Entrevista

Luís Aguiar-Conraria, economista e professor da Universidade do Minho
«A educação está a falhar no combate às desigualdades»

aguiar2.jpgSem papas na língua, Luís Aguiar-Conraria identifica as fragilidades da economia portuguesa e considera que a pandemia agravou as falhas estruturais do sistema de ensino. O professor da Universidade do Minho diz que há um «movimento de segregação social nas escolas» e qualifica de «fraquinho» o desempenho de Tiago Brandão Rodrigues.

São múltiplas as previsões sobre os efeitos da crise e os seus custos sociais, económicos e financeiros: desde quedas do PIB mais otimistas e outras mais pessimistas. Entre os 7 por cento do governo, até aos 17 por cento da Universidade Católica. Até onde pode ir o descalabro e em que cenário de recessão se situa?

Em março, lembro-me de ter feito as contas, e disse que na melhor das hipóteses, se tudo corresse bem, teríamos uma queda de 4 a 5 por cento. Infelizmente, as coisas não estão a correr bem, especialmente no setor turístico. Por isso, e face à informação que dispomos, o cenário mais otimista é, indiscutivelmente, o traçado pelo governo. Se tivesse que apostar eu diria que andará nos dois dígitos, a rondar os 10 por cento. Mas é uma aposta, não é uma verdadeira previsão.

 

Até março de 2020 a economia portuguesa dava sinal de fraquejar, a carga fiscal permanecia muito elevada, mas tivemos o primeiro excedente da democracia. Podia-se dizer que eramos felizes e não sabíamos?

Havia a noção de que o primeiro trimestre do ano estava a correr relativamente bem. Inclusive, as empresas estavam a ver os seus negócios a aumentar relativamente ao ano anterior. Até chegar a pandemia…

 

A austeridade já está entre nós, só que ainda não foi oficialmente decretada?

Se a definição de austeridade for viver pior, já estamos a viver pior e assim continuaremos. Não há volta a dar. Na minha opinião, neste momento não há austeridade e assim deve seguir. Logo, não se devem aumentar os impostos e não se devem reduzir as despesas do Estado. Numa altura de crise e recessão não faz sentido o governo apontar um rumo de austeridade só porque está preocupado com o défice. Isto não faz sentido do ponto de vista da política económica e garanto-lhe que 90 por cento dos economistas estão de acordo comigo. O problema é que a nossa dívida pública é tão alta que nós não podemos fazer o que devia ser feito. Creio que devíamos ir até onde fosse possível sem criar uma crise de dívida pública. Mas com 130 por cento de dívida torna-se difícil. O governo está a testar os limites nesta matéria e escolheu um ministro das Finanças, João Leão, que é muito conservador neste aspeto e que teme muito aumentar - ainda mais - a dívida pública. E compreendo-o, basta ver que a crise de 2011 foi agravada pelos défices criados para combater a crise anterior. E já na altura a divida pública era alta.

 

Perante um cenário macroeconómico irrealista, está aberto o caminho para termos outro Orçamento Retificativo nos próximos meses?

Se não houver é bom sinal. Mas é possível que aconteça, até porque fico com a ideia de que o atual Orçamento Retificativo assenta em premissas muito otimistas. Fazendo uma leitura política, a aprovação deste Orçamento quase parece uma maldade de Mário Centeno. Porquê? Ao aprovar-se um documento assente em perspetivas irrealistas, poderá dizer que quando saiu, apesar de tudo, o défice até estava razoavelmente controlado. Tinha tido um excedente e agora a previsão é cerca de 7 por cento, mas provavelmente será bem pior.

 

O ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, revelou que o governo mobilizou quase 20 mil milhões de euros de apoio à economia e às empresas no combate ao «desemprego e insolvências». O executivo fez tudo o que estava ao seu alcance ou podia ter ido mais longe, por exemplo, atribuindo subsídios a fundo perdido?
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Não acredito que qualquer outro governo fizesse diferente ou conseguisse ser muito mais ambicioso. Concordo que muitos dos apoios concedidos deviam ter sido concretizados sob a forma direta e não sob a forma de empréstimo. Mas acabo por perceber que com a dívida brutal que temos, o governo tenha preferido não ir por essa via. Em suma, podia ter sido mais ambicioso, mas não existiam condições para isso. É muito difícil correr riscos com uma dívida pública de 130 por cento do PIB. Provavelmente se Sócrates ainda hoje lá estivesse, a dívida já rondaria os 160 ou 170 por cento…

 

Mas não era ele que dizia que as dívidas são para se ir pagando?

E são. Mas o para se ir pagando obriga a que estejam controladas. O pior é se elas entram em trajetórias explosivas e deixamos de conseguir gerar rendimentos para pagar os juros. Então, perdemos o controlo das dívidas e elas tornam-se ingeríveis. Ou seja, em tese Sócrates até tinha razão, mas deixa de ter quando a dívida estava em descontrolo. Veja uma coisa: nós, enquanto indivíduos, basicamente vivemos endividados até aos 70 anos, nomeadamente com o crédito à habitação. E só paramos de nos endividar quando os bancos deixam de nos emprestar dinheiro, simplesmente porque nós vamos morrer. Já os Estados nunca morrem. Supostamente. Mas pelo menos, dá sempre para irem renovando e gerindo a dívida. O problema da nossa dívida é que corre o sério risco de ficar fora de controlo.

 

As falências e o crédito malparado são o caldo perfeito para a banca vacilar ou pensa que o sistema financeiro se encontra mais sólido?

É um facto que se encontra mais sólido do que estava há uns tempos. Foi feita uma grande limpeza nos últimos anos e os portugueses sabem-no bem, porque meteram muito dinheiro na banca. Mas corremos o risco de ir parar à situação anterior. Não há como negá-lo. Os piores problemas do país e que estavam a ser resolvidos eram, para além da dívida pública e privada elevadíssimas, a quantidade de bancos com crédito malparado e a enorme quantidade de empresas zombies, que de tão endividadas que estão, basicamente vão trabalhando só para sobreviver. E a crise que agora nos atinge só vai agravar ainda mais estes problemas. As dívidas públicas e privadas vão aumentar, os bancos podem ficar, outra vez, com mais crédito malparado e as empresas zombies também se vão endividar mais porque pagaram aos trabalhadores que estavam em layoff. Posto isto, é preciso dizer que os problemas estruturais que a economia portuguesa tinha, vai continuar a tê-los.

 

Já esteve mais longe do nosso horizonte voltarmos a ser resgatados por uma qualquer troika?

Esta crise é verdadeiramente mundial e para sermos resgatados é preciso que quem nos venha socorrer esteja melhor do que nós e que nos possa apoiar. E se a crise alastrar a mais países, não sei se será possível esse eventual apoio, na medida em que não é possível ajudar todos. Entretanto, ao nível da União Europeia, acredito que podemos ter um esforço coordenado de solidariedade. Agora, mais do que isso, parece-me difícil.

 

Afirma que «o mercado é bastante melhor do que o Estado a organizar a vida económica». A um «liberal de esquerda», como se define, causa-lhe confusão ouvir com tanta frequência, em 2020, a palavra nacionalização?

Vivemos tempos excecionais e, como se costuma dizer, «em tempo de guerra não se limpam armas.» E se existir um conflito é o Estado a intervir nele e a organizar o combate. Grande parte dos nossos dogmas económicos têm de ser postos de lado durante algum tempo e só depois voltaremos a discutir qual é a melhor forma de organizar a sociedade. Neste momento, há muitas empresas que podem, muito facilmente, ir à falência sem ser por qualquer motivo atribuível ao mercado. E se isso acontecer, a recuperação económica a seguir torna-se mais difícil, porque terão de ser construídas novas empresas a partir do zero e esse processo é demorado. Uma posição liberal no atual contexto passa por conseguir salvar ou apoiar as empresas que são viáveis no pós-pandemia e deixar as outras falir, deixando ao mercado o ajustamento das restantes situações, em vez de nos estarmos a arrastar pelos pés.

 

E aplicando essa sua teoria à TAP e à EFACEC, o que defende?

No caso da TAP tenho muitas dúvidas sobre este processo: uma empresa que nunca foi lucrativa no passado, não acredito que o passe a ser. Já tinha muitas reticências que a transportadora fosse sustentável antes da pandemia e agora, neste contexto, não é difícil prever que o mercado da aviação vai cair bastante, não só por causa do turismo, mas também porque ganhámos o novo hábito de fazer reuniões à distância, que vão fazer com que muitas viagens de negócios deixem de se concretizar - eu, por exemplo, já nem tenho vontade de ir a uma reunião presencial do departamento da minha escola, porque possa fazê-la tranquilamente, por videoconferência, a partir do meu gabinete. Ou seja, o negócio da aviação vai ser alvo de um downsizing, como se dizia antigamente. Quanto à EFACEC, que foi nacionalizada, apesar de não conhecer as contas da empresa, a intervenção do Estado faz sentido. Neste caso, não vejo mal nenhum em nacionalizar para vender daqui a alguns meses.

 

Ouve-se dizer que o modelo de desenvolvimento económico português tem os seus dias contados. Apostámos as fichas todas no turismo e perdemos tudo. Resta-nos uma longa travessia no deserto e voltar a industrializar o país da estaca quase zero?

Enquanto lia alguns artigos de opinião de António Costa e Silva, que está a coordenar o plano de recuperação do governo para os próximos dez anos, pensei cá para mim: «Pois, eu nunca podia ser político. Como é que eu alguma vez me ia lembrar que Portugal precisava disto?». Como liberal que sou, entendo que deve ser a iniciativa privada, por si, a ver onde estão as oportunidades de crescimento e fazer as apostas. Para começar, acho que o Estado devia desempenhar as suas funções da melhor forma possível, contribuindo para um melhor sistema de saúde, gastando da melhor maneira os recursos na educação, etc. Já o Estado a definir os setores nos quais se deve apostar e a orientar o investimento, quer do Estado quer das empresas, não creio que seja um caminho a seguir. A minha veia liberal não o permite.

 

A tese de Costa e Silva na proposta apresentada ao governo é que devemos ter agora mais Estado na economia, mas quando se der a retoma, o Estado deve fazer marcha atrás. Por exemplo, concorda com uma espécie de TGV entre Lisboa e Porto?

Não consigo perceber. Portugal devia ocupar-se e preocupar-se em fazer as coisas que tem em mãos bem feitas em vez de estar sempre a planear coisas novas. Neste momento, temos o Alfa Pendular Lisboa-Porto (e que também vem até Braga) e em grande parte desta linha o comboio não vem à velocidade máxima possível. Já entre Braga e o Porto demora 45 minutos, quando devia demorar 15 minutos. O que era perfeitamente viável com a estrutura que temos. Preferimos perder tempo a discutir investimentos altíssimos, alguns deles sem qualquer análise custo-benefício. Para além disso, ainda não metemos o Alfa Pendular a funcionar como deve ser e já falamos de uma nova linha. Não consigo perceber a lógica. São ideias que eu considero tolas.

 

Fala-se que Portugal é um país de reformas adiadas. Ao nível da qualificação, qual identifica como a principal transformação a desenvolver?

Primeiro, é preciso dizer que qualquer reforma bem feita que se faça só terá impacto nos próximos vinte anos. Não há balas mágicas. Há vários estudos cognitivos e de educação que mostram que estudar quando se é jovem é uma coisa e quando se é adulto é outra. Por isso, numa faixa etária mais elevada será difícil que qualquer esforço de qualificação altere a capacidade produtiva de forma radical. Logo, ao nível da qualificação das pessoas, o que me parece sensato fazer é um investimento a longo prazo, ou seja, nas escolas e na educação. Mas como disse, os efeitos só se irão sentir ao longo de gerações. Do lado das empresas, as que forem melhor geridas, do ponto de vista dos processos produtivos, funcionam melhor. Mas isso é um trabalho que compete aos gestores e aos empresários.

 

A pandemia e o confinamento mudaram tudo e a escola não escapou. O ministro da Educação disse que este «foi o ano em que a escola se reinventou». Concorda?

A escola, os alunos e os professores não se reinventaram, eu acho que se desenrascaram. E dentro do que era possível, acho que correu bem, até pela urgência do processo, nomeadamente ao nível das ferramentas informáticas. Vários estudos concluem que o ensino à distância não funciona tão bem como o ensino presencial e basta falar da técnica de dar uma aula numa sala para perceber isto. Eu «agarrar» um aluno numa sala não é o mesmo que «agarrar» um aluno no computador - aliás, numa videoconferência metade dos alunos tem as câmaras desligadas, uns por boas razões (porque a rede é fraca) e outros por más razões, simplesmente porque lá não estão. Faz toda a diferença.

 

Quem perdeu mais com o confinamento?

Claramente os alunos. A minha vida, enquanto professor, no próximo ano letivo continua na mesma - isto se tudo voltar mais ou menos à normalidade. Já o aluno pode ter perdido cerca de três meses de aulas que podem ter sido importantes. Mas creio que este problema manifesta-se com maior gravidade em níveis de ensino inferiores (secundário e básico) e não tanto nas universidades.

 

Defende que o combate às desigualdades só se garante com uma boa educação para as crianças das classes mais desfavorecidas. Esta pandemia expôs as assimetrias do sistema educativo português?

As fragilidades já eram conhecidas, isto apesar de termos melhorado nos últimos anos nos resultados comparativos internacionais. Mas se for ver esses relatórios ao detalhe, constatará que a performance dos alunos portugueses é a que mais correlacionada está com as qualificações dos pais. O que isto nos diz é que o sistema educativo é muito mau a promover as crianças que veem de famílias mais desfavorecidas. Isto já era um facto e a pandemia só veio agravar.

 

O plano de regresso às aulas e de recuperação da aprendizagem foi o que esperava?

Andei semanas nas redes sociais a pedir que o Ministério da Educação apresentasse um plano para o regresso às aulas. Não sendo especialista em educação, em particular nos graus do básico e do secundário, mas parece-me que tudo o que foi anunciado é o correto. Ou seja, reforço dos docentes, criação de tutorias para dar explicação aos alunos com mais dificuldades, redução das férias, parecem-me decisões bem tomadas. Mas fiquei logo assustado e de pé atrás quando ouvi a verba envolvida para concretizar estas medidas: 125 milhões de euros. Não é nada. Para ter a noção, a proposta do CDS aprovada no Parlamento para não haver devolução de manuais custa…150 milhões de euros. Não posso acreditar que um projeto de recuperação e aprendizagem custe menos do que isto. E quando começamos a pegar nos detalhes, concluímos que o que está previsto para contratar professores extra é menos do que um professor por escola. É a isto que chamam um grande plano?

 

Queixa-se da escassez de recursos alocados para a educação. A educação já não apaixona, como no tempo de Guterres ou é fogo que arde sem se ver?

Pode não ter existido um pacto formal entre partidos para a educação, mas é preciso reconhecer que nos últimos 30 anos têm sido feitos muitos progressos. Temos defeitos estruturais e a grande pecha que eu aponto é o facto de a educação não parecer ser um bom elevador social e de estar a falhar no papel de combate às desigualdades. São problemas que têm de ser rapidamente atacados. Para além disso, preocupa-me o movimento de segregação social nas escolas, em que as famílias que não conseguem por os seus filhos nas escolas públicas de elite nos grandes centros urbanos e acabam por pô-los nas privadas. Neste contexto, as classes sociais mantêm-se afastadas umas das outras e isso é o caldo para se perpetuarem as classes sociais como elas estão. E é também nesta dimensão que o nosso ensino está a falhar.

 

Como avalia o trabalho desenvolvido pelo ministro Tiago Brandão Rodrigues?

Acho mesmo que este ministro é muito fraquinho. Não há volta a dar. Tenho medo de estar a ser injusto, mas acho que ele está a fazer o melhor que pode. Não tem a noção dos problemas que tem em mãos.

 

CARA DA NOTÍCIA

Um «liberal de esquerda»

Luís Aguiar-Conraria nasceu em Coimbra a 6 de setembro de 1974. É economista e professor na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho (EEG/UM), desde 2005. Doutorado em Economia pela Cornell University, no Estado de Nova Iorque, mestre em Economia pela Universidade do Porto e licenciado em Economia pela Universidade de Coimbra. Já dirigiu o departamento de Economia da sua escola e foi vice-presidente para a Investigação e Internacionalização. Em 2011 recebeu o Prémio Gulbenkian para a Internacionalização das Ciências Sociais. Em 2010 e 2013 recebeu o Prémio de Mérito na Investigação da EEG/UM. Macroeconomia e economia política são as suas áreas de especialidade. Assume-se como um «liberal de esquerda» e é colunista no semanário «Expresso», depois de ter escrito regularmente nas páginas do «Público».

 
 
 
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