Julieta Ferreira em entrevista
Carta a um ex-amante
Julieta Ferreira foi tradutora, intérprete e
professora de Língua e Cultura Portuguesa, na Austrália, nos anos
oitenta. Nas memórias da Austrália fica também o trabalho
desenvolvido numa organização governamental, onde ajudou a
integrar crianças de várias nacionalidades nas escolas. Actualmente
a viver em Portugal encontrou na escrita um meio de realização
pessoal. O mais recente romance, Carta a um Ex-Amante, é nas
suas palavras «uma narrativa intimista onde muitas mulheres se
revêem, uma "carta" de despedida, para exorcizar um amor que talvez
não tenha chegado a ser.»
"Carta a um
Ex-Amante" é o seu mais recente romance. Como é que define o
livro?
O que define qualquer romance?
Caberá ao autor ou aos leitores defini-lo? Em relação a este meu
livro, tenho recebido várias definições e todas elas se enquadram
nas leituras que os leitores fazem e isso é muito interessante, até
curioso, porque ao escrevê-lo, não me apercebi de certos aspectos.
Alguns têm-lhe chamado "romance epistolar" e ainda há os que
discordam. Os comentários, que tenho recebido, são unânimes ao
defini-lo como uma narrativa intimista em que a personagem feminina
desnuda a sua alma para exorcizar um amor que talvez não tenha
chegado a ser. A dúvida é constante, assim como o desencanto, a
solidão, os silêncios, a procura de algo, a inquietação. Todos os
sentimentos e pensamentos são expostos de uma forma realista que
transcende as regras mais convencionais. É uma "carta" em que
muitas mulheres se revêem embora nunca tenham tido a coragem para a
escrever. Foi mesmo isso que pretendi. Dar voz a essas mulheres e
falar do que fica encoberto, o não dito nas relações mais íntimas.
Ao contrário do que se possa julgar, não é um romance de amor.
Nos anos
oitenta, emigrou para a Austrália onde trabalhou como tradutora e
intérprete e, mais tarde, leccionou Língua e Cultura Portuguesa na
Universidade de Queensland. Que memórias guarda desses tempos na
Austrália?
São memórias dualistas. Por um
lado, vivi uma experiência fantástica, de grande enriquecimento
cultural e humano. Convivi e trabalhei com pessoas de vários países
e diferentes ideologias, expandi os meus conhecimentos e cresci
como pessoa e ser social. Tive também a oportunidade de ensinar a
minha língua e a minha cultura, num meio onde muitos não sabiam da
existência de um país chamado Portugal e outros ainda o confundiam
com a Espanha. Isso devolveu-me, em parte, o que havia deixado para
trás e deu-me grande satisfação. Por outro lado, senti-me sempre
deslocada e desenraizada, numa sociedade onde não pertencia. O
isolamento, a solidão e a saudade eram constantes e o desejo de
regressar às minhas origens era obstinado e urgente.
Quando
viveu na Austrália defendeu a causa dos imigrantes e refugiados
pela inclusão na sociedade Australiana. Em que consistia esse
trabalho humanitário?
Trabalhei numa organização
subsidiada pelo governo australiano para dar acesso e integrar
crianças de várias nacionalidades, nas diferentes instituições
escolares. Para isso, visitava as famílias recentemente chegadas e
analisava cada caso, fornecia informação, estabelecia contactos com
várias agências estatais, fazia o acompanhamento no processo de
inscrição nas escolas e depois trabalhava com os respectivos
educadores, com vista a uma maior sensibilização e aceitação das
diferenças culturais, linguísticas e religiosa. Apresentei muitos
workshops e seminários abordando a temática do multiculturalismo e
discriminações raciais e culturais. Foi uma experiência muito
gratificante.
Começou a
escrever quando?
A leitura e a escrita têm-me
acompanhado desde muito cedo. Só comecei a publicar em 2006, já
muito tardiamente. Contudo, esse "bichinho da escrita", como eu lhe
chamo, esteve sempre comigo e não me tem largado. Durante os meus
anos de docência, antes de emigrar, costumava escrever uma espécie
de diário - um caderno de capa preta - onde ia anotando as minhas
reflexões e vivências, uma observação crítica do mundo à minha
volta. A minha escrita teve sempre esse lado reflectivo, de
ponderação e análise. Não tenho cursado filosofia ou psicologia,
gosto, no entanto, de enveredar por esses caminhos inquietantes e
fascinantes da mente e dos comportamentos humanos. Depois, durante
a longa ausência de Portugal, a escrita ajudou-me a superar a
solidão, era uma companhia, também um meio de me sentir mais perto,
através da língua.
Num dos meus regressos a Portugal,
em 2005, surgiu a motivação para a escrita do meu primeiro romance
de carácter autobiográfico - Regresso a Lisboa - que veio
concretizar um sonho muito antigo: publicar um livro! A partir daí,
não tenho parado. A escrita tem sido um meio de me encontrar e uma
grande realização pessoal.
No seu
blogue tem um texto intitulado Confidências de uma Mulher
Apaixonada. A paixão tem sido o motor da sua escrita?
Sem dúvida! A paixão esteve também
na base da minha carreira de docente, é o motor da minha vida, de
tudo o que faço, dos projectos em que me envolvo. No meu entender,
só assim é possível viver-se e criar-se.
Nos seus
romances as protagonistas são mulheres. É uma escritora do
feminino?
Esta pergunta tem-me sido feita de
maneiras diferentes e sempre que a oiço sou levada a reflectir.
Serei? Não gosto de me classificar ou definir como tal, e ainda
menos, ver-me espartilhada, confinada a um determinado tipo de
escrita. Sou adversa a rótulos e não me identifico com nenhuma
escola literária, em particular. É claro que me projecto, enquanto
pessoa do sexo feminino, em tudo o que escrevo. Gosto de retratar a
mulher talvez por me sentir mais segura, mais confortável, por
saber mais sobre as mulheres do que sobre os homens. Contudo, não é
possível haver uma personagem isolada de um contexto e da relação
que mantém com outras personagens. Até ao meu mais recente romance,
trilhei um determinado caminho na escrita. Estou a afastar-me dele.
Sinto que estou a alargar-me. Só assim poderei crescer como
autora.
Na sua
opinião, a literatura portuguesa está atravessar um bom
momento?
Não sei como devo interpretar esta
questão porque não estou certa sobre o que define um bom momento na
literatura de qualquer país. Será o número de escritores? Será o
número de obras publicadas? Será a qualidade ou falta de qualidade
do que se lê? Será a projecção a nível internacional? Tudo muito
complexo e problemático porque nunca se escreveu tanto em Portugal
e nunca houve tantos autores a editarem os seus trabalhos. Assim
como tantas editoras a proliferarem, por toda a parte. É muito
fácil, hoje em dia, publicar-se um livro, quer esse livro tenha
qualidade ou não, porque surgiram muitas editoras pequenas que se
dedicam a editar autores desconhecidos do grande público e nos
quais as grandes editoras não apostam por já terem uns tantos
autores de nomeada que lhes dão lucro. É tudo uma questão comercial
e, algumas vezes, não entra em conta fazer-se chegar ao leitor uma
obra de qualidade. Infelizmente, as pessoas ainda estão habituadas
a procurar livros através do nome das editoras mais conhecidas, com
maior poder mediático, ou dos autores de que já ouviram falar ou
viram na televisão. Os outros, mesmo que tenham qualidade, ficam
esquecidos.
A Poesia
também faz parte do seu percurso enquanto escritora. Qual é a
análise que faz da sua poesia?
A poesia tem feito parte de uma
determinada procura, a nível intimista. Tem servido para dar voz a
estados de alma e a certos momentos, especialmente aqueles mais
negros, em que essa forma de escrita era imediata e capaz de
transmitir o que me propunha, de maneira mais directa e mais
satisfatória do que a prosa. Não tenho pretensões a considerar-me
uma poetisa de grande valor e sei que não será por aí que me
definirei e alcançarei algum êxito como autora. É, acima de tudo,
uma poesia muito sentida, muito sofrida, muito sincera.
Possivelmente, e sem querer encaixar-me em nenhuma corrente
literária, tem algumas influências de Florbela Espanca. Mas, sem
dúvida, prefiro escrever romances.
Quais foram
os escritores e as leituras que a influenciaram na sua
juventude?
Quando criança, devorava os livros
de aventura de Enid Blyton. Esse tipo de narrativa fazia voar o meu
espírito e esquecia-me da realidade. Mais tarde, não consegui ficar
insensível à poesia lírica de Camões, ao realismo de Cesário Verde,
às pinceladas burlescas e cáusticas de Eça de Queirós e ao
romantismo de Almeida Garrett. Anos depois, seria Fernando Pessoa a
maravilhar-me e a deixar-me perdida na teia do seu multifacetado
engenho. Sebastião da Gama impressionou-me imenso com a inovação
pedagógica tão bem explanada no seu Diário e apaixonei-me pelas
suas ideias quanto ao ensino. "O Delfim" de José Cardoso Pires e
"Aparição" de Virgílio Ferreira foram duas obras que me marcaram
bastante. Sartre e Camus foram também dois nomes que tiveram grande
impacto na minha juventude e contribuíram, sem eu talvez me
aperceber, para uma determinada forma de pensar que se revela agora
na minha escrita.
O próximo
projecto literário já está em preparação?
Nos últimos seis meses tenho estado
a escrever um romance baseado numa ideia que começou a formar-se há
mais ou menos dois anos. Neste romance, a história evolui em tempos
diferentes e pela voz de várias personagens cujos destinos se
cruzaram, de forma, por vezes, muito estranha e quase inexplicável.
A narrativa aborda a temática do Destino e a sua importância ou não
no delinear de qualquer vida. Surgem também o Tempo e a Morte como
realidades constantes e incontornáveis, num emaranhado de histórias
que se sobrepõem, enquanto as personagens se movimentam em
diferentes épocas, com as consequentes implicações sociais,
económicas e políticas e seus inerentes condicionalismos.
Terminei este projecto em meados de
Maio e agora só tenho de esperar que uma editora esteja interessada
e aposte em mim e no meu trabalho. Sei que é difícil mas nunca
ninguém me viu desistir face a qualquer dificuldade.