Entrevista

João Vasconcelos, ex-secretário de Estado da Indústria
«No futuro, a escola vai ensinar mais atitudes e menos conteúdos»

unnamed_3.jpg

A quarta revolução industrial está em curso e João Vasconcelos aborda as suas implicações no futuro, sempre com os olhos postos no presente.

A revolução tecnológica está a mudar o modo como vivemos, como pensamos e como trabalhamos. No que diz respeito à realidade portuguesa, temos feito tudo o que está ao nosso alcance para acautelar estes impactos?
Do lado do Estado tem havido várias estratégias, do lado da formação, do ensino, da indústria 4.0, da Startup Portugal, da Web Summit, mas há muito mais a fazer. Para nós e a Europa. Porque os Estados Unidos continuam a dominar. Se agarrarmos num smartphone as plataformas que existem são a Apple e a Android. Nas próprias App e nos software são as empresas asiáticas ou norte--americanas a ditar as leis. O problema é que o modelo de ciência e inovação na Europa estava muito baseado em indústrias tradicionais (farmacêuticas, automóvel, patentes, aço, ferro, laboratórios, etc.) e o digital não tem nada a ver com isso. Baseia-se em novos modelos de negócio e opera a uma maior velocidade.

Um estudo recente aponta que apenas 30 por cento da nossa economia está digitalizada. Qual a quota parte de responsabilidade do Estado nas barreiras colocadas à progressão do ecossistema digital?
O Estado tem pouca responsabilidade se uma empresa está pouco ou muito digitalizada. O nível de digitalização da nossa economia reside mais no esforço dos empresários do que no Estado. Ao Estado caberá formar quadros através do ensino profissional e superior, politécnico, universidades, etc. Isto para além de promover apoios em termos dos quadros fiscais e apoios comunitários. E, neste campo, o Estado tem feito o seu papel.  Por exemplo, andamos muito mais rápido em termos de fibra ótica do que os próprios privados exigiam. A própria administração pública, no seu processo de digitalização, andou muito mais depressa do que muitas empresas privadas. Precisamos é de mais líderes empresariais a compreender as vantagens provenientes destas mudanças e das alterações tecnológicas. Os ganhos são enormes. As economias mais digitalizadas no seu dia a dia são as que têm mais e melhor emprego.

O digital mudou tudo e não apenas ao nível da internet. Que áreas são mais sensíveis à mudança?
O digital alterou tudo. Desde a maneira como produzimos coisas, como vendemos coisas, mas também a forma como nos relacionamos, como namoramos, como somos pais, como somos filhos, como somos netos. Aproximou culturas, famílias, etc. Tem permitido avanços civilizacionais únicos. Nunca tivemos tanta gente no mundo a dispor de acesso simultâneo a informação, a cinema, a música, a livros, etc. O digital tem ameaças? Certamente, como todas as grandes mudanças tecnológicas. Mas a história diz-
-nos que sempre que temos mudanças de paradigmas tecnológicos a Humanidade ficou melhor. O emprego e a economia ficaram melhor. Acho que vamos ficar melhor com esta revolução digital. Porventura haverá setores e pessoas mais afetadas, mas é preciso responder com políticas e estratégias públicas e privadas.

Tem-se falado muito na "uberização" da economia e a forma como isso transforma os modelos de negócio. Esta lógica promove mais a autonomia ou a precariedade?
Quando se fala da "uberização" da economia é sempre de maneira depreciativa. Dando a entender que o emprego da economia digital é muito semelhante ao emprego do motorista da plataforma da "Uber". Nós temos de entender que há novas formas de emprego e também de distribuição da riqueza das empresas. Nas empresas digitais existe uma valorização única dos colaboradores, como não acontecia na indústria ou no comércio. É frequente no digital os colaboradores serem acionistas das empresas. Graças ao digital temos novas categorias profissionais. Há mesmo quem diga que dentro de duas décadas cerca de 70 por cento das profissões atuais já não existirão. Temos os free lance, ou os chamados nómadas digitais que trabalham remotamente e vivem em diversos países e cidades. Trabalham via computador e caraterizam-se por não ter vínculo laboral a uma só empresa. É o caso dos designers, engenheiros, fotógrafos, arquitetos. E o que é que os une? Trabalham a partir de plataformas digitais. E a sua qualidade de vida não é pior do que caso tivessem um vínculo laboral com uma só empresa e se estivessem associados aos riscos e aos insucessos dessa companhia. Em suma, eu acho a "uberização" da economia positiva, também porque acredito que nesta revolução digital que está a acontecer conseguiremos salvaguardar um modelo social de defesa dos direitos dos trabalhadores e das suas carreiras, do sistema de segurança social que temos, etc.

Startups e unicórnios são expressões que entraram no léxico. Trocado por miúdos, o que representam e significam para a nova economia?
Sim, são termos que se ouvem todos os dias. Unicórnio é uma empresa avaliada em 1 bilião de euros e que regista um crescimento muito rápido. Nós nunca tínhamos feito parte deste "campeonato" e agora temos três unicórnios de empresários portugueses, enquanto a Espanha não tem nenhum. Pela primeira vez temos empresas relevantes numa revolução industrial, no momento em que ela está a acontecer. Claro que também têm desvantagens e desafios porque são consumidoras de enormes montantes de capital de risco, que por vezes se perde. São empresas com produtos e serviços que se vendem à escala global, o que explica o seu crescimento acelerado, em 3, 4 ou 5 anos. 

unnamed.jpg

Acompanhou de perto, especialmente quando foi secretário de Estado da indústria, o processo de implantação da Web Summit em Portugal. Em que medida é que este evento se reveste de importância para o país, nas suas diversas dimensões?
A Web Summit é essencial e fulcral para Portugal. Sempre tivemos a necessidade de associar a marca Portugal a valores como a ciência, a investigação, a inovação, a engenharia e o empreendedorismo. A Web Summit permite-nos alterar a imagem que o mundo empresarial e a imprensa económica têm do nosso país. E isso tem-nos trazido benefícios enormes. Só os investimentos diretos da Google, da Mercedes, da Wolksvagen, da BMW e dezenas e dezenas de startups, etc. Pela sua dimensão, dezenas e dezenas de eventos associados e o dinheiro gasto em restaurantes e hotéis tem tido um grande impacto. Recebemos dezenas de chefes de Estado, mais de dois mil jornalistas de todo o mundo. Não estávamos habituados a ser durante uma semana o centro do mundo. A Web Summit é neste momento o maior evento em termos de discussão sobre aspetos tecnológicos e o seu impacto na democracia, nos estados, na  imprensa, etc. É o principal evento do Planeta onde se discute inovação e futuro.

Foi o fundador da internet, Tim Berners Lee, que disse durante a Web Summit, em Lisboa, que «a internet precisa de conserto». Concorda? É exagerado dizer que vivemos numa democracia digital sem controlo?
Os avisos do Tim Berners Lee são muito sábios. Não há um regulador para a internet, ela está acima de estados, de governos e dos reguladores nacionais. E mesmo os países que a tentam controlar, apenas atrasam alguns processos, mas com resultados frágeis. A internet necessita de regulação, mas não exageremos: os medos e as desvantagens da internet acontecem noutros setores. O que dizer das "fake news" na imprensa escrita, na televisão e na rádio? A internet necessita de um olhar atento de reguladores, mas outros setores, como o comércio, a imprensa e a indústria, também precisam. Eu acredito que estão a faltar organizações multinacionais que tenham essa responsabilidade. Mas creio que os Estados estão a organizar-se nesse sentido e a dar esses passos.

Trump e Bolsonaro são dois exemplos recentes de dois chefes de Estado eleitos, em grande medida, pelas redes sociais e que comunicam, preferencialmente, por estes meios. A União Europeia vai lançar um projeto contra as "fake news", tendo em vista as eleições de maio. É possível contrariar o poder desmedido das empresas tecnológicas?
As "fake news" são um fenómeno muito falado agora graças a Trump, mas sempre existiram na imprensa escrita e até nas televisões. A vontade manifestada pelos políticos em legislar sobre as "fake news" é muito perigosa. Foi muito perigoso quando quiseram fazer isso com a televisão, os jornais e a rádio e será perigoso se fizerem isso na internet.

Porquê?
Porque grande parte das "fake news" não o são a 100 por cento. Há notícias a que lhes são dadas uma dimensão extraordinária, mas até são verdadeiras. Mas eu quero realçar que no digital as "fake news" são acompanhadas por um movimento de resposta massivo. Aconteceu, recentemente, nas eleições brasileiras. As empresas tecnológicas (Google e Facebook) são as mais interessadas em limitar as "fake news" e nos últimos meses têm feito um trabalho extraordinário para conter esses fenómenos.

Argumenta que em Portugal existe uma recriminação excessiva do falhanço. É este horror ao fracasso que impede a existência de uma cultura de empreendedorismo?
Portugal é o segundo país da Europa com maior cultura de empreendedorismo. Não sei o que aconteceu a uma geração que andou a dizer que eramos avessos ao risco, o que é uma completa mentira que passou para a comunicação social, sem solidez factual. Os números demonstram isso todos os dias. Para o mundo empresarial, como funcionários, como emigrantes, como povo que tem de riscar há vários séculos. Não temos recursos naturais suficientes para sermos um pais rico. Por isso, está no sangue do português ser empreendedor. Infelizmente, o Estado e as empresas privadas recriminam em demasiado o falhanço. É verdade. As leis não são mais do que a consciência social. É muito difícil em Portugal uma pessoa se erguer após um fracasso num produto, serviço ou numa ideia de negócio. Isto tem de ser alterado urgentemente. Porque o que falha é a ideia de negócio e não o empreendedor. Todos os empreendedores de sucesso no mundo tiveram dezenas ou centenas de ideias que falharam, mas há sempre uma que vinga. O que é preciso é falhar rápido e barato, o que nem sempre é possível em Portugal.

Num artigo que publicou em 2017 no "Jornal de Negócios" escreveu que «sem mais educação falta-nos o sentido crítico», ao mesmo tempo que alertava que Portugal ocupava o penúltimo lugar do ranking da UE em termos de pessoas com o ensino secundário e superior. O que falta para a educação se tornar um desígnio nacional: investimento ou vontade política?
A educação é a base da sociedade e o atraso da população ativa em termos de habilitações literárias explica-se e espelha-se em diversos problemas: nas empresas, na democracia e no Estado. Nota-se também nos produtos e serviços da nossa economia,  na gestão, nos processos e na eficácia. Mas também se vê noutros campos: na imprensa, na democracia, no debate publico, nos políticos, nos líderes, nos dirigentes, etc. Quando o nível de sofisticação, de ensino e cultura é baixo,  reflete-se em todos os setores da sociedade.

Como resolver?
Por exemplo, sabendo que os problemas da educação são muito mais graves do que os das carreiras dos professores. É preciso discutir outras coisas: novos conteúdos pedagógicos, outras salas de aulas, outras maneiras de ensinar. O modelo atual de ensino está ultrapassado. Tem centenas de anos. Radica na indústria. As escolas são quase linhas de produção industrial. Temos de discutir autonomia, ver as realidades concretas de cada região, de cada escola. Temos de debater muito mais. Os problemas da educação não se esgotam nas carreiras e vencimentos.

unnamed_1.jpg

É nos bancos das escolas que são lançadas as bases para um país mais empreendedor e mais arrojado?
Os bancos de escola têm um papel fundamental para estimular o empreendedorismo, a inovação, o arrojo e a curiosidade. Sabemos que os jovens vão entrar na vida ativa no decurso de uma revolução tecnológica. Estes jovens podem ambicionar carreiras e profissões que provavelmente já não vão existir quando eles entrarem no mercado de trabalho. No futuro, as escolas, mais do que ensinar conteúdos - que estão à disposição dos alunos através de um clique - vão ensinar atitudes. Vamos ter de estimular muito mais a curiosidade e a vontade de conhecer e ir além do que se sabe, para lá da mera memorização de elementos. Acho que não se deve exigir tudo à escola, mas é preciso reconhecer que a escola pública em Portugal - num país com tantas limitações económicas e sociais - tem um papel fundamental. As primeiras lições de empreendedorismo devem ser dadas na escola pública.

Podemos, algum dia, vir a ter um visionário da tecnologia português: um Elon Musk, por exemplo?
Sim, no digital podemos ter um Elon Musk português. Ser português até pode ser uma vantagem.

Robotização, inteligência artificial e novas formas não convencionais de emprego. Os especialistas dizem que o mercado de trabalho está a ser fustigado pela tempestade perfeita. Como serão os empregos no futuro?
Antes de mais, é preciso ver que estamos no meio de uma revolução - a quarta revolução industrial. Muitos empregos serão afetados, outros serão criados. Há muitas funções que são hoje desempenhadas por humanos e que podem ser feitas com mais perfeição por máquinas. E ainda bem. E o que temos assistido nas economias onde há mais introdução de tecnologias e robótica, é a valorização das funções desempenhadas por seres humanos. Temos muito mais gente a viver de funções e a praticar funções que só um ser humano pode executar. Que transmitam sentimentos e emoções. Mas há mais exemplos desta tendência: a música está toda no digital, no Spotify ou no iTunes e nunca houve, como agora, tanta gente a frequentar concertos ou a ir a festivais. Dou-lhe outro: todo o mundo dos negócios é digital e nunca houve tanta gente em feiras, congressos e seminários. Tudo o que tem o dedo do homem vale dinheiro e permite remunerar melhor quem fez esse trabalho, na indústria, no comércio, etc.

CARA DA NOTÍCIA

Porta-estandarte do empreendedorismo

João Vasconcelos tornou-se conhecido no espaço público como dinamizador do empreendedorismo jovem e ficou associado à realização em Lisboa, em novembro de 2016, da maior cimeira de startups, a Web Summit. Foi o diretor executivo da Startup Lisboa e responsável pelo LIDE Empreededorismo, uma associação com foco na promoção da sustentabilidade e responsabilidade social nos negócios e nas empresas. Foi ainda o mentor de vários programas de aceleração empresarial, tal como o Startup Pirates, Founder Institute, Lisbon Challenge e Seedcamp.  Na atual legislatura foi secretário de Estado da indústria, cargo de que se demitiu em julho de 2017. Os carros autónomos e a modernização da indústria e a requalificação profissional dos trabalhadores em Portugal foram dois dos dossiês em que João Vasconcelos se empenhou mais na sua passagem pelo Governo de António Costa.
Foi adjunto e assessor do gabinete do Primeiro-Ministro, José Sócrates, com responsabilidade na área dos assuntos regionais e economia, entre 2005 até 2011. Foi vice-presidente da Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE), entre 1999 e 2005.

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
 
 
 
Unesco.jpg LogoIPCB.png

logo_ipl.jpg

IPG_B.jpg logo_ipportalegre.jpg logo_ubi_vprincipal.jpg evora-final.jpg ipseutubal IPC-PRETO