Entrevista

Paulo Moura em entrevista
Os dias do Capitão de Abril

foto Paulo Moura 2.jpgPaulo Moura é jornalista do Publico, professor universitário de Jornalismo e autor da biografia Otelo, o Revolucionário (chancela D. Quixote). Uma entrevista sua ao capitão de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho, terminou num trabalho biográfico, de três anos, sobre o homem que idealizou e preparou a operação militar que no dia 25 de Abril de 1974, libertou e conduziu o pais à democracia. O homem contraditório que atravessou uma guerra e fez uma revolução sem disparar um único tiro, mas, mais tarde, seria implicado com a rede terrorista FP25 de Abril. Romântico, de carácter reconhecido até pelos inimigos, mantém uma relação com duas mulheres que assume com honestidade, como assume tudo o que fez na vida. Otelo queria ser actor. O destino ofereceu-lhe o palco da operação militar de maior sucesso da História portuguesa.

Escreveu a biografia Otelo, o Revolucionário, sobre o capitão de Abril Otelo Saraiva de Carvalho. O que o levou a escrever esta biografia?

Escrevi a biografia porque primeiro fiz uma entrevista grande, com ele, para o jornal onde trabalho, que é o público. E surgiu a ideia entre mim e a minha Editora, a D. Quixote, de tornar a entrevista um pouco mais extensa e fazer um livro, que seria um trabalho biográfico. Pensámos que isso demoraria pouco tempo. Mais um mês e estaria o trabalho feito. Mas, quando comecei a fazer a investigação, a falar com ele e outras pessoas, percebi que não se consegue fazer uma biografia em tão pouco tempo. Não faria sentido fazer um trabalho superficial sobre o tema. Teria de fazer uma biografia séria, o que levou três anos a fazer. Esse foi o motivo imediato. A razão pela qual achei que valia a pena fazer este trabalho, é porque acho que é uma personagem muito importante na História portuguesa, que sempre me fascinou pela forma expedita e descontraída como fez coisas tão importantes. Foi capaz de realizar uma revolução, quando toda a gente protestava e se lutava de forma clandestina contra o regime. Mas, no momento certo, não houve ninguém que se decidisse fazer a operação militar. Foi ele que, nesse momento, tomou essa iniciativa e planeou tudo sozinho. Foi também esse lado que me fascinou, ele sozinho ter realizado uma tarefa tão gigantesca.

Sem Otelo hoje poderíamos falar de 25 de Abril?

Hoje em dia está muito na moda, mesmo entre os historiadores, haver a história dos "ses". A história que poderia ter sido, se tivesse sido de outra maneira. Se o Otelo não tivesse existido teria havido 25 de Abril é um exercício que se pode fazer, mas é sempre um exercício especulativo. Nunca poderemos saber. Pessoalmente, estou convencido de que teria sido diferente. Claro que o regime acabaria. Estávamos num momento histórico, em que de uma forma ou outra, o regime teria de ser derrubado. Não só havia uma grande força de oposição, como o próprio regime estava podre, não tinha hipótese de lidar com os seus próprios problemas, principalmente a guerra colonial. O Vasco Lourenço, também estava à frente do Movimento, e depois, por uma série de circunstâncias do acaso, não foi ele, porque foi deportado para os Açores. Foi o Otelo a assumir o controle da parte operacional do Movimento. Se tivesse sido o Vasco Lourenço, ele tinha ideias diferentes, teria tentado negociar politicamente com o regime, eventualmente, teria feito outro tipo de operação. Sem esta personalidade do Otelo que gosta de realizar as coisas, fazer um plano de operações, como ele fez, pô-lo em prática e levar aquilo à frente, outras pessoas teriam feito de outra forma. Poderia ter havido outros desfechos da História, como uma evolução mais lenta, pacífica, de acordo com o regime, ter-se mantido as colónias durante mais algum tempo. A História poderia ter sido diferente sem a acção de Otelo.

Que homem é Otelo?

É uma personagem muito complexa. É difícil de definir. É uma pessoa por um lado superficial, que não se leva a si próprio muito a sério, e por outro lado, é uma pessoa profundamente generosa, com uma grande capacidade de realizar as coisas, com uma grande competência militar, mas, com um valor humano muito elevado. Toda a gente lhe reconhece isso, os amigos e até os inimigos, que ele é uma pessoa com grande carácter, de uma grande generosidade. E depois, tem uma faceta também de actor, que é uma faceta importante da personalidade dele. Ele sempre quis ser actor, desde miúdo, e só não foi porque o pai não o deixou estudar teatro, em Nova Iorque, como ele queria. Foi para a carreira militar quase forçado, mas acabou por ser um pouco um actor, na carreira militar. Isso percebe-se muito ao longo da sua actuação. Ele comporta-se muito como um actor, alguém que gosta de representar, que gosta das audiências, de ser aplaudido, é isso que o entusiasma. Ele gosta mais do palco, do que do poder. Nunca quis cargos de poder. Foi convidado para todos os cargos, para Presidente da República, para primeiro ministro, várias vezes, e nunca aceitou. Mas, estar no palco, ser aplaudido, a sua acção ser vista por muita gente, isso sim, dava-lhe prazer. São várias componentes que o tornam uma personalidade muito pouco comum.

Fez uma guerra sem matar ninguém e uma revolução sem derramar sangue. Mais tarde seria condenado por implicação com a rede terrorista FP 25 de Abril. Esta é a maior contradição da vida de Otelo?

Ele próprio diz que é um homem de contradições, reconhece isso. Toda a gente que o conheceu bem, diz isso. Não só nisso, como em todas as pequenas coisas da sua vida. Ele é contraditório porque, às vezes, guia-se por valores muito pessoais e não está a tomar consciência de qual é a envolvente social e política à sua volta. Por ingenuidade política e mesmo na relação com as pessoas, ele próprio também o admite. Este caso é a contradição mais evidente. Um homem que é quase um pacifista - se bem que não podemos falar de pacifista enquanto falamos de um militar, é uma contradição nos termos - mas foi relutante com a carreira militar, não foi isso que ele quis fazer na sua vida pessoal. Toda a gente diz que é incapaz de fazer mal a alguém. Falei com várias pessoas que estiveram com ele na guerra colonial e todos me confirmaram isso, que ele não levava as armas carregadas ou não levava arma. Ele dava as ordens mas, ele próprio, não tinha a arma carregada para não ter de matar ninguém. Por outro lado, esteve envolvido nesse caso das FP25, que era um grupo extremamente violento e tinha como objectivo operações de acção directa, matar se fosse preciso para derrubar o regime. Foi um caso muito controverso, até hoje não se sabe ao certo qual foi a implicação de Otelo nas FP25. Era uma organização muito complexa, que tinha várias componentes. Chamava-se Projecto Global, e o Otelo era o líder. Dentro do Projecto Global havia um braço político, um braço militar, havia um braço dos quartéis outro dos trabalhadores, com existências mais ou menos autónomas e estanques. Ele era o líder da organização, mas não estava directamente implicado nos atentados, nem era ele que os decidia. Até que ponto ele é de facto responsável, até sob o ponto de vista jurídico, é uma questão complicada. O Tribunal considerou que ele era culpado, mas mais tarde foi perdoado e amnistiado e depois absolvido.

Ele é um homem romântico?

Ele é extremamente romântico, em todos os sentido. Tanto no sentido da vida pessoal, amorosa, que é muito animada e recheada de episódios; como na forma como ele vê a própria vida política e sua intervenção. Sempre de uma forma muito romântica e idealista.

Na biografia Otelo, o Revolucionário pode ler-se e passo a citar: «Sente-se bem em família. Tanto, que tem duas. Casou cedo, com uma colega de liceu. Mais tarde, na prisão, teve outro amor. Não foi capaz de abandonar a primeira mulher, nem a segunda.» Otelo casou com Dina, uma colega de liceu em 1960; em 1984 , conheceu Filomena, em Caxias. A bigamia de Otelo dominou os comentários à sua biografia. Estava à espera que fosse assim?

Não, confesso que não estava à espera disso. Isso é a forma como às vezes os temas jornalísticos funcionam. Como um primeiro jornal falou disso, os outros foram todos a seguir. Sabia que isso ia ser falado, porque há um tipo de imprensa que gosta sempre desses acontecimentos. Mas, surpreendeu-me, porque isto não era propriamente uma grande novidade, um furo jornalístico. Só era porque nunca ninguém quis saber da vida privada do Otelo. Não foi um segredo que ele finalmente tivesse decidido revelar ao mundo. Ele falou comigo abertamente sobre isso. Estava a fazer a sua biografia e falamos todos os aspectos e desse também. A prova é que depois os jornais surgiram com fotografias dele com uma mulher e com outra mulher. Essas fotografias estavam nos arquivos dos jornais. Isso no fundo já era conhecido, ninguém quis aprofundar. De repente, surgiu assim como a novidade da biografia. Mas, é muito redutor em relação à biografia. Achei que era importante incluir isso, porque uma biografia deve incluir os aspectos pessoais. Essas facetas mais pessoais e privadas da vida dele são importantes, até para perceber a personagem política que ele é. A forma como ele se comportou e actuou tem muito haver com isso, com a sua honestidade. Se existe algo de original e insólito desta relação com duas mulheres é o facto de ser "aberta". Como nós sabemos há muita gente que tem amantes e relações escondidas. Os homens podem ter uma mulher oficial e depois uma amante, que é secreta. Para o Otelo isso nunca faria sentido, não seria capaz de nada disso, uma amante secreta ou uma mulher que ele tratasse de uma forma pior do que a outra, de segunda classe ou segunda categoria. Ele trata as duas por igual, já que isto aconteceu na vida dele. Teve um primeiro casamento, não foi capaz de se divorciar da primeira mulher. Esse traço da personalidade dele é importante também para se perceber quem ele é.

Otelo é o Che Guevara português?

Não sei, isso é difícil de dizer. Uma coisa são as pessoas, outra coisa são os mitos, que depois se fabricam. Ele não é, mas podia ter sido um mito, como Che Guevara foi em Cuba e é em todo o mundo. Tornou-se um ícone de um certo tipo de ideia inconformista e revolucionária, já não ligado com os factos em si, da revolução cubana, mas com uma ideia mais abstracta de rebeldia, de espírito de inconformismo e de vontade de mudança das coisas. O Otelo não se tornou isso, porque não tem a capacidade de gerir a sua própria imagem. Estragou a imagem com as declarações que faz e depois a própria actuação do tempo das FP 25. Se bem que,o Che Guevarra também esteve envolvido em actos terríveis, como criar o primeiro campo de concentração para trabalhos forçados em Cuba, e ninguém hoje se lembra disso. Ficou apenas o essencial daquela imagem dele, do que representa em termos simbólicos, e não aquilo que ele fez, eventualmente, de errado durante a vida. Portugal também é muito diferente, não vive muito bem com os seus heróis. Não é capaz de ter heróis, prefere ter bodes expiatórios, como digo no livro. Prefere ver os dados negativos e culpá-lo de muitas coisas que aconteceram na revolução e depois da revolução, nomeadamente as consequências da descolonização, etc. Há muita gente que culpa o Otelo e preferem tê-lo como símbolo disso mesmo, do que como símbolo da libertação, que foi o 25 de Abril.

Pelos comentários polémicos que por vezes profere, Otelo é muito criticado, na imprensa. Otelo é um homem desiludido com o rumo que o país tomou?

É desiludido com a política, com a situação do país. É desiludido, como acho que todos nós somos, com aquilo que está errado, com aquilo que não se cumpriu de todos os ideais da Revolução. Ele é uma pessoa muito sensível às injustiças sociais. A existência dos muito ricos e dos muito pobres é algo que o incomoda, de uma forma quase física. As injustiças que são visíveis e o perturbam, não o deixando viver em paz. Não ao nível da revolução que ele fez, do que ele sonhou para o país não se ter cumprido. Ele, por natureza, não é uma pessoa desiludida, nem amarga. Pelo contrário. Está sempre bem com tudo, gosta de todas as pessoas. Falei com vários amigos dele, pessoas que o conhecem, que colaboraram com ele em vários períodos e mesmo muitas pessoas que não gostam dele, que o criticam, ou que o odeiam . Depois, vou falar com ele e ele diz esse tipo é fantástico, é o meu grande amigo. Ele vê sempre o lado bom das pessoas e considera-se amigo deles, mesmo daqueles que o criticaram e lhe fizeram mal, e o prenderam, como o Ramalho Eanes. O Otelo considera-o um grande amigo. Ele é uma pessoa muito positiva.

Paulo Moura 1.jpgComo foi trabalhar na biografia? 

Foi muito difícil. Gostaria quando faço um livro, de ter tempo inteiro para escrever, mas isso não acontece. Faço muitas coisas ao mesmo tempo: sou jornalista no público a tempo inteiro, dou aulas na Faculdade de Jornalismo, a tempo inteiro, também. Portanto, tem de ser nos tempos que sobram que escrevo. E uma biografia é um trabalho muito exaustivo. Exige muita energia, muito tempo, é preciso fazer muita investigação, confrontar muitos dados. Não sendo um trabalho de História, exige muitas entrevistas, muita consulta, muitos documentos. Isto foi feito nos interstícios do meu tempo. Levei três anos a escrever o livro. Mas, não foram três anos a tempo inteiro, foi a trabalhar nas minhas férias, nos fins-de-semana, quando tinha tempo. É um trabalho custoso. Talvez seja essa a explicação porque não haja muitas biografias em Portugal. Portugal tem personagens incríveis, interessantíssimas, e não há muitas biografias escritas. Não há o hábito de escrever biografias, nem de ler, como noutros países. Em muitos países como nos Estados Unidos, ou Inglaterra, são o género que as pessoas mais lêem e compram, são sucessos comerciais. Em Portugal, não há esse hábito, porque também não há muitas biografias escritas.

Está nos seus planos escrever outras biografias?

Sim, tenho planos. Tenho estado a falar com a minha Editora sobre quem serão as próximas vítimas (Risos). Apesar de ser um trabalho muito difícil e termos de pensar sempre neste trabalho para demorar três, quatro anos. É irrealista pensar que se pode demorar menos tempo. É algo que se vai fazendo, ao mesmo tempo que se fazem outras coisas.

 

Eugénia Sousa
Direitos Reservados
 
 
Edição Digital - (Clicar e ler)
 
 
Unesco.jpg LogoIPCB.png

logo_ipl.jpg

IPG_B.jpg logo_ipportalegre.jpg logo_ubi_vprincipal.jpg evora-final.jpg ipseutubal IPC-PRETO