D. Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz de Braga
«É preciso globalizar a solidariedade»
D. Jorge Ortiga,
uma das vozes com mais peso da Igreja Católica em Portugal, defende
que ultrapassada a pandemia surja uma sociedade nova assente na
«civilização do amor». Sobre o incontornável tema da eutanásia,
afirma que «a vida é o primeiro direito e deve ser preservado.»
Subitamente, um
vírus do tamanho do nada colocou tudo em causa. Já disse esperar
que esta crise traga lições para alterar o nosso modo de vida. A
que lições se refere?
É um lugar comum dizer-se que após esta pandemia nada
ficará como dantes e muitos comportamentos serão alterados. Mas
isso não basta. É preciso ir mais longe e interpretar uma nova
visão da própria vida, conferindo uma atenção diferente à atividade
humana. O esforço que Portugal e outros países do mundo estão a
desenvolver para reduzir, ao máximo, o número de vítimas provocadas
pela Covid-19 é revelador de que a vida humana é insubstituível e,
no futuro, não devíamos perder este foco.
As palavras
proferidas pelo Papa Francisco numa Praça de S. Pedro vazia, em que
disse «estamos todos no mesmo barco», fazem cada vez mais
sentido?
Somos todos interdependentes e a nossa salvação está na
ligação que estabelecemos uns com os outros. Não há ricos, nem
pobres. Somos todos iguais. E isso só se atinge se conseguirmos
tirar lições desta crise: com uma vida mais solidária, cultivando o
interesse pelos outros e a consciência da interdependência. A vida
não se pode restringir ao económico e aos valores da avidez, do
consumo, do egoísmo e da indiferença.
Uma solidariedade
verdadeira perante a crise e a responsabilização com a natureza são
duas das atitudes que defende. Na prática, no que é que
consistem?
Tenho sublinhado várias vezes da importância de exigir uma
responsabilidade universal e globalizar a solidariedade. É muito
importante que nos comprometamos com a vida dos outros.
Acredita que este
vírus surgiu como uma espécie de grito de alerta da
natureza?
Este vírus não apareceu por geração espontânea. Teve a sua
génese, mas a relação de causalidade não está suficientemente
provada. Mas é evidente que temos tido pouco cuidado na nossa
relação com a natureza, que tem sido delapidada, com consequências
muito negativas para a qualidade do ar que respiramos e dos mares,
isto apesar dos alertas e das cimeiras do clima. É preciso fazer
ecoar um grito e dizer basta contra os ataques à natureza. É aqui
que a solidariedade tem de abraçar a própria natureza. A ecologia é
responsabilidade de todos, não só dos governos. É imperioso mudar
hábitos e rotinas e evitar atentados que destroem tudo de bom que a
natureza nos proporciona.
A comunidade e os
cidadãos estão mobilizados para esse objetivo?
A sociedade, na sua relação com a natureza, não pode ficar
na expetativa, precisa de mudar de rota e depois de rubricar os
compromissos nas cimeiras, passar aos atos. É necessário por travão
à degradação veloz que a natureza tem vindo a sofrer. A resposta a
este vírus tem de fazer emergir uma nova qualidade de vida, que
entenda o ambiente como uma ecologia pura, em detrimento de uma
ecologia que só serve para retirar vantagens para
particulares.
Para além da
pandemia sanitária, a pandemia social e económica adquire contornos
de grande dimensão. Esta é a crise das nossas vidas?
É uma crise de dimensões nunca vistas. Foi inicialmente um
problema de índole sanitária que evoluiu para a vertente económica
e que se espalhou para a questão social.
O crescimento do
desemprego é o principal problema?
Mesmo sabendo que há muitas empresas em layoff, o
desemprego cresce de um modo acelerado, ameaçando trabalhadores de
pequenas empresas e empresas familiares, que ficam à beira da
insolvência. Por isso, a situação das famílias é muito alarmante. A
pobreza existe e emerge agora com uma outra dimensão: a pobreza
envergonhada. Pessoas que tinham uma vida minimamente estruturada,
viram-se, do dia para a noite, com situações dramáticas. Muitos
deles refugiam-se na vergonha e mergulham na pobreza. A fome e o
não conseguir provir a outras necessidades essenciais é o passo
seguinte.
O retrato que faz
é de uma sociedade em retrocesso, após alguns progressos registados
recentemente?
Pensávamos que a sociedade portuguesa estava mais
equilibrada e que os fenómenos de exclusão eram muito residuais.
Afinal, estávamos iludidos. A Igreja debate-se, todos dias, com
apelos de vária natureza e proveniência: é a falta de ordenado, a
falta de habitação, problemas para honrar o compromisso da renda da
casa, pagar a luz e a água, ir à farmácia comprar medicamentos,
etc. Muitos portugueses vivem com reformas insignificantes o que
não lhes permite encarar a vida com um mínimo de dignidade. Para
quem habita nas aldeias, ainda é possível equilibrar a economia
familiar com o que é plantado no seu quintal ou na sua horta. Já
nas cidades é mais complicado. Mas são muitos os que batem à nossa
porta porque não têm meios de subsistência. Felizmente, as
necessidades de alimentação vão sendo temporariamente supridas
pelas cantinas sociais ou pelas ajudas que veem de entidades
sociais e das paróquias.
O Papa Francisco
disse que a «pobreza não é uma fatalidade», mas esta crise destapou
um lado negro que parecia ter desaparecido…
A pobreza é uma situação real e objetiva. E tem tendência
para se agravar. Temos de ajudar. Não podemos permitir que haja
gente a passar fome. Defendo que se promova uma grande campanha de
reflexão nacional sobre as causas da pobreza, para que se encontrem
respostas convincentes para debelar este problema. Enquanto isso,
devemos tudo fazer para criar novos empregos e recuperar as
empresas que reúnam as condições para tal.
Este é um tempo
de reflexão e já defendeu que se deve construir uma sociedade nova,
baseada em alicerces antigos. Como idealiza essa
sociedade?
Vivemos numa sociedade globalizada, em que impera a
cultura da indiferença. Cada pessoa segue o seu caminho, sem se
importar com o do lado. Olha só para si, quando muito para os seus,
que lhe estão mais próximos. Procura apenas a sua própria
felicidade. É, por isso, que defendo que é preciso globalizar a
solidariedade, sendo este o principal pilar de uma sociedade nova e
diferente. Somos uma única família e um único corpo. A animosidade
e a concorrência desenfreada não podem prevalecer. Deve emergir a
civilização do amor, a atenção e a caridade. Estamos sempre à
espera que alguém resolva: o Estado ou a Igreja. Quando a tarefa
destas entidades é apenas estruturante.
Que papel pode
ter a Doutrina Social da Igreja nestes tempos
conturbados?
A Doutrina Social da Igreja é muito antiga e tem na sua
base a primazia do amor. Para além disso, é personalista, visa a
dignidade de qualquer pessoa e é, por assim dizer, o motor de toda
a ação social da Igreja. O outro princípio fundamental da doutrina
é o bem comum e o destino universal dos bens para que estes possam
chegar a todos. Acredito sinceramente que se a Doutrina Social da
Igreja fosse posta mais em prática a sociedade seria
necessariamente diferente.
Em resumo, a
solidariedade deve prevalecer sobre os valores do egoísmo e da
indiferença?
O egoísmo e a indiferença não são os princípios que servem
de motor à vida humana. A solidariedade e a fraternidade é que são.
A Igreja Católica sublinha isso quando diz «temos um único Pai» e
«somos todos irmãos.» Mas as preocupações da Igreja, como um todo,
não se esgotam no nosso território. Veja o que acontece por esse
mundo fora. A fome em países de África, da Ásia e da América. O
fosso entre ricos e pobres é cavado e a miséria assume proporções
escandalosas. Já para não falar dos conflitos que se vão
multiplicando em vários pontos do mundo, com diversas etnias que se
vão digladiando, provocando o caos e a morte de muitos inocentes.
Uma palavra final para os migrantes e os refugiados, que abandonam
o seu pais, fugindo à guerra e a situações sociais
adversas.
Não podia
terminar esta entrevista sem questioná-lo sobre o tema da
eutanásia. Este dossiê deve ser legislado depois das férias
parlamentares e prevê-se que apenas possa ser travado ou pelo veto
do Presidente da República ou pelo Tribunal Constitucional. Qual é
a posição da Igreja?
A vida é o primeiro direito e deve ser preservado. A vida
deve terminar de modo natural. Nascemos, vivemos e morremos. A
Igreja não pode estar de acordo com processos artificiais tendentes
a eliminar um dom que é a vida. Aliás, este contexto sanitário tem
evidenciado o importante que é cuidar da vida. Sejamos capazes de
tirar da pandemia uma lição sobre a importância da vida.
Como é que a
Igreja acolhe a eventualidade de um referendo?
A Doutrina Social da Igreja é contra o referendo. Por
isso, a vida não deve ser referendada, mas caso se avance para uma
consulta popular estou em crer que essa será uma forma de
consciencializar a opinião pública para a importância da vida. A
sociedade vive para defender a vida, assim como os médicos
trabalham para cuidar dos seus doentes.
CARA DA
NOTÍCIA
Papa destaca o seu
«exemplo de vida»
D. Jorge Ortiga nasceu a
5 de março de 1944, na freguesia de Brufe, concelho de Vila Nova de
Famalicão. Foi ordenado presbítero em 1967. No mesmo ano foi
nomeado coadjutor da paróquia de S. Vitor, em Braga. Um ano depois,
em setembro, começou a frequentar o curso de História Eclesiástica
na Faculdade de História da Universidade Gregoriana, em Roma,
concluindo a licenciatura, em outubro de 1970. A 3 de janeiro de
1988, foi ordenado bispo pelo Arcebispo Primaz de Braga, D. Eurico
Dias Nogueira, na Cripta do Sameiro, escolhendo como lema episcopal
a passagem do capítulo 17 do Evangelho de S. João: "Ut unum sint"
(Que todos sejam um). Em junho de 1999 foi tornada pública a sua
nomeação para Arcebispo de Braga. Poucos dias depois, recebe o
"Palium" de Metropolita das mãos do Papa João Paulo II, a 29 de
junho no Vaticano, tomando posse como Arcebispo a 18 de julho na Sé
Catedral de Braga. Presidiu à Conferência Episcopal Portuguesa
entre 2005 e 2011, tendo nesta organização liderado a Comissão
Episcopal da Doutrina da Fé e a Comissão Episcopal da Educação
Cristã. Em 2017, por ocasião das suas bodas de ouro sacerdotais,
recebeu uma mensagem do Papa Francisco, na qual o pontífice
elogiava o «zelo apostólico» e o «exemplo de vida» do arcebispo de
Braga.
Nuno Dias da Silva
Departamento Arquidiocesano para a Comunicação Social