Entrevista

José Miguel Trigoso, presidente da Prevenção Rodoviária Portuguesa
«É fundamental alterar os exames de condução»

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Crítico do ensino da condução em Portugal, José Miguel Trigoso defende uma «repressão social» pelo uso do telemóvel ao volante. O presidente da Prevenção Rodoviária Portuguesa alerta ainda para os cuidados redobrados a ter com a circulação de trotinetas nas principais cidades do país.

Ainda faz sentido dizer que existe uma «guerra civil» nas estradas portuguesas?
Enquanto morrerem pessoas ou ficarem gravemente feridas, admito que faça algum sentido. A sinistralidade rodoviária é consequência do bom ou mau funcionamento do sistema de transportes rodoviários. Um acidente pode ser um acaso, a sinistralidade rodoviária de um país não é um acaso. Cada acidente corresponde a uma rutura do equilíbrio do sistema, em que de um lado está o contexto e do outro a nossa capacidade de resposta a essas exigências que o ambiente nos coloca.

Quais os fatores mais determinantes para um acidente: os humanos, os técnicos ou os ambientais?
Quando circulamos ao volante ou a pé observamos o ambiente rodoviário que nos rodeia e através da análise que fazemos prevemos o que vai acontecer a seguir e tomamos decisões. Alguns estudos referem que tomamos, ao volante, 12 decisões por minuto. Se as dificuldades causadas por esse ambiente que nos rodeia, naquele local, foram superiores às capacidades de resposta temos a rutura do equilíbrio do sistema. Ou seja, dá-se um acidente. Para reduzir o número de ruturas no sistema temos de reduzir as dificuldades que o ambiente nos coloca e precisamos de aumentar as nossas capacidades. É aqui que entra a educação, a formação e a comunicação como fatores fundamentais para definirem as nossas respostas. Isto para não falar do cansaço, da ingestão de álcool, drogas ou de distrações de natureza tecnológica que reduzem, fortemente, a capacidade de resposta do condutor.

Os números da sinistralidade registaram uma tendência de redução até 2016 e de lá para cá essa tendência inverteu-se. Encontra alguma explicação para isso?
Tivemos uma tendência de redução da sinistralidade na sequência do esforço de construção de um ambiente rodoviário propício a menos dificuldades: melhores vias, melhores veículos, ordenamento do trânsito mais adequado, etc. Por outro lado, através da alteração de atitudes da sociedade, em geral, e mesmo pelos comportamentos individuais também se melhorou a resposta às dificuldades. O número de acidentes reduziu-se, mas foi ao nível da diminuição das consequências gravosas desses acidentes que a melhoria foi mais notada. Deixe-me referir um exemplo que dá uma ideia do que estou a falar em termos do parque automóvel: em 1975, tínhamos cerca de um milhão de veículos e atualmente temos aproximadamente seis milhões. O risco potencial é muitíssimo maior, mas baixaram as consequências dos acidentes. E isso também se explica pela utilização sistemática do cinto de segurança, dos airbags e até a própria construção do veículo também adicionou mais segurança aos passageiros. As melhorias, com reflexos nas estatísticas, acontece até 2012, 2013, altura em que a sinistralidade muito grave continua a descer, mas o número de feridos graves e leves deixou de baixar. Alertei para o perigo desta situação. E em 2016 a sinistralidade de consequências mortais também deixou de baixar.

A situação é similar ou distinta face a outros países europeus?
O que se passou noutros países da Europa foi praticamente o mesmo. A partir de 2015 a sinistralidade rodoviária praticamente estabilizou, ou seja, deixou de reduzir. Na minha opinião, isto deve-se ao aparecimento em força de um aparelho que provocou uma distração brutal na condução e que é o telemóvel. E as estatísticas atingem o seu pior desempenho, precisamente no momento em que se deu o apogeu do telemóvel enquanto aparelho não apenas para falar, mas também para consultar emails, redes sociais, etc. É uma espécie de escritório ambulante.

Esse é um problema que identifica. E ao nível das campanhas de prevenção?
A nível europeu, e Portugal não foi exceção, creio que houve um afrouxamento claro de uma estratégia de comunicação e de medidas que vinham a ser implementadas. Utilizando um termo popular, julgou-se que «a coisa estava ganha». De alguma forma, facilitou-se. E os resultados estão à vista. O melhor que se tem conseguido é reduzir cerca de 25/30 mortos por um milhão de habitantes, mas não se consegue ir mais além. Portugal está pior, porque situamo-nos nos 50/60 por um milhão de habitantes.

Já tem na sua posse os números de 2019?
Os números provisórios que tenho apontam no mesmo sentido, ou seja, para piorar. Não de forma acentuada, mas para piorar.

Defende o aumento de campanhas de sensibilização contra o uso do telemóvel ao volante. Pretende, de alguma forma, criar o sentimento de uma certa repressão social?
Era muito útil que houvesse uma repressão social do uso do telemóvel ao volante. Se a sociedade passar a condenar ativamente quem se distrai ao volante por estar ao telemóvel, dá-se um grande passo em frente para reduzir o seu uso. Dou-lhe um exemplo de um êxito em termos de repressão social: hoje em dia é impensável alguém transportar uma criança sem ser numa cadeirinha. Quem fizer isso é malvisto e reprimido socialmente. Existiram campanhas de sensibilização, mas a sociedade percebeu que era fundamental para o bem estar das crianças adotar este comportamento de segurança. Por outro lado, já assistimos a alguma repressão social, apesar de bem mais leve, para quem conduza após ter bebido uns copos. Mas ainda tem pouca eficácia em termos concretos. Um terço dos condutores mortos regista uma taxa de alcoolemia ilegal e um em cada cinco dos peões mortos apresenta álcool no sangue. Por outra parte, ao nível da velocidade, esta está longe de ser alvo de censura social e é muito frequente ouvirmos alguém vangloriar-se por «fazer Lisboa-Porto em hora e meia.»

Em suma, o telemóvel é, na sua opinião, o principal fator que contribui para acidentes na estrada?
Sim. Num estudo que vamos apresentar brevemente, mas cujos dados preliminares já foram divulgados em Bruxelas, os portugueses são, considerando um universo superior a 20 países, os que assumem e confessam a maior utilização do telemóvel em mãos livres em consulta e teclado.

Ficou célebre o slogan «se conduzir, não beba». A ingestão de bebidas alcoólicas antes de pegar no volante ainda é um traço marcado da nossa forma de estar enquanto povo?
Acredito que sim. Há uns anos, desenvolvemos um estudo de observação de comportamentos relativamente ao álcool, testando seis mil condutores, de forma aleatória e em diferentes locais e horas do dia, com a colaboração da PSP e da GNR, de forma a tornar a amostra válida. Queríamos obter a percentagem de condutores que guia, em termos médios, com taxas de alcoolemia ilegais: ou seja, iguais ou superiores a 0,5 - taxa a partir do qual existe punição. Chegámos à conclusão que cerca de 1,8% dos controlados tinha taxas de alcoolemia ilegais, sendo que 0,2% tinha taxas de álcool superiores a 1,2 - taxa crime. A sociedade tem de ser radical perante quem abusa do álcool antes de iniciar uma viagem. E é importante que se esclareça que não estou a falar da ingestão de uma ou duas imperiais, nomeadamente se for a acompanhar uma refeição.

A PRP tem alguma sugestão para reduzir a incidência destas situações?
Temos insistido numa alteração legislativa que passa pela introdução do «Alcoho-lock», que já foi experimentada noutros países com sucesso. Trata-se um aparelho que se mete no carro, ligado à centralina, e que impede uma pessoa de conduzir se não fizer a prova que não tem álcool no sangue ou está abaixo dos limites autorizados. Este projeto necessita de algumas alterações legislativas adequadas e de ser monitorizado em termos de comportamentos e apoio médico ou psicológico.

_ANT1691 (2).JPGNo «Dia mundial da cortesia ao volante» a PRP revelou que são muito poucos os portugueses que cumprem o simples ato de fazer pisca. É apenas um ato pouco cortês ou revela um baixo nível de cidadania?
A educação rodoviária é fundamental para os condutores, em particular, mas também para os cidadãos, de uma forma geral. É muito importante um bom relacionamento com os outros quando circulamos: o condutor do veículo automóvel com o peão, o condutor da bicicleta com o condutor da moto, este com o camião, etc. É muito importante manter uma relação construtiva entre os vários intervenientes que utilizam o mesmo espaço.

Quais são os erros cometidos com maior frequência?
Tudo o que seja não respeitar determinado tipo de sinalização que regula o direito de passagem, não respeitar a semaforização, não colaborar com outros sobre o que vamos fazer e, o que acontece com muita frequência, o desrespeitar as passadeiras.

Os atropelamentos nas passadeiras continuam a registar uma elevada taxa de sinistralidade?
Sem dúvida. Mas importa também destacar aspetos positivos, nomeadamente ao nível da redução de taxa de sinistralidade rodoviária nas crianças e nos jovens, que já é menor do que a média europeia. Da observação que faço no dia a dia, registo uma alteração significativa na prática perante os atravessamentos dos acompanhantes das crianças. Sejam pais, avós, professores, etc. É muito frequente ouvir estes intervenientes pedir às crianças para esperarem pelo sinal verde. É importante dar o exemplo. A sociedade tem feito progressos em termos da segurança rodoviária das crianças. Mas estou em crer que, neste aspeto particular, a escola podia fazer mais. E a própria sociedade também. Não se pode aceitar que alguém morra ou fique lesionado para o resto da vida por um acidente de tráfego. Todos temos responsabilidades.

O ensino da condução, de alguma forma, contribui para a sinistralidade ou é a marca social que prevalece?
A marca social não prevalece, mas assume importância, como diversos estudos têm demonstrado. A formação de condutores é importante fundamentalmente para dar ferramentas em termos de conhecimento, ensinar a identificação de riscos, a aquisição de experiência, etc. O que acontece em Portugal e nos outros países? Os jovens chegam a uma escola de condução e dizem que querem tirar a carta, não dizem que querem aprender a conduzir. Portanto, a escola de condução, enquanto entidade privada e que é um negócio - como outro qualquer - terá de proporcionar a obtenção da carta num menor espaço de tempo e ao melhor preço possível. Ou seja, o dono da escola de condução tem de organizar a formação de modo a preparar a pessoa para passar naquele exame. Mesmo que o exame seja mau, é aquele que o candidato tem de ser aprovado. E aquilo que eu considero é que o exame de condução - teórico e prático - é mau do ponto de vista estrutural.

Quer concretizar?
Vou dar um exemplo. No exame de código as perguntas que são feitas sobre velocidade são baseadas no que vem na lei: velocidade máxima permitida em determinado local, etc. Mas não se pergunta ao candidato para responder sobre qual a distância de travagem com piso seco ou piso molhado. E não se pergunta, porque não faz parte do código. Mas esta aprendizagem seria muito importante do ponto de vista teórico.

E na parte prática?
Em Portugal estão pré-definidos uma série de trajetos que são sorteados e o candidato pode treinar as vezes que forem necessárias os percursos prováveis. Não conheço outro país onde isto aconteça. Eu dou sempre os exemplos de países que conheço bem e que registam as mais baixas taxas de sinistralidade da Europa: o Reino Unido, Holanda e a Suécia.

O que é que eles fazem de diferente?
Para tirar a carta nestes países é obrigatório, como cá, fazer o exame. Mas não é obrigatório fazer um número mínimo de aulas de código ou práticas. Na Holanda sei que existem cerca de 15 especialistas que se dedicam em exclusivo a formular questões muito diversas e bem imaginadas para os exames teóricos no sentido de avaliar a maturidade teórica do candidato. A identificação de riscos potenciais e a capacidade de resolução de problemas são especialmente valorizados. Quanto aos exames práticos, acompanhei vários na Holanda e na Suécia. O candidato tem cerca de 55 minutos para fazer prova do seu conhecimento, com a condução a ser feita completamente integrada no trânsito normal de uma cidade. Os examinadores tomam apontamentos e no final do exame ou aprovam, apresentando um relatório, ou se o candidato não for aprovado é explicado em detalhe o que é que este fez mal.

O que é que se pode fazer no imediato para alterar a situação?
É fundamental alterar a estrutura e o conteúdo dos exames de condução - teóricos e práticos. E já agora centralizar os exames de condução numa entidade única, fosse o Estado ou uma organização que coordenasse este sistema que é - diga-se em abono da verdade - bastante disparatado. Sem estas modificações não se conseguirá melhorar o ensino da condução.

Falemos agora na carta por pontos. É crítico do bónus de três pontos aos condutores bem comportados e também da lentidão das notificações. Quer dizer que a burocracia no sistema está a comprometer uma boa ideia?
Ouvi recentemente uma pessoa bem informada dizer que, nos últimos três anos, foram retirados pontos a 150 mil condutores. Mas os autos levantados rondaram, no mínimo, um milhão de condutores. Estes números fazem-me pensar que a eficiência é muitíssima baixa. O que deve ter acontecido é que centenas de milhares de condutores foram premiados com três pontos de bónus quando já tinham cometido contraordenações  graves ou muito graves.
Mas há um ponto positivo: o crime rodoviário passou a contribuir para a cassação da carta. De resto, não se registaram novidades positivas de maior. Pelo contrário. O pior entrave é mesmo as dificuldades de notificação dos condutores e que bloqueiam todo o processo. Eu defendo que se descomplique a legislação para que não suceda o que se passa no dia a dia: cada processo de contraordenação - grave ou muito grave - permite uma diversidade de argumentos e contra argumentos e outras manobras dilatórias, tornando a conflitualidade brutal. Isto entope todo o funcionamento do sistema e dificulta o trabalho dos juristas da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR). Vou dar um exemplo para se compreender: para começar, os condutores deviam ser fotografados de frente e não de costas. Isto diminuiria fortemente o impulso de contestar a contraordenação. O tempo que medeia entre a prática e a punição tem de ser radicalmente reduzido. Duas ou três semanas seria o prazo indicado. E não meses a fio ou até ano e meio, como pude testemunhar.

As trotinetas que se multiplicam como cogumelos nas ruas das principais cidades do país são outros intervenientes que tornam ainda mais complexo o ambiente rodoviário?
As trotinetas são uma novidade mundial. Em termos de mobilidade e de ambiente as trotinetas marcam pontos. Mas é preciso garantir que sejam um meio seguro, para quem as utiliza e para os restantes intervenientes em ambiente de cidade, nomeadamente os peões. A nossa legislação equipara as trotinetas elétricas às bicicletas, em termos de circulação. Ou seja, permite que elas circulem em todos os lugares onde andam os velocípedes. Qualquer pessoa pode conduzir uma bicicleta, o que quer dizer que, no limite, um miúdo de 4, 5 ou 6 anos pode andar de trotineta. Alto e pára o baile!

O uso ou não do capacete nas trotinetas também divide opiniões. O que defende?
Pela interpretação que faço do Código da Estrada, o uso do capacete nas trotinetas é obrigatório. Mas se não querem que seja obrigatório, aconselho a que mudem a lei. Eu acho que se deve ser muito pedagógico, para não matar um meio de transporte que pode ser útil para o funcionamento das cidades, mas há perigos que devem ser, desde já, acautelados para a segurança de todos.

CARA DA NOTÍCIA
Pedagogia e bons conselhos

José Miguel Trigoso está, praticamente nos 70 anos, à beira de se retirar. Há anos que é a voz da pedagogia e dos bons conselhos ao volante. Preside ao Conselho de direção da Prevenção Rodoviária Portuguesa (PRP), tendo sido, entre 1999 e 2007, presidente da Prevenção Rodoviária Internacional (PRI). Foi o coordenador técnico e o porta-voz da Comissão Técnica que elaborou o Plano Nacional de Prevenção Rodoviária no nosso país. Foi membro efetivo da Federação Europeia de Segurança Rodoviária, tendo sido relator de vários grupos de trabalho. Integra o "Main Council" do European Traffic Safety Council. Presidiu, foi relator e apresentou comunicações técnicas em dezenas de congressos e seminários, em 43 países diferentes.

Nuno Dias da Silva
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