Opinião

Memórias Ficcionadas
Livre de Saneados

8. L.Souta-1.jpg«Atravessei os mares e os continentes, conheci outras línguas, outras gentes, (…) a minha volta é só formalidade.»

  ("Dois sonetos do difícil retorno", Poemas, Sidónio Muralha)

Desde que tiveram a ousadia de afixar, no placard exterior da Associação, fotos e relatos do massacre de Wiryamu, abalando desse modo a paz podre em que o Instituto vivia desde a Crise de 69, que o Director V. Fortunatum procurava coarctar a actividade da AA, acantonando-a à "Secção de Folhas"; uma espécie de livraria (acanhada), gerida de forma displicente pelo Ricardi (finalista liquidatário do curso de Serviço Social), e onde se vendiam sebentas de leitura obrigatória (a variante universitária do «livro único»), principal fonte de receitas da Associação (para além das quotas de sócio e de outras miudezas como material de papelaria).

V. Fortunatum convocara a Direcção da AA; coisa rara, pois "o coxo" - como o passaram a tratar quando um grave acidente de viação o pôs naquele estado - não era dado ao diálogo quanto mais à negociação.

- Quero comunicar-vos que, a partir de hoje, a música a passar na cantina, durante as refeições, não pode ter palavras; só instrumental e, de preferência, clássica.

- Mas a responsabilidade por essa selecção é da "Sonora"… uma secção autónoma da Associação Académica - ainda tartamudeou Jonas Guevara.

- E é tudo, meus senhores - levantou-se, amparado na bengala, e foi-lhes abrir a porta… de saída.

"Reunião" curta sem direito a contraditório. O habitual naquele Director, um adverso convicto da liberdade e da democracia.

Quando desciam a escadaria, de regresso às instalações da AA, Arcílio, incrédulo, desabafou:

- Eh pá, isto quer dizer que se acabaram os Creedence Clearwater Revival?! Mas até na escolha da música aquele facho quer interferir! Nem na Rádio Universidade! - estação controlada, com rédea curta, pela Mocidade Portuguesa, e onde Arcílio tirocinara.

Um ano depois o regime caía!

A Revolução de Abril engendrou uma nova figura - o saneado. A "vassoura" democrática ia, desenfreada, "limpando" os da situação, no aparelho de Estado, nas instituições de ensino, nas empresas,… O ISCSP[U], a Faculdade de Direito e a Faculdade de Letras, nessa saga de "poder popular de base", que entretanto emergira um pouco por todo o lado, deram um forte contributo à correnteza de saneados; só do ISCSP[U] foram expulsos o director deposto V. Fortunatum e mais de duas dezenas de professores. A nova ordem era incompatível com a convivência daquela gente "reaccionária" e "do antigamente". Por o clima político-social não lhes ser nada propício, muitos deles deram de frosque, para o estrangeiro. A maioria para o Brasil. Aí se tinha exilado Marcello C., o ex-primeiro. Por lá andaram, fazendo pela vida, enquanto o PREC seguia animado, revolucionário qb e contraditório em demasia. Mas como a "revolução permanente" só existe na literatura trotskista, a revolução dos cravos, ao meter-se por caminhos ínvios, tocou no fundo a 25 de Novembro. A partir daí, para uns, foi a acentuada marcha atrás, para outros, a consolidação da democracia formal, a dita normalização; para estes últimos, tal implicava a reparação dos "excessos" do PREC. Os saneados, não tardaram a regressar da América do Sul. E de uma assentada, acabaram por receber do Estado-mãos-largas, os honorários de todos os meses em que foram proscritos. E assim, aqueles professores catedráticos e similares viram-se sem escola mas na posse de um importante capital financeiro para investir… naquilo que, praticamente, não existia em Portugal - o ensino superior particular.

E aquela gente parda, como Gonçalves Proença, Soares Martinez ou V. Fortunatum, que sempre se opôs tenazmente à liberdade, escolhia agora essa nobre palavra para a primeira universidade privada - Universidade Livre; criada com o capital social de 20 mil escudos (!), em Março de 1979, por despacho de Sottomayor Cardia, outro Ministro da (nossa má) Educação (passou o resto da sua vida cívica a tentar "limpar-se" daqueles anos de terra queimada na 5 de Outubro). A Universidade Livre, nas instalações da Rua Victor Cordon, facturou bem, entre 1980 e 1985. Depois foram as guerras intestinas naquele panier de crabes: em cada cisão saía uma universidade da cartola - a Universidade Lusíada, na Rua da Junqueira (na vizinhança do ISCSP, o que facilitava a vida aos turbo-professores, outra das figuras que este tipo de ensino viria a instituir), a Universidade Autónoma, a Universidade Moderna, a Universidade Independente e a Universidade Portucalense. Foi um fartar vilanagem, graças aos "cursos de papel-e-lápis" para uma clientela assegurada pela política de numerus clausus que, todos os anos, deixava à porta das universidades públicas milhares de candidatos.… Passados todos estes anos, da maior parte delas, ficaram as cinzas.

Luís Souta
Este texto não está redigido segundo o designado novo Acordo Ortográfico
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