se chamava Estados Unidos da América e agora deixa de ter. Se na Europa se abater uma onda fascista, o «velho continente» não poderá contar com a América. Depois, temo muito o que se vá passar com as minorias étnicas e os emigrantes. Não foi por acaso que houve logo a ameaça da deportação maciça de emigrantes. Vai-se viver muito mal na América. Os meus amigos que vivem por lá estão em pânico, económico e político, com o que se vai passar. Penso que podemos estar na iminência de assistir a uma séria mudança no mundo. Ao contrário de alguns analistas, não acredito num "novo" Trump, diferente da campanha eleitoral, assim que assumir funções na Casa Branca.

Trump vai ter a tentação de governar os Estados Unidos como gere as suas empresas?

Donald Trump tem demonstrado uma incultura política e impreparação total. Penso que terá, efetivamente, a tentação de gerir os negócios públicos como um assunto privado, o que será trágico.

A Rússia e os EUA vão quebrar o gelo da guerra fria porque Putin e Trump são gémeos separados à nascença?

Não sei. Trump, para além de defender uma lógica de hostilização à mundialização, terá tendência a seguir uma política isolacionista dos EUA e é por isso que Putin gosta tanto dele. Se o presidente russo decidir avançar para a Ucrânia ou outros territórios não haverá oposição de Washington. O desconhecimento geográfico de Trump é muito grande. Aproveitando o fim do mandato de Obama estamos a viver um momento trágico na Síria, com as tropas de Assad a cometerem barbaridades sem nome.

Preside ao Instituto Europeu da Faculdade de Direito da Universidade Lisboa. Considera que o projeto europeu está em cacos?

Deixe-me dizer que fui um crítico acérrimo da senhora Merkel  nos últimos anos, mas o governo de Berlim teve nos últimos meses atitudes que importa sublinhar, como foi o caso do comportamento perante os refugiados e muito recentemente, após a eleição de Trump, a melhor reação que eu escutei foi precisamente a da chanceler germânica. Mas há áreas em que Berlim falha e que são preocupantes se a Alemanha mantiver o rigor e a ortodoxia económica. Continuo a achar que há todas as razões para mantermos os ideais europeus, mas esta União, tal como existe, está muito próxima da morte. E ainda por cima viu desvanecer a Europa dos valores e perdeu identidade, aumentando as brigas e os conflitos.

A Europa respirou de alívio com a derrota do candidato da extrema direita na Áustria, mas Renzi, tal como Cameron, saiu derrotado do referendo que ele promoveu. Depois do brexit teremos uma saída à  italiana do euro?

Bem, o problema é que a Europa não consegue encontrar respostas globais e, por isso, vive de crise em crise e de ameaça em ameaça, respirando umas vezes de alívio, outras não. Não há, de momento, indicações de que a Itália se encaminhe nesse sentido, mas um impasse político e o agravamento do sistema financeiro poderão levar a tal.

Disse que o Papa Francisco é o único líder global que vale a pena seguir. Que outros atos o inspiram no Santo Padre?

A posição dele perante os refugiados foi exemplar. As pessoas podem já não se lembrar bem, mas pouco depois da sua entronização o Papa Francisco foi à ilha de Lampedusa para «chorar os mortos que ninguém chora», como ele sublinhou. Para além disso, toda a sua ação quotidiana e produção teológica, como a encíclica "Laudato Si", como na carta pastoral da alegria do Evangelho, representam uma conceção teórica muito profunda de crítica ao neoliberalismo e de afirmação de valores muito importantes. «A vida humana não pode ser descartável», é uma frase da sua autoria e que espelha bem o tempo em que vivemos.

Para finalizar, uma pergunta sobre o terrorismo. O atentado no dia 19 de dezembro, num mercado de Natal de Berlim, reivindicado pelo ISIS, voltou a semear o pânico numa das principais cidades europeias. Depois, às primeiras horas do novo ano, outro massacre em Istambul. As sociedades ocidentais terão de se habituar a conviver com esta chaga durante quanto tempo?

Tem toda a razão em falar de chaga a este propósito. Aquilo que é necessário é aprofundar a segurança, mas retirando o capital de queixa que atira tantos jovens para o radicalismo. Por outro lado, as sociedades não podem manifestar medo. Têm de viver como sempre fizeram.

Nuno Dias da Silva
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