Arquivo Morto
Letras roubadas
(extraído do "Jornal de
Actualidades Próximo Orientais", nº X, vol. 10, ano 2010)
A mais sensacional
descoberta, feita por acaso, e agora depositada nas reservas do
Museu de Antiguidades Egípcias, na cidade do Cairo, desde a
descoberta célebre Pedra de Roseta, por um oficial do exército
napoleónico em 1799, contendo uma inscrição em grego, demótico e
escrita hieroglífica, e que trouxe a glória a Jean-François
Champollion, foi até agora escamoteada do grande público. Conhecida
de escassos meios académicos, foi sendo divulgada em surdina,
negada ou pura simples desvalorizada, tal a comoção causada pelo
seu conteúdo, capaz de alterar por completo os dados anteriormente
conhecidos sobre o possível curso da História.
A ciência dos eruditos não gosta, e
receia acima de tudo, os factos incómodos que perturbem ideias
feitas, teorias carcomidas e pré-conceitos arreigados. O director
das antiguidades egípcias, doutor Anwar Fazzul, declarou
recentemente, que a descoberta anunciada pelo arqueólogo John
Barefoot, não "passa de pura especulação", e que a chamada notícia
"posta a circular por pessoas de manifesta má fé", não permite
assegurar "que o controverso documento, sujeito ainda a avaliação
independente, tenha modificado de por algum modo ou alcance o nosso
entendimento da história". A verdade é que, segundo as informações
disponíveis, o documento em questão, uma placa de razoáveis
dimensões, cinzelada em pedra-pomes, resgatada ao mar, nas
escavações sub-aquáticas nas águas do porto de Alexandria, pela
equipa de Barefoot, provam uma outra versão da história
oficial.
Nele se relata como o curso dos
acontecimentos podia ter sido outro, se os intentos do escriba-mor
do Baixo Império tivessem vencido. Esta é a história do infame
Senilorthopep, escriba, gramático e conspirador delirante, que
quase destruiu o legado da antiga escrita faraónica, mergulhando o
império numa tremenda confusão linguística e numa não menos
perigosa deriva de auto-destruição. Os poucos peritos que tiveram
acesso ao achado, não são unânimes quanto às causas de tal
desvario, mas todos concordam num ponto - tivesse sido bem
sucedido, o resultado teria sido mais devastador que o chamado
efeito torre de Babel. Ao que parece, as primeiras dificuldades
começaram a ser sentidas na comunicação escrita entre as diversas
regiões do alto e baixo Nilo. As mensagens tornaram-se, pouco a
pouco, mais ilegíveis e menos compreensíveis, devido à falta
notória de hieróglifos, um aqui e outro ali, coisa de pouca monta,
mas lançaram sinais de alerta, quando as ordens enviadas do centro
de poder real eram erradamente cumpridas ou mesmo ignoradas.
A investigação, realizada por
Halfabetiplop, da Irmandade de Toth, à qual pertencera o renegado
escriba, para apurar as causas do estranho fenómeno, detectou
numerosas rasuras e ausências tamanhas, inexplicáveis e
extravagantes. Nos templos, por seu lado, os escribas notaram o
súbito apagamento dos sinais inscritos na pedra, deixando perplexo
o conjunto da agremiação sacerdotal. A praga alargou-se aos
documentos civis, mercantis e militares. Faltavam letras, como se
diria em linguagem actual e corrente. Alguém estava a apagá-las. As
consequências, sub-reptícias a princípio, depressa se tornaram
evidentes - a linguagem escrita perdia acuidade, veracidade e
precisão, donde resultou uma enorme confusão nas leis e nos
negócios, além da perda por mais evidente de poder efectivo de
comunicação nos assuntos mais triviais. Ninguém acredita numa
língua de trapos, nem há respeito por aquilo que pretende veicular
e transmitir.
O investigador seguiu as mais
diversas pistas, que o conduziram à porta do escriba-mor do reino.
Despeitado por lhe ter sido negada uma benesse de somenos
importância, decidiu vingar-se pela magia, assegurando um meio
infalível de o fazer - apagamento dos sinais de escrita. Alguns
idiomas da região padeceram, talvez por glossalgia galopante, de
maleitas idênticas, ao suprimirem, por exemplo, as vogais, dando
origem as outras confusões linguísticas de alcance religioso, ainda
não resolvidas. Outros poderes, tomados por delírios de grandeza,
tinham reduzido as respectivas escritas a tracinhos cuneiformes,
por alegados motivos de poupança.
No caso em apreço, provou-se que a
retirada progressiva de hieróglifos estava em vias de conduzir à
vertiginosa decadência da expressão oral e escrita, com a
consequente atrofia cognitiva. Em suma, a regressão total e
completa a um estado de barbárie até à destruição da civilização. O
estudioso Aziz Barack, que lançou alguma luz sobre o caso, é
peremptório ao afirmar que o desaparecimento dos hieróglifos,
diríamos hoje o roubo descarado de signos, só podia conduzir à
queda inevitável do antigo reino do delta. Houve uma reacção pronta
e o criminoso não teve sorte nos seus propósitos dementes. O relato
do seu suplício é bastante gráfico - foi obrigado a engolir,
literalmente, cada hieróglifo sonegado. Consta que morreu de
indigestão alfabética.